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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

O que é Filosofia, afinal?

A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio. (Foto: Wikimedia Commons)

O filósofo vive de problemas, como o ser humano de alimentos. Um problema insolúvel é um alimento indigesto […]. Através do filosofar, na medida em que este é uma operação absoluta, minha inteligência, porém, fora a incessante renovação, é também continuamente melhorada – o que, com os alimentos, só ocorre até um certo ponto no tempo. (Friedrich von Herdenberg, a.k.a Novalis)

Dias atrás, ao dizer a alguém que acabara de conhecer que sou professor de filosofia, fui indagado: “o que é filosofia, afinal?”. E, de repente, uma resposta que parecia bastante simples se desdobrou numa série de ponderações que, no final, fiquei sem saber se a pessoa realmente compreendeu o que eu disse. Por isso resolvi apresentar, aqui, a ti, caríssimo leitor, as definições que me parecem mais apropriadas. Evidentemente, trato da filosofia como esta se manifestou no Ocidente, via Grécia, pois, como diz o eminente Giovanni Reale, “se a superioridade dos gregos com relação aos povos orientais em outros âmbitos é – para dizer com uma imagem simplificadora – de natureza meramente quantitativa, no que se refere à filosofia a sua superioridade é de natureza qualitativa”.

Tendo isso em mente, vale a pena iniciar dizendo, propriamente, o que a filosofia não é; e quem pode nos ajudar nessa resposta é um dos primeiros filósofos gregos, o pré-socrático Parmênides de Eleia, que, em seu poema Sobre a Natureza, faz uma distinção entre a verdade e a opinião dos mortais. Diz ele: “[…] Terás, pois, de tudo aprender: / o coração inabalável da verdade fidedigna/ e as crenças dos mortais, em que não há confiança genuína”. Tal distinção acompanhará o pensamento filosófico até a modernidade, quando o relativismo questionará o próprio conceito de “verdade”. Nesse sentido, portanto, a filosofia, em seu nascimento ocidental, não é uma mera opinião, tampouco uma ideia vaga a respeito das coisas. Como diz Eric Voegelin em suas Reflexões autobiográficas (É Realizações): “O termo filosofia não tem significado em si mesmo, mas ganha sentido em oposição a filodoxia. Os problemas da justiça não se desenvolvem no nível abstrato, mas por oposição a concepções equivocadas de justiça que refletem a injustiça imperante na sociedade. O caráter do próprio filósofo ganha seu sentido específico quando contrastado com o do sofista, que deturpa a realidade para obter prestígio social e benefícios materiais”.

No entanto, todo aquele que deseja saber o que a filosofia é, deve, em primeiro lugar, saber que para tal pergunta não há respostas simples. Podemos oferecer algumas, sem ainda esgotar o assunto. Tratarei aqui de algumas definições clássicas, herdadas dos próprios gregos mas que reverberam ainda hoje no pensamento daqueles que procuram manter uma coerência lógica com a sua origem. Portanto, vamos lá:

Em seu sentido mais estrito – semântico e etimológico –, filosofia significa Amor à Sabedoria – a junção das palavras gregas philo (amor, amizade) e sophia (sabedoria). Segundo relatos antigos – o mais famoso é o do historiador Diógenes Laércio –, o termo foi, pela primeira vez, proferido por Pitágoras (Séc. 5 a.C), quando, ao ser chamado de sábio, protestou dizendo que só Deus poderia sê-lo. Diz ele, em seu clássicoVidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres (UnB): “Entretanto, Pitágoras foi o primeiro a usar o termo e a chamar-se de filósofo; com efeito, Heráclides de Pontos, em sua obra A Mulher Exânime, atribuiu-lhe, em conversa com Lêon, tirano da cidade de Fliús, a frase segundo a qual homem algum é sábio, mas somente Deus. Imediatamente esse estudo passou a chamar-se sabedoria, e seu professor recebeu o nome de sábio, para significar que atingira a perfeição no tocante a alma, enquanto o estudioso dessa matéria recebia o nome de filósofo”.

Em seu sentido mais estrito – semântico e etimológico –, filosofia significa Amor à Sabedoria

A filosofia também é a doutrina que busca conhecer as causas (razões) últimas de todas as coisas; um conhecimento que procura a essência de tudo. Um olhar que se lança profundo na realidade, ultrapassando aquilo que Josef Pieper, em seu Que é filosofar? (Loyola), chama de “mundo do trabalho”. Diz ele:

Numa primeira aproximação pode-se dizer o seguinte: filosofar consiste numa ação na qual o mundo do trabalho é ultrapassado. […] O mundo do trabalho é o mundo cotidiano do trabalho, o mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da renda, o mundo da fome e da necessidade de saciá-la. […] Supondo que seja correto o enunciado, filosofar significa transcender o mundo do trabalho e, portanto, faz parte da essência do ato filosófico justamente não ser próprio deste mundo das utilidades e eficiências, da necessidade e do rendimento, desse mundo do bonum utile, da utilidade comum, mas ser, por princípio, incomensurável com ele.

Ultrapassar o mundo de utilidade e do trabalho significa atingir o mundo da contemplação, “do puro olhar receptivo sobre a realidade, no qual só as coisas dão as medidas, e a alma é exclusivamente receptora destas”.

Mas, ao que parece, falar em buscar a essência das coisas numa época quase completamente contaminada pelo existencialismo sartreano e seus assemelhados, que erigiram o primado da existência sobre a essência, parece, no mínimo, um anacronismo de religiosos. No entanto, Voegelin, que talvez tenha sido o filósofo contemporâneo que mais procurou uma reaproximação com o pensamento grego antigo, diz que o fez justamente porque o pensamento contemporâneo é um descarrilamento do clássico, que tratava de “experiências que engendram símbolos”, buscando uma compreensão profunda da realidade na busca pela verdade (no sentido parmenidiano). Ele explica, nas Reflexões:

Atualmente, nenhum símbolo de linguagem pode ser aceito bona fide, pois a corrupção chegou a tal ponto que tudo deve ser visto como suspeito. Ao empenhar-me nessa busca, descobri que era preciso investigar o sentido de filosofia como um símbolo criado pelos filósofos clássicos, determinando seu significado com base nos textos. Deslocamentos semânticos como os sofridos por esse símbolo ao longo do tempo devem ser estabelecidos com cautela, remetendo os símbolos ao seu sentido original. Somente com esses estudos comparativos podemos julgar se uma mudança de sentido se justifica (por incorporar aspectos da realidade que estavam ausentes do sentido original) ou não (por excluir certos elementos a fim de construir um conceito novo e incompleto).

Nesse sentido, para Voegelin, filosofar significa “resgatar a realidade”, cujas aspirações são “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”. E também “investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia-a-dia”, “desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica” e, por fim, conduzir esse trabalho não “somente em oposição às ideologias deformadas, mas também à deformação da realidade por intelectuais cuja obrigação seria preservá-la, como os teólogos”.

Portanto, o sentido de buscar as essências é mais do que atual, haja vista que filósofos contemporâneos – tais como Gabriel Liiceanu, Roger Scruton e o próprio Voegelin –, denunciam tal deformação dos conceitos clássicos por meio de ideologias que trouxeram uma verdadeira desordem na alma dos indivíduos e, consequentemente, na sociedade como um todo. E caso não aceitemos, inequivocamente, a ideia absoluta de essência, podemos, pelo menos, considerarmos as ponderações de Julián Marías, em sua Introdução à filosofia, que julga a filosofia como uma pretensão: “Esta é a forma concreta em que encontro a filosofia: ela pretende tradicionalmente oferecer a certeza absoluta, e por isso me vejo obrigado a contar com ela. Mas a este elemento junta-se hoje outro decisivo e que altera a situação: ao lado dessa pretensão da filosofia encontro também, na mesma forma de realidade social, a dúvida de que seja só uma pretensão. Em outras palavras, não encontro uma filosofia vigente mas sim a dramática história dessa pretensão humana que conhecemos pelo nome de história da filosofia”.

Por fim, a filosofia pode ser compreendida – segundo a concepção mais remota – como o desejo mais íntimo do ser humano e sua realização mais excelente. Um saber que se pretende divino, ou, pelo menos, ligado à divindade. É a acepção atribuída aos pitagóricos, que, de certa forma, amalgamavam – como fez Platão, um notório pitagórico –, ciência e fé como uma maneira de ascender existencialmente e, como diz John Burnet em A aurora da filosofia grega, “escapar à 'roda'” [do destino]; como diz um antigo testemunho a respeito de Pitágoras – registrado por Reale em sua História da Filosofia: “Tudo o que os Pitagóricos definem sobre o fazer e o não fazer tem em vista a comunhão com a divindade: esse é o princípio, e toda a vida deles se ordena a esse objetivo de deixar-se guiar pela divindade”.

Essa visão mística da filosofia foi amplamente difundida por Platão e (nos primeiros escritos de) Aristóteles – os mais importantes filósofos de todos os tempos. Segundo este último, o intelecto é a melhor parte (a mais divina) em nós, e é essa parte que também exerce a atividade mais excelsa e divina de todas, que é a especulação filosófica. Diz ele, na Ética a Nicômaco:

Mas se a felicidade consiste na atividade de acordo com a virtude, é razoável que seja atividade de acordo com a virtude maior, e esta será a virtude da melhor parte de nós. Se é o intelecto ou alguma coisa mais essa parte ou elemento que se considera ser nosso governante e guia natural, e que é capaz de conhecer o que é nobre e divino, ou se é ele próprio também divino, ou apenas a parte relativamente mais divina dentro de nós, é a atividade dessa parte de nós, em harmonia com a virtude que lhe é própria, que constituirá a perfeita felicidade; e já foi indicado que essa atividade é aquela da especulação.

Inclusive sua obra mais importante, a Metafísica, inicia com a afirmação de que “todos os homens, por natureza, tendem ao saber”.

Ou seja, o desejo de conhecimento é, segundo os Antigos, uma necessidade natural do ser humano, e quem assim não procede, parece estar contra sua própria natureza. Desse modo, a filosofia é a aspiração máxima da alma, o desejo não só de conhecimento, mas de aproximarmo-nos de Deus. Em sua obra Protréptico, escrita ainda sob grande influência platônica – publicada no Brasil como Convite à Filosofia (Landy), Aristóteles descreve, de uma maneira bastante contundente e poética, a importância da Filosofia:

Nada de divino ou de bem-aventurado, portanto, cabe aos homens, exceto esta única coisa digna de ser levada a sério: o que há em nós de inteligência e de sabedoria. Na verdade, dentre as coisas que são nossas, esta parece ser a única imortal, a única divina... E porque somos capazes de participar desta capacidade, a vida, embora miserável e difícil por natureza, foi, entretanto, disposta minuciosamente para que o homem, comparado com os outros seres, pareça um deus. ‘Pois a inteligência é em nós um deus’, e ainda: ‘a vida mortal tem uma parte divina’. Assim sendo, portanto, é preciso filosofar, ou ir embora daqui de baixo dando adeus à vida, visto que todo o resto parece um amontoado de futilidades e frivolidades.

Espero que tais definições sirvam de exortação àqueles que, até então, têm desprezado o conhecimento como um capricho para poucos. Mas, também, que sejam um estímulo aos que já o tem buscado a fim de qualificar suas reflexões, e um despertar àqueles que sentem o chamado ao pensamento filosófico elaborado. Assim, quem sabe um dia, poderemos aspirar, como Platão, n'A República, que os mais altos postos do governo sejam ocupados pelos melhores:

Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada.

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