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O valor das exceções

Cena do filme "Kevin Hart's Guide to Black History". Foto: Reprodução/Netflix (Foto: )

“O homem que se contenta com ser apenas ele próprio, e por conseguinte em ser menos, vive numa prisão. Para mim, os meus próprios olhos não são suficientes, quero ver através dos olhos de outras pessoas”. (C. S. Lewis)

Desde que me entendo por gente, não posso dar um passo sequer, ao falar a respeito de mim mesmo, sem me referir aos meus pais e toda a influência que tiveram sobre mim para que eu me tornasse quem sou. A minha biografia está intimamente relacionada com as deles. Mas não só: todos os meus amigos, parentes próximos, professores… enfim, todas as pessoas que passaram por minha vida e que foram por mim individualizadas, distinguidas da multidão, de certo modo me influenciaram.

Lembro de meu saudoso pai falando sempre de um homem, seu primeiro chefe em seu primeiro emprego, nos hoje longínquos anos de 1950, que o influenciara profundamente. Transmitiu a ele o amor pela arte, pela música, pela boa comida, pela literatura, pelo cinema; mas, sobretudo, transmitiu a ele virtudes. Meu pai não conviveu com o próprio pai, ele e seus irmãos foram criados, com muita dificuldade, só pela minha avó, que por eles fez tudo o que pôde. Mas aquele homem marcaria sua vida de maneira indelével; faria o papel do pai que ele não teve, lhe transmitindo valores – materiais e imateriais – que ele carregou por toda vida. Mas quantos como aquele homem passaram pela vida de Antônio da Cruz? Um. Uma exceção, portanto. Absolutamente marcante, contudo.

Qual o valor de um exemplo, de uma referência? Ninguém pode medir, mesmo porque essas coisas têm efeitos individuais distintos. Platão diz, através de Sócrates, no diálogo Mênon, que a virtude é um dom divino, não pode ser ensinada. No entanto, pode ser despertada – como ele mesmo prova, durante a discussão com Mênon. E os exemplos nos ajudam nesse despertar.

Recentemente assisti, no Netflix, um filme chamado Kevin Hart’s Guide to Black History, uma espécie de documentário no qual o famoso ator de Um espião e meioPolicial em apuros (1 e 2), apresenta à sua filha (interpretada pela atriz Saniyya Sidney), que estava chorando ao assistir Doze anos de escravidão e ver o sofrimento dos negros escravizados, uma série de personagens negras célebres da história americana, que são pouco conhecidas. Hart diz: “A história negra não se resume a chicotadas […] Há casos inspiradores de negros que mostraram coragem, inteligência e criatividade incríveis diante desses horrores”.

E então conta as histórias surpreendentes e curiosas de, por exemplo, Henry “Box” Brown, que fugiu da escravidão numa caixa que ele mesmo, com a ajuda de um sapateiro (branco, diga-se), enviou à Filadélfia. Ou Robert Smalls, um escravo barqueiro que, na Guerra de Secessão, fugiu, lutou pelo exército da União e convenceu, pessoalmente, o presidente Abraham Lincoln a deixar os negros lutarem por sua própria libertação na guerra. Tornou-se um capitão condecorado da Marinha e, com o fim da guerra, se tornou um grande empresário e político. Ou Mae Jamison, a primeira astronauta negra – cuja insistência com a Nasa, demonstrada no filme, é um exemplo de persistência em busca dos objetivos.

Ao falar sobre o músico Robert Johnson, considerado o inventor do blues, Hart diz: “Robert Johnson e outros saíram do nada, mas realizaram grandes feitos; e você também pode realizar”. A mocinha interpela: “Nascendo um gênio da música?”. E ele responde: “Não. Trabalhando pesado e sem se abater.”

Por aqui as coisas não foram tão diferentes. Tenho me esforçado, pessoalmente, para trazer à tona grandes exemplos de negros célebres de nossa história, que foram ofuscados pela narrativa socialista do movimento negro atual, que rejeita o mérito e os modelos inspiradores, os chamando, pejorativamente, de exceção – com se as exceções não fossem fontes de virtude e inspiração. Não estou fazendo isso por preciosismo ou coisa que o valha; mas simplesmente por saber que da mesma forma que os exemplos foram fundamentais para a minha vida, podem ser para outros jovens negros e pobres da periferia, que sem referências, acabam por sucumbir ao crime – como diz a letra do Racionais MC’s: “ele se espelha em quem tá mais perto”.

Por que não falam de Henrique Dias (?-1662), o heroico capitão que lutou contra a invasão holandesa em Pernambuco, comandando um pelotão de escravos (que foram libertos a pedido dele) e tornando-se, posteriormente, seu governador – o Terço de Henrique ou Henriques? Henrique Dias perdeu a mão esquerda numa batalha; mas, mesmo assim, continuou lutando e ajudou os colonos a vencerem a guerra. Foi condecorado pela Rainha Consorte e recebeu o Hábito da Ordem do Cristo. Um grande exemplo de força, honra, compromisso e lealdade.

Ou de Tobias Barreto (1839-1889), grande jurista, poeta e filósofo, liberal e abolicionista, que aprendeu a língua alemã sozinho, a fim de estudar os filósofos alemães da época, como Haekel e Kant? Barreto foi um dos principais responsáveis por tornar a filosofia alemã conhecida no Brasil. Foi crítico literário e cultural, analista político, além de um exímio jurista, lembrado por muitos professores, estudantes de direito e advogados na região nordeste do Brasil.

Ou, ainda, a história surpreendente de Francisco de Paula Brito (1809-1861), garoto pobre do interior do Rio de Janeiro, neto de escravos, que, inspirado por seu avô, que era escultor e discípulo de Mestre Valentim (outro negro célebre), aprendeu a ler com a irmã, mudou para a capital aos quinze anos, conseguindo um emprego de aprendiz de tipógrafo. Daí para se tornar o primeiro editor de livros brasileiro, sendo responsável por empregar, em sua tipografia, ninguém menos que Machado de Assis – então com quinze anos –, e publicar o primeiro livro do Bruxo de Cosme Velho. Editou também o primeiro jornal abolicionista – O Mulato ou o Homem de Cor – e o primeiro jornal voltado ao público feminino – A Mulher de Simplício. Criou uma agremiação de intelectuais chamada Sociedade Petalógica, que reunia poetas, juristas, romancistas, políticos, médicos etc.. Morreu coberto de honrarias.

Há inúmeros exemplos no Brasil, que, infelizmente, foram trocados por um único, lendário e manipulável, chamado Zumbi dos Palmares. Esse é, atualmente, o único exemplo célebre que o movimento negro admite. Todos os outros são recusados por não terem sido revoltados o suficiente, por não terem assumido uma personalidade revolucionária que servisse de trampolim para as narrativas dos políticos que se apossaram da causa do negro brasileiro. Zumbi mantém a chama revolucionária acesa, não para que os jovens negros, que hoje crescem totalmente sem referência, tenham um modelo a seguir, mas tão somente para garantir que os movimentos políticos de esquerda – e toda estrutura de vantagens acadêmicas (bolsas, editais, dinheiro de fundações internacionais) que se criou em torno deles – continuem a se beneficiar do voto negro.

Henrique Dias, Tobias Barreto, Paula Brito, José do Patrocínio, André Rebouças, Teodoro Sampaio, Machado de Assis, Cruz e Souza, Ernesto Carneiro Ribeiro, Chiquinha Gonzaga, José Maurício Nunes Garcia, Arthur Timóteo, Teixeira e Souza e muitos outros só servem atualmente para figurar em teses acadêmicas e posts comemorativos em páginas do movimento negro; só isso. Pois tal movimento, escravizado ideologicamente pela esquerda, não tolera histórias inspiradoras cujo caráter não seja revolucionário e destrutivo.

Isso os leva a cometer imposturas vergonhosas como escurecer o terrorista Carlos Marighella para fazê-lo preto. Com que finalidade? Para inspirar jovens negros a transformarem seu inconformismo em força moral e superarem suas dificuldades em busca de um futuro melhor? Não. Apenas para insuflar o ódio e o ressentimento político; apenas para tornarem mais negros reféns dessa ideologia nefasta que nunca se preocupou, de fato, com os negros e pobres, mas tão somente os usou para atingir seus objetivos políticos totalitários.

É uma pena que o filme de Kevin Hart não inspire cineastas brasileiros a contarem a história de tantos negros célebres que o Brasil produziu. É uma pena que muitas biografias inspiradoras sejam soterradas por ideologias nefastas. É uma pena.

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