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“Eis o momento de se saber – o que tornarei público quando essa ostentação constituir honra – que o ser e a vida eu recebi de berço de descendência real e que meus méritos aspirar podem, de cabeça erguida, à posição que até hoje me alcançaram.” (Otelo, de Shakespeare)
Escrevo esse artigo de um hotel em Goiânia, onde vim participar do simpósio Shakespeare Em Dois Atos, realizado pelo Sesc Centro (GO), em parceria com a União Brasileira de Escritores – Seção de Goiás (UBE/GO) e a Academia Goiana de Letras (AGL). Três noites (o evento se encerra nesta quarta, com uma peça apresentada pelo ator Thiago Lacerda) dedicadas ao bardo, em Goiás, é um feito extraordinário a ser comemorado. Na segunda-feira, meus caros amigos Alexandre Borges (analista político), Martim Vasques da Cunha (doutor em Filosofia Política) e Sérgio Sá Leitão (ex-ministro da Cultura e gestor cultural) fizeram excelentes explanações a respeito das conexões da obra shakespeareana com a política brasileira. E ontem, eu, Adalberto de Queiroz (poeta e jornalista) e o professor Tobias Goulão (mestre em História) falamos sobre como as emoções em Shakespeare – segundo o crítico Harold Bloom, o “inventor do humano” – podem ser traduzidas na atualidade.
Nascido em 23 de abril de 1564, na pequena Stratford-upon-Avon, Inglaterra, filho de um comerciante (que foi prefeito da cidade) e de uma herdeira de propriedades locais, tornou-se, de fato, um universo, um gênio que conseguiu, sobretudo com suas mais de 30 peças, perscrutar os recônditos mais profundos da alma humana. É um poeta que, segundo o grande Samuel Johnson em seu Prefácio a Shakespeare, “segura diante de seus leitores um espelho fiel de maneiras e de vida”, e cujas peças
“[...] não são, no sentido rigoroso e crítico, tragédias ou comédias, mas composições de um tipo distinto; exibindo o estado real da natureza sublunar, a qual partilha de bem e mal, alegria e mágoa, mesclada com infinita variedade de proporção e inumeráveis modos de combinação; e dá-se expressão ao curso do mundo, no qual a perda de um é o ganho do outro; no qual, ao mesmo tempo, o folião está correndo para o seu vinho, e o sofredor enterrando o seu amigo; no qual a malignidade de um é, algumas vezes, derrotada pela galhofa de outro; e muitos prejuízos e muitos benefícios são feitos e impedidos sem planejar.”
O Mouro de Veneza é um modelo (negro) exemplar de virtude
Escolhi, como tema de minha palestra, a peça Otelo, a fim de tratar de algo que me chamou a atenção desde a primeira vez que li a obra, há quase duas décadas: o Mouro de Veneza é um modelo (negro) exemplar de virtude.
Sim, negro, e o leitor desta Gazeta do Povo, que costuma se ressentir quando racializo minhas análises, deve entender que, como eu mesmo já disse repetidas vezes, não basta evocar a mal interpretada entrevista de Morgan Freeman e parar de falar em termos de “branco” ou “negro” que o problema acaba. Qualquer adulto responsável sabe que a imensa maioria dos problemas só pode ser resolvida quando eles são devidamente reconhecidos e combatidos. Empurrar para debaixo do tapete, como diz o ditado, não adianta. Foram quase 350 anos de escravidão, mais décadas de teorias eugenistas que consideravam o negro menos humano que o branco – e fizeram um sucesso estrondoso entre nossas elites e nossos governantes –, para que, hoje, pessoas que não sofrem diretamente com esse histórico assaz controverso se contentem em fingir que não há problema. Também quero poder, um dia, não precisar mais falar nesses termos, mas ainda não é o tempo, inclusive como argumento contra o identitarismo.
O leitor ainda pode objetar: “mas e se eu falar em ʻmodelo exemplar brancoʼ, é racismo?” Respondo-lhe que você não precisa fazer isso, pois praticamente todos os modelos exemplares são brancos. São os negros que carecem de exemplos parecidos consigo para além dos esportes e da música. Pois, voltemos a o que importa.
Otelo foi publicada em 1604 e é uma das obras mais conhecidas de Shakespeare. A história do nobre general negro a serviço do exército veneziano que, sucumbindo à retórica funesta de seu alferes, o ardiloso e implacável Iago, mata sua esposa, Desdêmona, por pensar que ela o traíra, é muitíssimo conhecida, tendo, inclusive, influenciado Machado de Assis, que o cita em Dom Casmurro, e que a professora, crítica e tradutora americana Helen Caldwell, num estudo que se tornou clássico, chama de Otelo Brasileiro (voltarei a isso abaixo). Iago é um dos personagens mais complexos de Shakespeare, pois representa o mal pelo mal. Sua inveja de Otelo e seu ressentimento por ter sido preterido ao cargo de tenente, conferido a Cássio, o fazem querer se vingar sem nenhum objetivo determinado, só porque, como repete várias vezes, “odeio o Mouro”.
O mouro ocupa uma posição delicada naquela sociedade, pois, apesar de sua destacada expertise militar, sua fidelidade ao reino de Veneza e sua ascendência nobre – “o ser e a vida eu recebi de berço de descendência real” –, casou-se em segredo com a filha do senador Brabâncio, moça branca e símbolo de pureza, causando alvoroço na corte. Brabâncio intenta matar Otelo, mas, quando sua filha confirma o amor sincero entre os dois – “aqui vejo meu marido; e quanto minha mãe vos foi submissa, preferindo-vos mesmo aos próprios pais, tanto agora pretendo revelar-me em relação ao Mouro, a quem pertenço” –, ouviu imediatamente do pai um “Deus esteja convosco” e tudo se apaziguou. Curiosamente, Brabâncio admirava Otelo – “o pai dela me amava”, diz Otelo ao doge de Veneza, antes de encontrar-se com o senador –, mas, quando ficou sabendo que o mouro se casara com sua filha, pensando que o mouro usara de feitiçaria para “prender” sua filha, não economizou impropérios racistas, dizendo coisas como: “como poderia [sua filha], expondo-se à irrisão de toda gente fugir de seu guardião, para abrigar-se no seio escuro e cheio de fuligem de uma coisa como és, mais feito para susto causar do que qualquer deleite?”
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Mas racista, de fato, é Iago, que chama Otelo de “bode negro” e diz a Brabâncio que sua filha “e o Mouro se acham no ponto de fazer o animal de duas costas”. Sua inveja é claramente provocada por não admitir um africano como chefe; e para levar a cabo seu projeto para destruir Otelo, envolve não só o alvo de seu amor, mas Cássio, o tenente que lhe suplantara, e Rodrigo, um fidalgo por quem Desdêmona fora apaixonada na infância. O que Iago tem por Otelo é uma admiração infeliz por tudo o que o mouro representa. Como diz Harold Bloom, em seu monumental Shakespeare – a invenção do humano: “Otelo era tudo para Iago, porque a guerra era tudo; sem Otelo, Iago é nada, e, ao guerrear contra Otelo, Iago luta contra a ontologia”.
De sua parte, Otelo vive aquilo que W.E.B. Du Bois chamou de “dupla consciência”, condição na qual uma pessoa negra, vivendo num contexto cultural ao qual não pertence por natureza, luta para ser assimilado sem perder seus traços ancestrais. Diz ele, no estupendo As almas do povo negro – a citação é longa, mas fundamental:
“Depois do egípcio e do indiano, do grego e do romano, do teutão e do mongol, o negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu e aquinhoado com uma visão de segundo grau neste mundo americano –, um mundo que não lhe concede uma verdadeira consciência de si, mas que apenas lhe permite ver-se por meio da revelação do outro mundo. É uma sensação estranha, essa consciência dupla, essa sensação de estar sempre a se olhar com os olhos de outros, de medir sua própria alma pela medida de um mundo que continua a mirá-lo com divertido desprezo e piedade. E sempre a sentir sua duplicidade – americano, e Negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliados; dois ideais que se combatem em um corpo escuro cuja força obstinada unicamente impede que se destroce. A história do Negro americano é a história desta luta – este anseio por atingir a humanidade consciente, por fundir sua dupla individualidade em um eu melhor e mais verdadeiro. Nessa fusão, ele não deseja que uma ou outra de suas antigas individualidades se percam. Ele não africanizaria a América, porque a América tem muitíssimas coisas a ensinar ao mundo e à África. Tampouco desbotaria sua alma negra numa torrente de americanismo branco, porque sabe que o sangue negro tem uma mensagem para o mundo. Ele simplesmente deseja que alguém possa ser ao mesmo tempo Negro e americano sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da Oportunidade brutalmente batidas na cara. Este, então, é o propósito da sua luta: ser um colaborador no reino da cultura, escapar da morte e do isolamento, administrar e utilizar o melhor da sua potência e do seu gênio latente.” (grifo meu)
Não obstante o crime passional terrível, Otelo se tornou um um personagem capaz de transmitir um imaginário de nobreza e caráter que a própria narrativa evidencia
Du Bois publicou sua obra no início do século 20 (1903), numa América segregada e ainda sob os notórios efeitos da escravidão e da Guerra de Secessão, e cria piamente, à maneira do racialismo biológico, que “o sangue negro tem uma mensagem para o mundo”. Mas a condição de Otelo não é muito diferente. Ele é um mouro, um homem negro – visto como tal –, provavelmente muçulmano, do Norte da África, que alcançou uma posição de destaque num exército europeu. Entretanto, paira sobre ele a pecha de ser negro, ainda que “mais belo [...] do que preto”, segundo as palavras do doge.
Quando ele comete o brutal crime contra sua esposa, assassinando-a sufocada diante da mera suspeita de traição, não é o nobre Otelo que ali está; é a projeção criada por Iago com perspicácia maligna ímpar. É o “demônio negro”, segundo Emília, esposa de Iago, e sua cor passa, para ele próprio, a ser um símbolo de maldade: “Oh! Se a escrava tivesse dez mil vidas! Uma só será pouco, muito pouco, para minha vingança. Agora vejo que tudo era verdade. Iago, olha aqui: sopro assim para o céu meu amor néscio; já não existe. Negra vingança, surge do oco inferno! Passa tua coroa, ó amor, e o trono do coração para o ódio mais ferino! Intumesce-te, peito, com tua carga de línguas de serpentes!” (grifo meu). E ainda: “O nome dela, que era tão singelo como o rosto de Diana, ora se encontra como meu próprio rosto: negro e sujo”.
Não obstante o crime passional terrível, Otelo, por tudo que ele representa – e não pelo que foi transformado por Iago, num homem (negro e) violento –, se tornou um modelo, um personagem capaz de transmitir um imaginário de nobreza e caráter que a própria narrativa evidencia. Como disse dele Ludovico, um parente de Brabâncio e testemunha dos fatos: “É esse o nobre Mouro que nossos senadores não se cansam de proclamar perfeito e capacíssimo? A criatura de prol que sacudida nunca é pelas paixões? Cuja virtude jamais foi atingida pelos tiros da sorte e os arremessos da fortuna?” E, depois, ainda disse ao próprio Mouro: “Ó tu, Otelo, que tão bom já foste, como vieste a cair nas artimanhas de um celerado? Que dirão de ti?”
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Por isso, Otelo assume seu crime, ainda que Desdêmona, em seu leito de morte, tenha tentado livrá-lo – “Quem fez isso?”, perguntou Emília, ao que ela respondeu: “Ninguém, eu mesma”. E Otelo, ainda sob a ira criminosa, corrige: “Para as chamas do inferno foi como uma mentirosa: quem a matou fui eu”. Mas, ao saber de toda a verdade, diz a frase que, para mim, resume o seu caráter: “Deve a honra viver mais do que a virtude? Que leve o demo tudo”. E em seu último discurso, antes de cometer suicídio, comove:
“Uma palavra ou duas antes de irdes. Prestei alguns serviços à República, o que é sabido. Mas sobre isso, basta. Peço-vos por favor que em vossas cartas, ao relatardes estes tristes fatos, faleis de mim tal como sou, realmente, sem exagero algum, mas sem malícia. Então a alguém tereis de referir-vos que amou bastante, embora sem prudência; a alguém que não sabia ser ciumento, mas, excitado, cometeu excessos, e cuja mão, tal como o vil judeu, jogou fora uma pérola mais rica do que toda sua tribo; a alguém com olhos vencidos e que embora pouco usados aos sentimentos moles, maior número de gotas derramaram do que as árvores da Arábia fazer soem com sua goma medicinal. Contai-lhes isso tudo. E também que em Alepo, certo dia, um turco de turbante e malicioso bateu num veneziano e em termos baixos falou do Estado, e que eu, pela garganta detendo aquele cão circuncidado, o feri deste modo, assim... assim...”.
Harold Bloom corrobora e exalta o Mouro:
“É importante frisar a grandeza de Otelo, apesar de todas as deficiências do personagem com relação à linguagem e ao temperamento. Implicitamente, Shakespeare celebra Otelo como um ser gigantesco, um esplendor ontológico, portanto, como um homem guindado por seu próprio mérito a uma eminência real, embora precária. Mesmo se duvidarmos da possibilidade da nobreza militar, Otelo, de modo plausível, representa esse ideal perdido. Otelo é sempre a antítese de Iago, que afirma ‘Nunca mostro quem sou!’, até dilacerar-se sob a influência desse mesmo Iago. Obviamente, Desdêmona escolheu mal seu marido, mas a escolha confirma que o esplendor de Otelo foi conseguido à custa de muito esforço.”
Ao final de minha palestra, uma pergunta me intrigou: um homem, com aparência de universitário, se levantou e, muito educadamente, me disse que ficara incomodado por eu falar sobre Otelo como um modelo exemplar, pois, para ele, o Mouro era “influenciável como Bentinho” – evocando uma leitura apressada da tese de Helen Caldwell –, um tipo fraco e, ao final, violento. Minha resposta não poderia ser outra – e aqui parafraseio a mim mesmo: disse-lhe que eu não via Otelo dessa maneira, a começar que Bentinho e Otelo são personagens muito diferentes; enquanto Bentinho é um jovem e imaturo advogado, Otelo é um militar experiente e célebre. Que Otelo não era mais ou menos influenciável que qualquer um de nós, e aceitar que ele era esse tipo frágil e violento, seria comprar a imagem que Iago imprimiu nele. Otelo é um gigante.
E complementei, dizendo que não devemos ter medo de retratar nossos heróis como pessoas cheias de contradições, pois assim somos todos. As pessoas excepcionais não são o que são por seus defeitos, mas por suas virtudes. O problema é que nossos artistas e intelectuais têm medo das contradições, dos antagonismos; preferem uma realidade unidimensional, pois esta comporta bem suas ideologias. Ou seja, o negro, ou é vítima absoluta ou é traidor– eis a luta de classes. Mas Otelo é maior do que isso. E finalizei minha resposta dizendo: o que é melhor mostrar aos jovens, sobretudo aos jovens de periferia, que carecem de modelos, um símbolo de nobreza como Otelo, ou deixar que eles encontrem esse modelo no traficante? Não tenho dúvidas. E você?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos