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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Os westonianos

(Foto: C. Messier/Wikimedia Commons)

A menos que você fosse um dos quatro ou cinco físicos de verdade atualmente vivos, não teria condições de entender. E, se houvesse a menor chance de você entender, é claro que eu não lhe diria. Se lhe agrada repetir palavras sem nenhum significado, o que é de fato o que as pessoas não científicas querem quando pedem uma explicação, você pode dizer que nosso funcionamento passa pelo aproveitamento das propriedades menos observadas da radiação solar. (Edward Weston, personagem da Trilogia Cósmica, de C. S. Lewis)

No início da Apologia de Sócrates, Platão coloca na boca de seu mestre, que se encontra diante do tribunal que lhe quer assassinar, uma observação deveras interessante: “Não seria razoável, ó cidadãos, que me apresentasse perante vós, nesta minha idade, como um jovem a pronunciar discursos”. Ou seja, não é mais um adolescente que fala e, mais ou menos a exemplo da advertência paulina, que diz algo como “quando menino falava como tal, mas agora é o homem quem fala”, pede que “considereis de preferência e atentamente apenas isto: se o que digo é justo ou não, pois nisso consiste a virtude de juiz, enquanto a virtude do orador consiste em falar a verdade”. Tal é o sábio: alguém que tem plena consciência de suas capacidades e também de suas limitações; mas, mais do que isso, o sábio é alguém pautado pela virtude moral, pois de nada adianta o conhecimento sem aquela grandeza de alma que media nossas paixões. A esses impetuosos C.S. Lewis chamou, em A abolição do homem, de Homens sem Peito, advertindo que: “Assim como o rei governa por seus delegados, também a Razão no homem deve dominar os simples apetites fazendo uso do ‘elemento vigoroso’. A cabeça domina o estômago por meio do peito – que é o trono, como nos disse Alanus, da Magnanimidade, das emoções transformadas em sentimentos estáveis pelo hábito treinado. O Peito, a Magnanimidade, o Sentimento – esses são os indispensáveis dignitários de ligação entre o homem cerebral e o homem visceral. Pode-se dizer mesmo que é por esse elemento intermediário que o homem é homem, pois pelo seu intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal”.

No debate público atual, fomentado, sobretudo, pelas redes sociais, parece-me que as pessoas se esqueceram desses preceitos tão antigos. Ou melhor: se há muito tais advertências são necessárias, significa que os Homens sem Peito sempre existiram, só que, atualmente, têm voz e vez em profusão, e transformaram o debate público numa imensa briga de rua, regida por xingamentos gratuitos, afetações de superioridade e celebrações de ignorância. Não há mais critério, tampouco rigor. Cada qual fala de seu lugar de absoluto privilégio – seu gadget preferido – e se autodeclara a autoridade incontestável de seu diminuto reino de ideias. Caso o gênio de si mesmo possua uma audiência que lhe confira alguma relevância – ainda que pela total falta de relevância real –, e o número de likes for suficiente para que se julgue um verdadeiro formador de opinião, o nosso sábio-aos-seus-próprios-olhos torna-se insuperável.

O westoniano é aquele tipo que se sente superior em meio a medíocres

Mas há um tipo especial de debatedor público que, nas redes sociais, ganhou especial notoriedade. Eu o chamarei de westoniano – em referência ao cientista maligno Edward Weston, da Trilogia Cósmica de C.S. Lewis, citado na epígrafe deste artigo. O westoniano é aquele tipo que se sente superior em meio a medíocres; não por, de fato, possuir alguma superioridade – moral ou intelectual –, mas porque pensa que o ínfimo cabedal de conhecimentos que possui, em alguma área específica, geralmente fruto de estudos e títulos acadêmicos, o transformam em uma verdadeira vela em cima do alqueire. Diante dessa pseudovantagem, o nosso “intelectual porém idiota” – para usar a expressão já batida, mas divertida, de Nassim Nicholas Taleb – distribui análises, desdenha de quem não lhe é páreo academicamente, e dá voz a uma série de microconhecimentos que lhe fazem o senhor todo-poderoso — só que de um território tão pequeno quanto a ilha de Johnny Castaway, o famosíssimo náufrago do screensaver noventista.

Platão, na mesma Apologia, menciona esses tais – os nossos westonianos – na pessoa dos artesãos. Enquanto tenta descobrir por que o Oráculo de Delfos disse que ele era o homem mais sábio de toda a Grécia, o que ele nega por sua “plena consciência de não ser nem muito sábio nem pouco”, sai pela cidade a interrogar aqueles que considera os mais sábios – os políticos, os poetas e os artesãos; mas descobre que, “com raríssimas exceções, os indivíduos tidos na mais alta conta foram os que me pareceram mais deficientes quando examinados de acordo com os preceitos da divindade, enquanto outros, considerados em geral como inferiores, se me afiguravam de mais claro entendimento”. Sua descrição desse terceiro encontro é fundamental para o que quero dizer:

Por último, procurei os artesãos. Tinha plena consciência de que eu não sabia, por assim dizer, absolutamente nada; e estava convencido de que eles todos conheciam muitas e belas coisas. Nesse ponto não me enganara; conheciam, realmente, muitas coisas que eu ignorava, sendo nisso, precisamente, mais sábios do que eu. Contudo, atenienses, quer parecer-me que esses meritórios artífices padeciam do mesmo defeito dos poetas: pelo fato de cada um deles conhecer a fundo determinada profissão, julgavam-se também proficientes nas questões mais abstrusas, donde estragar esse defeito fundamental de todos a sabedoria de cada um. Daí ter perguntado a mim mesmo, com referência ao oráculo, o que fora preferível: ser como era, sem participar da sabedoria e da ignorância de todos, ou ser como eles, sob ambos os aspectos? A resposta dada a mim mesmo e ao oráculo foi que era melhor ser o que sou realmente.

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Tal conclusão de Sócrates não está, de modo algum, baseada numa verdadeira ignorância, pois estamos diante do maior filósofo do Ocidente – e quem diz não sou eu, mas Alfred North Whitehead, quando afirma que “toda a história da filosofia ocidental consiste numa série de notas de rodapé às obras de Platão”. A verdadeira sabedoria, para Platão, está fundamentada não no conhecimento técnico, específico sobre algo, mas na virtude. Tal discussão se dá com mais profundidade em outras obras do mestre ateniense, como o diálogo Górgias. Nessa obra o debate se dá não somente em torno da arte retórica em si, mas do papel do retórico; por isso Sócrates afirma, logo no início, estar interessado em saber “o que ele [Górgias] é”. A primeira conclusão que chegam é que a retórica é a “mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva finalidade visa apenas a esse objetivo”. Mais à frente, Sócrates, após uma série de ponderações e com sua costumeira habilidade dialética, pergunta a Górgias: “Podemos, então, admitir duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte de crença, sem conhecimento, e a outra só do conhecimento?” O outro responde afirmativamente, ao que ele pergunta se a “retórica é obreira da persuasão que promove a crença, não o conhecimento, relativo ao justo e ao injusto?” – pois afinal de contas o papel do retórico, nos tribunais, é meramente convencer os juízes não necessariamente da verdade, mas de sua aparência. À frente, conclui de modo não definitivo, mas assertivo: “O que me parece, Górgias, é que se trata de uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz e corajoso, e com a disposição natural de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou-lhe o nome de adulação”.

O debate segue e, já quase ao fim, Sócrates admite que a retórica pode ser boa quando “se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cidadãos, esforçando-se para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade o auditório”. Tal afirmação antecede a outra, feita em forma de pergunta: “o homem correto só tem em mira o bem quando discursa, sem nunca falar ao acaso, mas com determinado fim?” Nisso conclui que o homem correto é aquele que tem a alma correta. E completa: “A ordem e a harmonia da alma têm o nome de legalidade e lei, que é o que deixa os homens justos e ordeiros, e vem a ser, precisamente, justiça e temperança. [...] Com isso em mira é que o orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos à alma dos homens, sempre que lhes falar, e todos os seus atos; e quer lhes dê ou tire alguma coisa, deverá pensar sempre no modo de fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos e de banir a injustiça, de implantar nela a temperança e de afastar a intemperança”.

A verdadeira sabedoria, para Platão, está fundamentada não no conhecimento técnico, específico sobre algo, mas na virtude

Sobre a temperança, virtude cardeal sobre a qual já tratei em artigo aqui, nesta Gazeta do Povo, Platão diz ser a verdadeira virtude do orador – ou seja, do debatedor público. Saber os nossos limites nos faz, sobretudo, cordatos em relação ao nosso próximo (que pode ser nosso oponente num debate, mas ainda é nosso próximo). Ser um westoniano, que “pensa de si mesmo além do que convém”, nos faz mergulhar na arrogância maligna (como demonstrada na epígrafe) de quem entende muito sobre algo – e tenta humilhar quem não está à altura de sua pretensa genialidade –, mas que não entende nada de como um verdadeiro sábio deve se comportar. Tal arrogância só faz demonstrar alguém que disfarça sua insegurança na prepotência. A esses, Platão, na pessoa de seu mestre, adverte:

Sendo expressão da verdade, acrescentarei que quem ser feliz terá de procurar a temperança e viver de acordo com ela, e de fugir da intemperança quanto nossas pernas o permitirem, esforçando-se, antes de tudo, por não vir nunca a ser castigado; porém, no caso de merecer o castigo, ou ele mesmo ou qualquer um de seus familiares, particular ou da cidade, então faça-se justiça e seja castigado, se quisermos que seja feliz.  A meu parecer, essa é a meta que devemos ter em vista para dirigirmos nossa vida, e tanto nos negócios particulares como nos públicos devemos envidar esforços para que impere a justiça e a temperança, se quisermos ser felizes, não permitindo que os apetites fiquem desenfreados nem procurando satisfazê-los, o que seria um mal imenso, verdadeira vida de bandoleiro. Um indivíduo nessas condições não será nem amigo dos homens nem de Deus, como não conseguirá viver em sociedade; e onde não há sociedade não pode haver amizade.

E tem gente que ainda despreza a filosofia em nome do conhecimento técnico e dos títulos acadêmicos. Pobres westonianos.

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