“Porém
o enganou o bravo filho de Jápeto:
furtou o brilho longevisível do infatigável fogo
em oca férula; mordeu fundo o ânimo
a Zeus tonítruo e enraivou seu coração
ver entre homens o brilho longevisível do fogo.”
(Hesíodo, A
história de Prometeu, In: Teogonia)
Ao terminar, na sala IMAX, a sessão de Oppenheimer, colosso cinematográfico de Christopher Nolan sobre a ascensão e queda do diretor do Laboratório Nacional de Los Alamos, J. Robert Oppenheimer, o homem que ficou conhecido como o “pai da bomba atômica”, por alguns segundos não consegui me mover de meu assento. Estava atônito. Meus olhos marejaram. Ao sair da sala, comprei um doce e um café para restabelecer o equilíbrio, entrei no site de venda de ingressos e comprei para ver novamente. Dias depois, fui de novo. O mesmo choque, o mesmo êxtase.
Muita gente já escreveu sobre o filme, e a história, até para quem não foi ao cinema ou leu a biografia na qual Nolan se baseou – Oppenheimer – o triunfo e a tragédia do Prometeu Americano –, já se tornou popular. O cientista teórico que foi designado, durante a Segunda Guerra Mundial, para coordenar o Projeto Manhattan, de pesquisa e desenvolvimento de energia nuclear para fins bélicos – ou seja, as famigeradas bombas atômicas – e todo o injustíssimo julgamento pelo qual passou após o sucesso do empreendimento, são aterrorizantes por si só. O modo como a sanha macarthista perseguiu, acusou e condenou pessoas cujas ações tinham muito pouco (ou nada) a ver com projetos políticos revolucionários também é fartamente conhecida. Oppenheimer foi só mais uma vítima.
Entretanto, para fugir do lugar-comum, gostaria de trazer ao leitor uma reflexão subjetiva, de minha experiência e sensações ao ver esse que é, muito provavelmente, a maior obra-prima do diretor de maravilhas como Dunkirk, Interestelar, Batman – O Cavaleiro das Trevas e Amnésia. Com um time de estrelas do porte de Robert Downey Jr., Matt Damon, Florence Pugh, Emily Blunt e Rami Malek (em curta, mas muito interessante participação), e uma interpretação gloriosa de Cillian Murphy – o Tommy Shelby de Peaky Blinders –, Nolan constrói uma trama épica avassaladora, numa união de som e imagem que só ele é capaz de fazer. Em IMAX, então, a coisa toda vai a patamares do extraordinário, dando-nos a exata experiência da qual Aristóteles falava a respeito da tragédia grega, de uma catarse, uma purificação de emoções.
Oppenheimer é um filme que deve (ou deveria) ser visto no cinema. A exibição em streaming não reduzirá a qualidade do trabalho de mestre de Chris Nolan, mas certamente reduzirá em muito a experiência do espectador
Em sua Poética, diz o Estagirita: “A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação [katharsis] de tais paixões”. Tal é a sensação que tive ao terminar o filme, uma purgação que veio através de involuntárias lágrimas. Toda a tensão que perpassa a trama até que a bomba seja finalmente lançada sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, em vez de diminuir, aumenta com o tortuoso julgamento “informal” instaurado a fim de investigar as supostas atividades subversivas de Oppenheimer, por vingança de Lewis Strauss, presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos.
A trilha, soberba, composta pelo jovem compositor sueco Ludwig Göransson, aliada à fotografia estonteante (em IMAX 65mm, usando, pela primeira vez, seções em preto e branco) de Hoyte van Hoytema, habitual colaborador de Nolan, e ao roteiro impecável, vai nos arrebatando de tal forma que me lembrei das sensações que me causaram as óperas de Wagner. Friedrich Nietzsche, que reconheceu em Wagner a capacidade ímpar de reproduzir, em seu drama musical, a catarse das tragédias gregas, é preciso em seu Wagner em Bayreuth:
“Wagner [...], que foi o primeiro a reconhecer as lacunas intrínsecas ao drama falado, deu ao processo dramático uma tripla expressão, através da palavra, do gesto e da música; a música transmite imediatamente as profundas emoções dos personagens do drama para a alma dos ouvintes, que percebem agora nos gestos desses mesmos personagens a primeira manifestação visível daqueles processos internos e, depois, na língua falada uma segunda aparição, mais pálida, desses mesmos processos traduzidos em um querer mais consciente. Todos esses efeitos acontecem simultaneamente, sem prejudicar de forma alguma uns aos outros, e impõem ao que assiste à representação de tal drama uma compreensão e uma vivência inteiramente novas, como se os seus sentidos subitamente se espiritualizassem e seu espírito se tornasse sensível, como se tudo que procura sair do homem e que tem sede de conhecimento se encontrasse agora livre e bem-aventurado em um júbilo de conhecimento.”
Eis, semelhante, a ópera de Christopher Nolan, épica, lírica e trágica. Não é à toa que as três horas de exibição passem imperceptíveis – pelo menos para aqueles que compreendem tudo o que está acontecendo na tela (e fora dela, e em si mesmos). Passados aqueles primeiros momentos de formação do jovem cientista Robert Oppenheimer, a escalada de tensão, com a criação do laboratório em Los Alamos, naquela inóspita paisagem no Novo México contrastada com o potencial de destruição dos experimentos científicos que lá estavam sendo produzidos, incluindo os dramas pessoais, os entraves políticos e, óbvio, a guerra que avançava com um inimigo que era a própria personificação do mal, somos envolvidos em sentimentos contraditórios, quase tomados pelo delírio paradoxal da população ao saber do sucesso das bombas.
Oppenheimer é um filme que deve (ou deveria) ser visto no cinema. A exibição em streaming não reduzirá a qualidade do trabalho de mestre de Chris Nolan, mas certamente reduzirá em muito a experiência do espectador. Vi duas vezes, e veria mais se pudesse. Espero que você, caro leitor, tenha a mesma oportunidade.
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