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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Militância

Os “cortes” como guilhotinas da internet

O ativista Paulo Galo em participação no podcast Noir. (Foto: Podcast Noir)

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“Manipulação e uso tendencioso das informações não produzem apenas fatos fictícios, mas também pessoas fictícias.” (Thomas Sowell)

Se o atento leitor se lembra de meu artigo da semana passada, sabe que, para mim, um dos maiores problemas brasileiros – se não o maior – é a falta de consciência do que somos de fato, tanto individual quanto coletivamente. O estetismo, a valorização da aparência, se manifesta tanto no nível meramente físico, de nosso culto à beleza – somos o segundo país do mundo com a maior quantidade de cirurgias plásticas (éramos o primeiro até 2021) –, em nossa religiosidade numericamente expressiva, mas praticamente irrelevante (quando não doentia), e até em nossa pretensão à inteligência. Basta um rápido exame em nossas memórias para notarmos o quanto nossos mais badalados pensadores são caricatos, com seus maneirismos e suas vozes empostadas. Uma intelectualidade provinciana sustentada por frases de efeito e fórmulas de autoajuda. Como diz Fernando Pessoa em seu Poema em linha reta: “São todos o ideal, se os oiço e me falam”.

Mas tal falsidade não é nova. Sócrates, o homem mais sábio de toda a Grécia segundo o Oráculo de Delfos, ao receber essa notícia, em vez de ufanar-se, teve um sobressalto, pois, como disse ele na Apologia: “Tenho plena consciência de não ser nem muito sábio nem pouco. Qual o motivo, então, de haver ela [a profetisa] afirmado que eu sou o mais sábio dos homens?” A dúvida em relação à profecia e a certeza de que o oráculo não poderia mentir o fez iniciar uma investigação entre aqueles que considerava os verdadeiros sábios, a fim de dirimir um possível equívoco. Qual não foi a sua surpresa ao interpelar um importante político e perceber que, “no decurso de nossa conversação, quis parecer-me que ele passava por sábio para muita gente, mas principalmente para ele mesmo, quando, em verdade, estava longe de sê-lo”. Tal constrangimento se repetiu com todas as importantes autoridades que ele inquiriu, disso resultando sua condenação à morte.

A manipulação de coisas que as pessoas dizem a fim de acusá-las pelo elas não dizem é um problema milenar.

Sócrates foi condenado por acusações infundadas, por colocarem em sua boca coisas que ele não disse e lhe atribuírem comportamentos que não eram os seus. Diz ele: “Como num processo regular, precisarei apresentar-vos o teor da acusação: Sócrates erra por investigar indevidamente o que se passa embaixo da terra e no céu, por deixar bons os argumentos ruins e também por induzir outros a fazerem a mesma coisa”. Em sua defesa, afirma: “a verdade, Atenienses, é que nada tenho que ver com tudo isso. Apelo para o testemunho de quase todos vós, e vos concito a vos informardes reciprocamente e a contardes o que em tantas ocasiões me ouvistes enunciar. Entre vós há muitos capazes disso. Dizei, por conseguinte, se, em qualquer tempo, algum de vós me ouviu falar ou muito ou pouco acerca de semelhantes tópicos. Por esse exemplo podereis concluir que o mesmo se passa com tudo o mais que o povo diz a meu respeito”. Não adiantou: Sócrates foi cancelado.

A manipulação de coisas que as pessoas dizem a fim de acusá-las pelo elas não dizem, como vimos, é um problema milenar. O leitor mesmo deve se lembrar de muitos casos em que isso ocorreu na história antiga e recente. Mas, com a internet e a proliferação dos chamados “cortes” em podcasts e programas de maneira geral, temos uma nova modalidade de julgamento popular. E um exemplo recente, ocorrido comigo mesmo, me ajudará a provar a relação entre tal procedimento e nosso maior mal.

Em 21 de junho de 2022, eu e meu antigo parceiro de Noir Podcast, Felipe Flip, recebemos o ativista e líder do movimento Entregadores Antifascistas, Paulo Roberto da Silva Lima, mais conhecido como Paulo Galo (ou Galo de Luta). Galo é um aguerrido defensor do direito dos motofretistas (e/ou motoboys), sobretudo os que trabalham como autônomos para serviços de delivery, além de ter sido um dos perpetradores do, para dizer o mínimo, questionável incêndio à estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Na ocasião eu estava em minha casa, com Covid, de modo que fiz o programa remotamente. Galo é um ativista muito articulado e contundente, de discurso inflamado, por vezes irado e cheio de ganchos e chavões que caem bem no gosto do ouvinte suscetível. Mas, vale destacar, é um sujeito de ótima conversa, boa praça, como dizem.

O episódio teve a duração de quase quatro horas e meia, e falamos sobre uma grande quantidade de temas, a maioria deles relacionados à nossa diversa visão de mundo, de como ele enxerga a sociedade de mercado e como eu a enxergo. Flip, em tese, concordou com ele. Galo tem forte influência marxista – apesar de dizer nunca ter estudado profundamente o marxismo –, e acredita que o grande problema do mundo é o capitalismo; discurso esse que transparece em sua luta a favor dos motoboys e contra a famigerada uberização do trabalho. Para ele, serviços de aplicativo como o iFood usam a tecnologia para explorar os motoqueiros. Como ele disse numa entrevista: “A tecnologia tem de servir para ajudar as pessoas, não para criar um sistema que só pensa em lucrar, lucrar, lucrar. E é por isso que hoje eu estou lutando para tentar barrar essa uberização do trabalho, para que no futuro ninguém tenha de passar por isso que a gente passa, que não tenha de ir para a rua lutar porque, olha, vou te contar, é muito difícil. Mas é necessário”.

Em minha longa conversa com Galo, em determinado momento o aplicativo de entrega de refeições entrou em pauta (o leitor pode conferir aqui). Para ele, os aplicativos funcionam na lógica da exploração pura e simples; os entregadores, sob sua “tutela”, trabalham mais para ganhar menos, e isso é injusto. Para ele, não importa que o trabalho de entregador por aplicativo tenha aumentado mais de 60% em menos de dez anos – de 540 mil em 2016 para 1,6 milhão em 2021 (números que já devem ter aumentado). Para ele, não importa que, segundo pesquisa do Cebrap, “o porcentual de profissionais que recebem de 3 a 6 salários mínimos é 39%. Os que ganham mais que isso são 19% [...]. Somente 1% tem renda que não passa de 1 salário. A parcela dos entregadores que chegaram ao ensino superior [é de] 9%”. Mas esse é, para mim, o dado mais chocante: “Os que querem ou querem muito continuar trabalhando como entregadores são 78%. Os que têm ou têm muita vontade de deixar a ocupação somam 14%”.

Ou seja, não importam a expansão das oportunidades de trabalho, o aumento considerável de oferta de empregos e a flexibilidade nos contratos que têm um trabalhador como esse num país que sempre se bateu com o problema do desemprego. Ao meu interlocutor tampouco interessa a concorrência de uma cooperativa de entregadores, por exemplo, pois ele disse que seria uma luta inglória, uma vez que o iFood é uma empresa gigantesca que esmagaria qualquer iniciativa. Para ele, o correto seria expulsar o iFood, que cobra R$ 3 por entrega, e assumir o serviço com uma cooperativa dos motoboys, cobrando R$ 6. E ele defende sua peculiar visão da seguinte maneira:

“Eu não acredito que a gente tem de criar uma cooperativa, e vir para esse bairro aqui concorrer com a iFood. Eu acredito que a gente tem de criar nossa cooperativa, o nosso aplicativo, chegar aqui, fazer uma greve, expulsar o iFood e dizer pra você: ʻÉ nóis que entre e é nós que vai dizer pra você por onde tem de ser entregado [sic]. A gente não quer o iFood aqui, então a gente expulsa o iFood daqui...ʼ e aí o liberal vai dizer: ʻmas isso é antiéticoʼ. Foda-se. Não tô aqui pra ser ético com os cara, não é a minha caminhada.” (que o leitor perdoe os palavrões, incomuns nessa coluna)

A inteligência e, sobretudo, a sabedoria não são conquistadas com displicência e superficialidade; não são fruto de corte, de atalhos, de instantes de exaltação ideológica e estupidez pretensiosa

Daí para a frente, a conversa seguiu comigo tentando provar que a proposta do meu interlocutor, o grande Galo de Luta, era a de formar uma milícia e tiranizar a população pobre de seu bairro, e ele se defendendo com uma frase de efeito atribuída a Malcolm X: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Dizendo que os pobres de seu bairro teriam de se conscientizar, pois “um dia o seu emprego vai virar um aplicativo também, e aí a gente vai mostrar pra você como você não se fode”. E o Flip endossando. Não que a luta por melhores condições de trabalho não seja legítima, mas tudo tem limites.

Pois bem. A conversa seguiu frutífera, com os percalços comuns a um conflito tão grande de visões, mas chegamos ao fim do episódio sãos e salvos. Foi uma troca justa de ideias, com argumentos respeitosos dos dois lados, deixando o espectador assistir e tirar as suas próprias conclusões.

Entretanto, recentemente, quando já nem lembrava mais dessa conversa com precisão, muito menos desse trecho, um canal desses de Instagram, de pseudomilitância, que vivem em função do engajamento e dos likes, fez um famigerado corte do corte. Pegou esse trecho de nossa discussão sobre o tópico em questão – que, no corte do Noir, tem 17:50 minutos, mas no total durou mais de 40 minutos –, e fez um corte de pouco mais de um minuto, do meio do debate, com uma resposta que o Galo me deu – e, óbvio, retirando minha réplica a ele. Foi o suficiente para isso viralizar e começarem a surgir xingamentos em minhas postagens sem que eu tivesse a mínima noção do que estava acontecendo, até que descobri o motivo.

Os cortes deveriam ter o objetivo de chamar a atenção para o conteúdo todo, para que as pessoas, interessando-se pelo trecho específico, procurem pelo restante. Essa é a lógica do canal de cortes. Nenhum canal de podcasts ou jornalístico faz cortes pelos cortes; o interesse é sempre capturar a atenção do espectador para fazê-lo consumir o conteúdo do canal principal. Mas os mercenários dos cortes, os Robespierres das visualizações, os sádicos dos likes não se importam. E, como o público que gravita em torno desses canais não está interessado em conhecimento (não há conhecimento no corte), mas tão somente no entretenimento que a confusão perpetrada por eles fornece, virei o vilão da vez. Os mais exaltados – e menos envergonhados da própria ignorância – condenaram-me à sua guilhotina virtual, indignados por eu não ter empatia pelos sofridos entregadores.

A inteligência e, sobretudo, a sabedoria não são conquistadas com displicência e superficialidade; não são fruto de corte, de atalhos, de instantes de exaltação ideológica e estupidez pretensiosa. São fruto de uma série de esforços, individuais e coletivos, culturalmente consolidados, que dão aos indivíduos e às nações que os empreendem o lugar de referência entre as demais. Tais conquistas espirituais é que fazem as nações prósperas, não o contrário. Conhecer a história, valorizar a cultura, celebrar os compromissos e investir pesadamente em transmitir tais legados civilizacionais às novas gerações são a única maneira de progredir. Mas que cabeças permanecem intactas diante da barbárie do corte?

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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