“A visão de mundo africana parte do princípio da existência de uma conexão entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Os três elementos personificam a realidade das interconexões entre o passado, o presente e o futuro, e essa visão do mundo conecta a vida espiritual com a existência material. O domínio do espiritual não está divorciado da materialidade da economia e da política das nações e entre as nações.” (Ngũgĩ wa Thiongʼo, escritor queniano)
A pergunta que dá título a esse artigo é muito comum entre pessoas de esquerda ao se depararem com alguém que não pertence à elite econômica e se diz conservador e/ou liberal. Isso porque sua estupefação parte de uma caricatura criada a partir da ignorância, do desconhecimento do que é a tradição conservadora e liberal. Mais do que isso, não é difícil encontrar pessoas de esquerda que, contraditoriamente, em muitos aspectos, se revelam conservadoras, mas não ousam nomear essa disposição em si próprios. Como diz o historiador Robert Conquest: “todo mundo é conservador a respeito do que conhece bem”.
Penso que meu conservadorismo é fruto de meu temperamento e de minha educação familiar. Mesmo em minha juventude, período de meus embates sociais mais intensos (com a polícia, por exemplo, que insistia em me parar e me agredir), e no qual li obras que me causaram profunda revolta – como Negras Raízes, de Alex Haley, e a Autobiografia de Malcolm X –, nunca pensei que a solução revolucionária fosse a mais adequada, nem sequer imaginava que as mudanças, ainda que necessárias, pudessem ocorrer como fruto único e exclusivo da vontade. Meus pais passaram por muitas adversidades, mas nunca perderam a altivez e a convicção de que o conhecimento, a prudência, o esforço e a persistência compensavam. As rupturas e as insurreições jamais foram defendidas em minha casa.
Quando tudo falta, a tradição e as virtudes são fonte de dignidade, e são elas que tornam possíveis a resistência e o progresso. A desordem moral é tão inimiga dos pobres quanto a pobreza material
Mas tal comportamento não é exceção entre pessoas de origem humilde, entre aqueles que são castigados pelas circunstâncias – muitas vezes não provocadas por eles. Quando tudo falta, a tradição e as virtudes são fonte de dignidade, e são elas que tornam possíveis a resistência e o progresso. A desordem moral é tão inimiga dos pobres quanto a pobreza material. E convenhamos, atento leitor, qualquer pessoa que tenha passado por privações e as superado tem provas irrefutáveis disso, e somente quem nasceu com os caminhos da prosperidade já traçados duvida do poder avassalador da retidão moral.
Não estou dizendo, com isso, que a indignação perante as injustiças deva dar lugar à resignação paralisante; mas, atendendo à sábia admoestação de Martin Luther King Jr., é imperioso que não nos igualemos aos nossos ofensores: “Lutemos com paixão e sem descanso, pelos objetivos de justiça e de paz, mas tenhamos certeza de que, nesta luta, as nossas mãos permaneçam limpas”. Ou Luiz Gama, que, ao ser acusado de revolucionário por sua luta abolicionista, replicou: “não sou nem serei jamais agente ou promotor de insurreições, porque de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício à mísera escravatura e muito menos ao partido republicano, a que pertenço, cuja missão consiste, entre nós, em esclarecer o país”. Ou, ainda, a prudência incisiva de André Rebouças ao avaliar os descaminhos da Revolução Francesa: “Certamente não se aperfeiçoa uma nacionalidade permitindo, sob pretexto de necessidade da guerra, todos os horrores e todos os crimes. Dificílimo é aperfeiçoar a espécie humana. Tenho disso a experiência íntima e pública em toda minha longa vida de mestre e educador de meninos e moços. Se alguma coisa pode ser conseguida, é pela propaganda quotidiana”.
Diante de tais observações, caso ainda reste dúvidas sobre o que um “pobre de direita” deseja conservar, elencarei três ou quatro casos práticos nos quais a desagregação pode ser – se já não foi – absolutamente perniciosa para pessoas não abastadas.
Ancestralidade
Num texto do reconhecido site Geledés sobre o tema, leio que “ancestral é o que foi, o que é, e o que ainda será. Reconhecer o que é ancestralidade te permite saber de onde você veio e como chegou até aqui. É muito importante para compreender e pacificar algumas formas de sentir que nos foram negadas e, ao mesmo tempo, desconstruir outras que nos foram e ainda são impostas”. Pois bem. O que é mais ancestral: adotar pressupostos socialistas e comunistas – europeus, portanto –, que têm pouco mais de 200 anos, para a conquista de direitos, ou adotar a ética cristã, que tem não só mais de 2 mil anos no continente africano, mas foi, em grande medida, desenvolvida em solo africano desde os primeiros séculos, pelas mãos de luminares como Tertuliano, Atanásio e Agostinho? Aliás, sobre esse tema a editora Quitanda acaba de lançar um livro importantíssimo, Quão africano é o cristianismo?, de Thomas C. Oden, prefaciado por mim. O cristianismo é uma religião ancestral há séculos no continente africano; chegou lá por meio de missionários orientais e africanos viajantes, mais de um milênio antes da colonização. A igreja etíope é um exemplo cabal.
E mais: se, pautados pela ancestralidade, “nossa fé [qual fé?] nos possibilita acessar nossas origens mais remotas e reeditar expressões não colonizadas de humanidade” e “nos dá condições de exercer o direito de ser a materialização dos melhores sonhos dos nossos ancestrais”, por que não adotar, ao menos, a mentalidade ancestral original dos povos bantu? A seu respeito, o padre Raul Ruiz de Asúa Altuna, missionário e estudioso da cultura desse grande conjunto de povos africanos, afirma: “como carecem de hierarquia autoritária, a lei consuetudinária regula a vida social: a religião – estão sacralizados até a medula – robustece a coerência do grupo, fortifica a unidade e aniquila qualquer tentativa de desagregação. A presença constante do mundo invisível, antepassados e outras potências domina-os de tal forma que não é preciso outro poder coercitivo”. A crença nessa ordem moral duradoura, na ancestralidade, nada mais é do que conservadorismo.
Família
Recentemente escrevi um artigo, aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, sobre a importância da família – sobretudo para a população negra e pobre –, de modo que não me estenderei. Vale reforçar, no entanto, que a família como conhecemos, no modelo consagrado há milênios e que formou civilizações, foi posta em xeque pelo marxismo. Karl Marx afirma, no Manifesto do Partido Comunista, que uma das consequências do comunismo seria a abolição da família, que ele chama de família burguesa – como se esse modelo de família nuclear fosse invenção do capitalismo. O fetiche por agrupamentos comunitários alternativos, que diluam pais e mães biológicos no coletivismo, ganhou força com o movimento hippie da década de 1960, mas perdura até hoje na academia, entre teóricos progressistas e/ou revolucionários. A desagregação familiar nas periferias não é fortuita, vem a reboque de um projeto acadêmico que, sob a justificativa da inclusão, intenta esvaziar e substituir os conceitos ancestrais. Entretanto, naquele artigo afirmo que “não é preciso fazer juízo de valor sobre qualquer tipo de união – [LGBTQIA+] ou mesmo no caso de mães que criam os filhos sozinhas – para sabermos que família é, antes de tudo, uma instituição, um conceito que carrega, em si mesmo, segundo a tradição que nos trouxe até aqui, uma série de valores que organizam não só a perpetuação da espécie como a prosperidade material e afetiva”. A destruição dos valores familiares é a destruição da periferia, dos pobres, dos pretos.
A destruição dos valores familiares é a destruição da periferia, dos pobres, dos pretos
Cultura
Diferentemente de muitas pessoas das gerações mais jovens, sempre me reconheci como negro e sempre amei a minha cor. Isso porque cresci numa família de negros que, além de muito conscientes, amavam aquilo que se convencionou chamar de cultura negra, sobretudo a música, o comportamento e o vestuário, com base no samba, na cultura black power e no hip hop. Foram essas coisas que me alimentaram por longos anos de minha infância e juventude. Minhas memórias musicais mais antigas – aliás, tema de um episódio do podcast que gravei com meu amigo e produtor musical Silvera – vêm de uma mescla do samba de minha mãe, do erudito de meu pai e de muita soul music de meus irmãos mais velhos. E nesse último quesito, a música, há um detalhe importantíssimo: a excelência está naquilo que é clássico – e que serve de base para praticamente tudo de bom que se produz hoje.
Por exemplo: o samba de Cartola, Clara Nunes, Beth Carvalho, Almir Guineto e Fundo de Quintal, que embalavam as festas de família, vale mais que tudo o que se produziu nos últimos 30 anos no gênero; as músicas de Neil Diamond, Dave Brubeck e Saint Preux (que era tema da Rádio Excelsior FM), que meu saudosíssimo pai ouvia, são incomparavelmente melhores que muita coisa que se produz hoje em dia. E, por fim, o sempre emocionante Michael Jackson (sobretudo o Little Michael), Con Funk Shun, Earth, Wind & Fire, Bar-Kays e The Mannhatans; bem como SWV, Kut Klose, Keith Sweat, Public Enemy, Arrested Development, Dr. Dre, Racionais e DMN são o que há de melhor na soul music e na cultura hip hop. Ou seja, todos aqueles que amam música de fato não têm dúvida de que nada do que se produz na atualidade é maior do que tudo o que se produziu no passado. Sem contar que o samba é um dos gêneros mais conservadores que existem. Exemplos como Não deixe o samba morrer, de Edson Conceição e Aloísio Silva – imortalizada por Alcione; ou Dia de Graça, de Candeia; ou, ainda, a linda e triste Menor Abandonado, de Zeca Pagodinho, Mauro Diniz e Pedrinho Flor – imortalizada por Zeca –, são uma aula de beleza e prudência.
E ainda temos os filmes de Spike Lee – sobre quem já escrevi uma série de sete artigos –, o Blaxploitation, os tênis de basquete, o corte de cabelo, tudo isso faz parte de uma tradição que urge ser conservada, pois é o que mantém o fio da cultura vivo, esse diálogo entre a continuidade e a mudança.
Iniciativa individual
Em dois artigos recentes, Liberdade contra a desigualdade e Liberdade contra o racismo, procurei demonstrar como a iniciativa individual e o espírito de associação, conceitos que estão nos fundamentos do liberalismo econômico e do capitalismo, e foram defendidos por André Rebouças como o principal motor de superação do escravismo no Brasil, eram indispensáveis para que os negros buscassem a ascensão socioeconômica e, consequentemente, fizessem frente ao flagelo do preconceito e da discriminação racial. No segundo artigo, usando como exemplo a notável empreendedora negra Madame C.J. Walker, afirmo: “não foi exatamente valendo-se de sua liberdade individual e de seu espírito de associação que Madame C.J. Walker saiu de sua condição paupérrima para tornar-se a mulher mais rica de seu tempo? Não foi usando de toda sua vocação empreendedora para os negócios – sim, pois [...] não restrinjo o empreendedorismo somente àqueles que se tornam empresários, mas à vocação para realizações várias – que ela conseguiu não só melhorar sua condição, mas a de milhares de mulheres e famílias negras em várias regiões dos EUA? Sim, foi”. E, no primeiro, afirmo que os princípios liberais “entram em rota de colisão com a ideia de igualdade pregada por coletivistas, que sonham com uma sociedade artificialmente igualitária – uma vez que somos naturalmente desiguais e a liberdade, essencialmente, acarreta em algum nível de desigualdade. No entanto, é necessário pensarmos em termos de princípios, não de experiências passadas nas quais tais princípios não existiam ou foram violados. Ou, ainda, pensarmos em como os proponentes de um sistema liberal viam as situações nas quais os princípios da liberdade foram violados. Jean-Baptiste Say e André Rebouças são dois exemplos já citados, mas há muitos outros.
Ou seja, na história da humanidade, pouquíssimas vezes as revoluções terminaram em ganhos reais para aqueles que se insurgiram. Não é incomum que, como diz o ditado, a corda estoure no lado mais vulnerável e as revoluções devorem seus filhos. O capitalismo, para além de suas controvérsias, é um sistema que surgiu e se constituiu organicamente, de modo que seus abusos atuais não são parte constitutiva de sua gênese. Pode-se discutir isso? Óbvio que sim. Mas também não podemos negar que, até o momento, nenhum sistema econômico foi capaz de superá-lo em resultados efetivos. Portanto, substituir o capitalismo por um sistema nascido de modo abstrato da mente de acadêmicos revolucionários, tendo como exemplo as frustradas e sanguinárias experiências que a história já nos legou, é algo que qualquer conservador olha com desconfiança, sobretudo se sua cabeça pode ser a primeira a rolar em nome do futuro imaginado por – pois é – burgueses europeus.
Espero com isso ter respondido à recorrente pergunta ou, pelo menos, trazido um pouco de racionalidade e informação a esse debate – que ainda não existe, mas tenho fé que existirá.
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