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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

O cinema de Oscar Micheaux: ousadia e talento

O escritor e diretor Oscar Micheaux durante filmagens
O escritor e diretor Oscar Micheaux durante filmagens: carreira inclui mais de 40 filmes da era muda e do cinema falado. (Foto: Reprodução)

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“Minha experiência mostra que existe algo na natureza humana que sempre faz um indivíduo reconhecer e recompensar o mérito, não importa a cor da pele, o mérito é o que importa. (Booker T. Washington)

Que o Oscar há muito deixou de se preocupar estritamente com o talento e qualidade das obras cinematográficas em suas premiações não é dúvida para ninguém. Que temas como diversidade e representatividade têm sido recorrentes nos comentários e críticas, e forçado a Academia a se render ao discurso por inclusão a qualquer custo, já não causa espanto. Que a bizarrice de Hattie McDaniel, a primeira negra a vencer um Oscar (de Melhor Atriz Coadjuvante), em 1940, ter de esperar numa sala ao fundo do Ambassador Hotel para receber a estatueta por seu papel em ...E o vento levou – num país que vivia um regime de apartheid –, seja mais comentado do que o fato de ela ter ganhado o prêmio, e sua famosa frase “prefiro interpretar uma criada e ganhar 700 dólares por semana do que ser uma criada e ganhar 7 dólares” seja menos conhecida do que os protestos que sofreu da própria comunidade negra americana por aceitar o papel estereotipado, também não nos surpreende; afinal de contas, a geração assustada nunca decepciona.

No entanto, confesso que fiquei feliz com a premiação desse ano, pois Nomadland é um belíssimo filme, de uma sensibilidade profunda que me surpreendeu bastante, e Frances McDormand dispensa apresentações. Chloé Zhao não venceu o prêmio de Melhor Diretora por ser chinesa, mas por conseguir fazer um filme à altura do prêmio. O jovem Daniel Kaluuya não venceu por ser negro, mas por conseguir encarnar todo o carisma e a potência de Fred Hampton em Judas e o Messias Negro. E ninguém – nem mesmo Chadwick Boseman em sua excelente atuação em A voz suprema do blues, com todo o apelo por sua morte precoce e pelo esforço de filmar com o câncer em estágio avançado – poderia vencer Anthony Hopkins e seu homônimo no filme Meu Pai, uma interpretação de arrancar lágrimas e vivas, coisa que só um gênio na arte do cinematógrafo é capaz de fazer.

Que o Oscar há muito deixou de se preocupar estritamente com o talento e qualidade das obras cinematográficas em suas premiações não é dúvida para ninguém. Mas a premiação deste ano nas categorias principais foi justa

Entretanto os comentários, no dia seguinte, foram os mais óbvios possíveis: “mais diversidade”, “mais negros indicados”, “a segunda mulher a vencer como Melhor Diretora”, “Boseman deveria ter vencido” etc., tudo como manda o figurino de uma imprensa que hoje não mais se preocupa em informar e fazer uma leitura honesta da realidade, mas em reverberar os chavões politicamente corretos e as ideologias dos grupos de pressão e canceladores de redes sociais.

Mas tudo isso lembrou-me de um cineasta de nome sugestivo que há muito quero trazer a essa coluna (apesar de tê-lo mencionado anteriormente), pois sua carreira foi tão absurdamente surpreendente que é um crime ele não ser considerado um verdadeiro herói mundial – apesar de ser muito celebrado em seu país, os Estados Unidos: Oscar Micheaux.

Oscar Devereaux Micheaux nasceu em 2 de janeiro de 1884, no estado de Illinois, filho de dois escravos libertos após o fim da Guerra de Secessão, Swan e Belle Willingham Micheaux, e o quarto dos 13 filhos do casal. Seu pai tinha uma fazenda de oito acres e sua mãe era professora. Conhecido desde criança por ser estudioso (apesar de conversar e questionar demais) e um bom “negociante”, era comum voltar da mercearia com alimentos melhores que os de seus irmãos; isso se consolidaria em sua memorável carreira como escritor, cineasta, roteirista e empresário do cinema. Aos 17 anos deixou a vida na pequena fazenda de seu pai e se mudou para Chicago, para viver com seu irmão mais velho e conseguir um emprego.

Após trabalhar como engraxate e outras ocupações de menor relevância, conseguiu um emprego como porter (uma espécie de faz-tudo) nos trens-dormitórios da Pullmann Car Company, atividade que lhe permitiu viajar pelo país e, como um bom observador, como diz seu biógrafo Earl James Young Jr., ficar “impressionado com a grande variedade de oportunidades que existiam na América e se recusou a ser limitado pela sua raça. Durante as paradas do trem, ele teve a chance de visitar teatros, observar diferentes negócios e estilos de vida e ler vorazmente histórias de como as pessoas se tornaram bem-sucedidas. Ele se apaixonou pelo sonho americano”.

Micheaux, desde muito cedo, mantinha uma postura muito crítica em relação ao modo de vida dissoluto de muitos negros e também à hipocrisia dos religiosos (principalmente dos pastores), que aos domingos, na igreja, se comportavam de um modo e, durante a semana, pareciam esquecer toda a aura de santidade adotada nos cultos; ele, inclusive, abordaria isso em seus filmes. Ainda trabalhou como camareiro de milionários brancos, tentou uma carreira de fazendeiro, se casou (curiosamente, com a filha de um rígido pastor) e se separou antes de publicar seu primeiro livro, The Conquest, em 1913, um romance autobiográfico.

Como diz Earl James Young, “com exceção das mudanças de nomes, a maioria dos eventos históricos (cidades, celebrações, licitações para ferrovias, incêndios na pradaria, terras compradas, etc.) relacionados em The Conquest é historicamente correta” e demonstra a grande apreciação que Micheaux tinha por ninguém menos que Booker T. Washington – sobre quem já escrevi nesta Gazeta do Povo. Diz o biógrafo: “Micheaux se considerava um dos maiores admiradores de Washington, chegando a dedicar seu primeiro romance ao líder. Ele frequentemente dava aulas a outros negros sobre as virtudes dos pensamentos de Washington (ou como ele os interpretava), enquanto os advertia por suas deficiências. Micheaux continuou a sentir que muitos negros estavam mais interessados em reclamar dos brancos em vez de trabalhar duro e aproveitar as oportunidades na América. Ele abordou esse debate entre os líderes negros americanos em seu primeiro romance, The Conquest: The Story of a Negro Pioneer, num capítulo intitulado ‘The Progressives and the Reactionaries’”.

No entanto, segundo a ótica de Earl James Young, Micheaux, erroneamente, fez uma contraposição entre as ideias de Booker T. Washington e W.E.B. Du Bois (controvérsia citada em meu artigo sobre Washington), e não os colocou como complementares, como a maioria dos estudiosos (entre os quais me incluo) faz atualmente. Mas isso não macula a benéfica influência, a meu ver, de Washington na carreira de Micheaux, que num determinado momento, em defesa de suas produções – pois era muito criticado, pelos próprios negros, por retratar alguns deles em posições socialmente inferiores (como criminosos, viciados etc.) e contrapô-los a outros, ordeiros, honestos e ricos –, foi obrigado a escrever uma carta, em 1925, ao jornal Philadelphia Afro-American, por conta de seu filme Birthright, em que diz, dentre outras coisas:

“Sempre tentei fazer minhas produções apresentarem a verdade, apresentar à raça num corte transversal de sua própria vida, ver o coração negro de perto. Meus resultados podem ter sido limitados às vezes, talvez devido a certas situações limitadas que me esforcei para retratar, mas nessas situações, a verdade foi a característica predominante. É somente apresentando esses aspectos de nossa raça, retratados em meus filmes, à luz e ao fundo de seu verdadeiro estado, que podemos elevar nosso povo aos mais elevados patamares. Estou muito imbuído do espírito de Booker T. Washington para enxertar falsas virtudes sobre nós mesmos, para nos tornarmos o que não somos. Nada pode ser pior para o nosso próprio progresso. O reconhecimento de nossa verdadeira situação servirá, por si só, como um estímulo para nossa autopromoção.

A carreira de Micheaux foi tão absurdamente surpreendente que é um crime ele não ser considerado um verdadeiro herói mundial

À época em que Micheaux começou a se interessar por cinema, eram comuns as produções em que negros eram representados por brancos com o famigerado blackface e de forma extremamente caricatural. Judeus, mexicanos e irlandeses também eram satirizados. Em seus romances – ele escreveu sete – Micheaux sempre retratava negros em posições sociais elevadas e como exemplos de trabalho e virtude, bem ao modo de Booker T. Washington. Isso foi um passo para que começasse a produzir os próprios filmes, com elencos majoritariamente negros. Quando ele iniciou, já existiam produções de cineastas negros, como William (Bill) D. Foster e Noble Johnson; no entanto, não demorou muito para que os superasse. Seu primeiro filme foi The Homestader, ainda no cinema mudo, que estreou em 1919 e é baseado em seu romance The Conquest.

Mas é em 1920 que seu segundo e mais famoso filme, Within our Gates (disponível no YouTube, numa cópia recuperada pela Livraria do Congresso Americano em 1993), estreou, e é considerado por muitos uma resposta à altura ao icônico e controverso O nascimento de uma nação, de D.W. Griffith, de 1915, clássico racista que exalta a Ku Klux Klan e mostra os negros praticamente como seres bestiais. O filme conta a história de Sylvia Landry, uma jovem negra sulista que, ao saber que uma escola rural para educação de crianças negras irá fechar por falta de dinheiro, empreende uma viagem ao norte em busca de ajuda de filantropos.

A resposta de Micheaux ao racismo foi o trabalho, a dedicação e a absurda vocação empreendedora. Não esmoreceu e nem se rendeu ao preconceito sorrateiro ou à discriminação escancarada, e foi grande, foi mestre

Micheaux construiu um filme-resposta invertendo as posições, mostrando negros como trabalhadores, bem-sucedidos – como professores e médicos –, estudiosos e buscando ascensão social pela educação, e mulheres negras inteligentes e heroicas. E desfaz com maestria as fake news de que os linchamentos e enforcamentos de negros ocorriam porque estes molestavam mulheres brancas. Ele coloca os brancos como algozes de pessoas negras inocentes e lança-lhes em rosto a perfídia ideológica da supremacia branca. Mas é equilibrado, pois também retrata brancos bondosos e filantropos (como alguns que ele mesmo encontrou em sua vida) e negros criminosos. Uma resposta não com protestos, quebradeira ou militância inócua, mas com arte, grande arte; adiantando em muitas décadas o que fariam cineastas como Spike Lee e Tyler Perry – que irá representar Micheaux numa produção da HBO.

Micheaux fez mais de 40 filmes, passando das produções mudas ao cinema falado, e teve uma carreira absolutamente bem-sucedida – apesar de ter morrido em relativo esquecimento. Sua resposta ao racismo não foi exigir representatividade, foi o trabalho, a dedicação e a absurda vocação empreendedora. Não esmoreceu e nem se rendeu ao preconceito sorrateiro ou à discriminação escancarada, e foi grande, foi mestre. O pessoal da representatividade deveria se envergonhar por exigir que suas produções ganhem destaque não pela qualidade, mas pela cor de seus artistas. Se há escassez de oferta, invistam em si mesmos e façam aquilo que tantos fizeram antes que a geração atual descobrisse que cobrar reparação histórica pelo irrecuperável passado, baseando-se, muitas vezes, em estatísticas grosseiras, era mais confortável.

Micheaux morreu em 25 de março de 1951, aos 67 anos, deixando-nos um legado espetacular de alguém que foi um verdadeiro devoto da sétima arte.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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