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“Desejos estranhos o atormentavam: assim, depois da meia-noite, sentiu uma vontade irresistível de descer, de abrir a porta e ir ao pavilhão dar uma surra em Smierdiákov, mas, se lhe tivessem perguntado por que, não teria podido indicar um só motivo, salvo talvez que aquele lacaio se lhe tornara odioso, como o pior ofensor que existisse. Por outra parte, uma timidez inexplicável, humilhante, invadiu-o várias vezes, paralisando suas forças físicas. Sua cabeça girava, doía-lhe. Uma sensação de ódio aguilhoava-o, como se fosse ele vingar-se de alguém. Odiava até mesmo Aliócha, lembrando-se de sua recente conversa, e, por instantes, detestava a si mesmo.” (Dostoiévski, sobre Ivan n’Os Irmãos Karamázov)
O ódio é um sentimento natural no ser humano; aliás, somente o ser humano pode odiar. É uma sensação pouco nobre, é fato, mas, por vezes, inevitável. Eu, por exemplo, talvez nunca tenha sentido tanto ódio como o que senti ao chegar em minha casa após um furto e deparar-me com absolutamente tudo revirado. Estava em viagem de férias depois de um ano deveras estafante, quando uma vizinha nos ligou e disse: “roubaram sua casa”. Na hora, só desespero e tristeza; mas, ao chegar, entrar em casa e ver a situação de calamidade em que deixaram, senti um ódio profundo. Correram e não levaram tudo – graças a Deus –, pois um vizinho os viu (eram quatro criminosos) e eles fugiram, deixando para trás as coisas maiores, seus chinelos e um pé de cabra. Ódio.
Eis o ódio comum, inarticulado, passivo. Todos os que são capazes de amar já odiaram alguma vez. De repente, um evento e ei-lo, avassalador, por vezes incontrolável, fruto de um mal sofrido. Segundo São Tomás de Aquino na Suma Teológica, o ódio é uma dissonância ao que nos é natural, pois “assim como cada uma tem consonância ou aptidão natural ao que lhe é conveniente, e isso é o amor natural, assim também ao que é contrário e nocivo tem dissonância natural e isso é o ódio natural” (II,q.29,a.1). Sem esquecer que, por vezes, claro, o ódio é ativo, posto ser fruto do autoengano, do exagero e da incapacidade de lidar com as adversidades.
O ódio é um sentimento natural no ser humano; aliás, somente o ser humano pode odiar. É uma sensação pouco nobre, é fato, mas, por vezes, inevitável. Mas este é o ódio comum, inarticulado, passivo. Há um outro tipo.
Mas há ainda um outro tipo de ódio, que não mais se dirige a um ente ou situação específica, mas é o ódio articulado como ideologia. E quem muito sabiamente refletiu sobre isso foi o filósofo romeno Gabriel Liiceanu – que considero, guardadas as devidas proporções, uma espécie de Platão de nossos dias. A obra em questão, Do ódio – fruto de um conjunto de conferências universitárias que proferiu na Romênia e que foram publicadas em português (os outros são Da mentira e Da sedução) –, apesar de suas pouco mais de 100 páginas, nos traz um retrato muito interessante e profundo do chamado ódio ideológico.
Liiceanu inicia dizendo que, para além do ódio naturalmente ativo e passivo, como descrevi acima, “desde o final do século 19 a história da humanidade se define pela explosão periódica, simultânea ou alternativa de quatro tipos de ódio: o ódio de classe, de raça, de nação e o ódio religioso”, e aponta Julien Benda e seu A traição dos intelectuais como o melhor tratado a esse respeito. No entanto, Liiceanu empreende sua própria análise, partindo de uma constatação dos aspectos psicológicos do ódio, passando pelo exemplo do ódio espontâneo presente no fratricídio bíblico de Caim contra Abel e verificando que “ao contrário do amor, por exemplo, cuja satisfação pode multiplicar-se ao infinito nos limites desse mesmo objeto, o ódio em sua forma originária, caiminiana, não pode ‘realizar-se’ de maneira absoluta senão uma única vez, juntamente com o crime”.
No entanto, diz Liiceanu, “a humanidade teve de esperar até o final do século 19 para que as ‘insuficiências’ do ódio originário – a satisfação limitada, a direção única, o castigo, o opróbrio, o sofrimento ou remorso – fossem eliminadas e substituídas pelo oposto delas. Era necessário que o ódio se transformasse numa paixão honrada [...]. Para fazer do ódio um sentimento preferível ao amor, para fazer do crime algo bom, e do autor dele um herói, para pôr, em lugar do remorso, o respeito de si e, em lugar do pecado supremo, a façanha que devia ser encorajada, louvada e recompensada”, era preciso um elemento miraculoso. Que elemento é esse? É a descoberta de que o ódio pode ser organizado, “culto e cultivado”. Pode ser “induzido, argumentado, explicado, teoretizado, previsto como um escopo, com um programa e posto de modo sistemático a trabalhar”. Tal é o ódio organizado intelectualmente como ideologia, que, desse modo, passa a ter “dignidade histórica e aura científica. E o crime que o acompanha é, a seu turno, enobrecido, porque a finalidade a que ele serve sonha com o bem para muitos e, no limite, para toda a humanidade”.
Outra característica desse ódio, como nos aponta Liiceanu, é a impessoalidade. De posse desse ódio pode-se tudo, pois, como ele diz:
“Já não se odeia uma pessoa isolada, odeia-se uma pessoa como agente de uma categoria. Odeia-se uma hipóstase englobadora, odeia-se um ‘como’ explicativo-categorial […] Odeia-se a alguém como; odeias alguém como burguês, como hebreu, como cigano, como intelectual, como islamita, como americano, como húngaro etc. Em conclusão, o ódio tornou-se impessoal à medida que nem o que odeia é uma pessoa isolada (mas membro de um grupo, de uma organização, de um partido, de um ‘movimento’ etc. Nem o que é odiado é isolado, mas pertence a uma categoria (de classe, de raça, de nação, de religião).”
E esse não é, caro leitor, a característica fundamental do ódio cultivado pelas militâncias políticas? O alvo de Liiceanu é, sobretudo, Karl Marx e todo o mal que o comunismo causou e ainda causa, em seus resquícios – como ele bem demonstra em Da mentira, apresentado por mim aqui –, na Romênia. No entanto, é perfeitamente possível aplicarmos a mesma análise a qualquer tipo de militância ideológica, pois alimenta o ódio como paixões políticas – tais como o ódio de raça, o ódio de classe e o ódio nacional. Diz Liiceanu, amparado por Benda, que “todos [os diferentes ódios] encontram, num povo ou noutro, teóricos eminentes, ou seja, homens capazes de ‘organizá-las intelectualmente’. […] Tornando-se políticas, estas ‘paixões’ pressupõem o treinamento de grandes massas de homens no vórtice delas, coisa possível em virtude do fenômeno descrito por Ortega y Gasset sob o nome de ‘revolta das massas’ (que não é outra coisa do que a aparição de grandes aglomerados humanos na cena do mundo e um determinado modo de perceber e de sentir juntos e da mesma maneira)”.
Petismo e bolsonarismo são absolutamente iguais, pois é da natureza desse tipo de militância o ódio como paixão política, de amor incondicional pelo governante ou por seu projeto de poder
E sou testemunha, caro leitor, de que se tínhamos, até 2018, uma militância que se permitia odiar livre e exclusivamente a todos os que ousassem, publicamente, criticar os governos petistas, atualmente ela pode orgulhar-se de dividir, em igual radicalismo – com seus organizadores intelectuais e seus alvos impessoais (liberais, isentões, traidores etc.) –, com a militância bolsonarista o seu furor ideológico. Sim, são absolutamente iguais, pois é da natureza desse tipo de militância o ódio como paixão política, de amor incondicional pelo governante ou por seu projeto de poder. É um ódio canalizado e introduzido numa “equação de felicidade”, pois, “uma vez que o escopo do ódio se tornou honrado (como não odiar um traidor?), a ideologia torna herói o que odeia e mata e que, em vez de receber um castigo pelo crime, recebe uma recompensa pelo seu ‘ato’. O homem enquadrado por uma ideologia pode odiar livremente e igualmente pode ter orgulho desse ódio”.
É isso que tenho visto e, de certo modo, vivido por, sendo de direita, não ter aderido ao projeto bolsonarista. Não que me preocupe com isso, pois, como disse recentemente, sou incancelável e assim manter-me-ei diante da escalada do ódio retórico, pois nada tem a perder aquele que nada tem. O que quero é, vez por outra e reiteradas vezes, como quem registra as impressões do tempo presente num diário, apontar a essa nova militância sua face sombria como num espelho. E que venha o azorrague.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos