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“A via cristã é diferente: é mais difícil e é mais fácil. Cristo diz: ʻQuero tudo o que é seu. Não quero uma parte do seu tempo, uma parte do seu dinheiro e uma parte do seu trabalho: quero você […]. Entregue-me todo o ser natural, não só os desejos que lhe parecem maus, mas também os que se afiguram inocentes – o aparato inteiro. Em lugar dele, dar-lhe-ei um ser novo. Na verdade, dar-lhe-ei a mim mesmo: o que é meu se tornará seuʼ.” (C.S. Lewis, Cristianismo puro e simples)
Uma das primeiras coisas que aprendi quando me converti, há mais de 20 anos, foi algo que li no desafiador Discipulado, de Dietrich Bonhoeffer – já citado em artigo anterior nesta Gazeta do Povo –: para um cristão, ou seja, aquele que entregou sua vida a Cristo e deseja viver sob os preceitos do Evangelho, “a graça barata é a inimiga mortal de nossa Igreja”, porque “não pode ser barato para nós o que custou caro para Deus [...]; porque Deus não considerou que seu próprio Filho custasse caro demais para pagar por nossa vida”. E aqui, caro leitor, falo como um cristão para cristãos. A exortação incontornável de Bonhoeffer não faz qualquer sentido a quem professa outra fé (ou mesmo não professa nenhuma).
O desafio de todo cristão é permanecer fiel àquilo que a Graça lhe comunicou desde a Cruz. Não só não faz sentido, uma vez reconhecido o sacrifício fundador de Jesus, permanecer num estado de consciência anterior – como nos “tempos da ignorância” (At 17,30) –, como é uma traição ao Evangelho e à graça preciosa, que, como diz Bonhoeffer, “é a Encarnação de Deus”. A “renovação da mente” da qual o apóstolo Paulo fala aos cristãos de Roma (Rm 12,2), tem a ver diretamente com o reconhecimento dessa Graça e a preservação da fé diante dos desafios sob um império mundano, bem como com o refrear do desejo de alterar a realidade pela própria força. Por isso ele diz, em seguida: “digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (v. 3).
Vejo – sem nenhuma surpresa, confesso – o povo de Deus de São Paulo bandeando em peso para Pablo Marçal, como se este fosse, agora, o único capaz de fazer algo pela cidade
Pois lembrei-me imediatamente de tais preceitos, que procuro – como esforço de driblar minhas inúmeras imperfeições – seguir à risca, quando dei uma olhadela na última pesquisa eleitoral para prefeito da cidade de São Paulo. A matéria no jornal O Povo diz: “em 8 de agosto, Pablo Marçal tinha 22,1% de menções entre eleitores evangélicos, e Nunes, com 36,6%, liderava no segmento. Agora, Pablo Marçal não só ultrapassou o atual prefeito como lidera por mais de 13 pontos porcentuais de vantagem: entre evangélicos, o ex-coach tem 36,8% e o emedebista, 23%. O grupo corresponde a 22,6% da amostragem do levantamento”. Também chegou a mim o tal vídeo constrangedor de Jair Bolsonaro, implorando para que seus eleitores “reelejam Ricardo Nunes”, tentando, numa atitude desesperada de seu partido, o PL (do Waldemar, do mensalão), colocar a disputa nos trilhos novamente.
Mas, como eu disse em meu artigo da semana passada, Marçal representa aquilo que Bolsonaro representava em 2018: o político antissistema, cuja falta de noção e comportamento temerário são confundidos com coragem e evocam a subserviência mais infantil de um eleitor eternamente carente como o brasileiro. Nos comentários do vídeo de Bolsonaro vemos seus eleitores se desculpando com o Capitão e declarando seu voto em Marçal. Nunes não os representa. Vários bolsonaristas de outrora, alguns atualmente candidatos à vereança, também aderiram a fim de surfar a onda marçalista.
Mas, voltando aos evangélicos, não foi uma nem duas vezes que falei sobre a perigosa relação entre religião e política (há artigos e um curso meu sobre isso). Também escrevi especificamente sobre a relação idolátrica de evangélicos com Bolsonaro. E agora vejo – sem nenhuma surpresa, confesso – o povo de Deus de São Paulo bandeando em peso para Pablo Marçal, como se este fosse, agora, o único capaz de fazer algo pela cidade – e vencer o comunista Boulos, obviamente, pois crentes temem mais o comunismo do que o próprio Deus, contrariando o que disse Jesus em Mateus 10,28: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”.
Ver crentes coxeando entre dois pensamentos – mas, nesse caso, não entre Deus e Baal, como disse o profeta Elias ao povo de Israel em I Reis 18,22, mas entre dois ídolos –, é o retrato de um dos principais problemas causados pelo enorme crescimento dos evangélicos no Brasil. E falo isso como alguém que, desde a conversão, sempre afirmo, categoricamente, que o cristianismo é uma religião de conhecimento, e que sempre denunciei que a ignorância seria a nossa ruína. Não é a toa que os cristãos eram chamados de o Povo do Livro. A mística é importante, mas o conhecimento é fundamental. Por isso Paulo – não eu, o apóstolo – fala aos coríntios que preferia “falar cinco palavras compreensíveis para instruir os outros a falar dez mil palavras em língua” (I Co 14,19). O público religioso, quando não é instruído, fica suscetível, vulnerável. Os exemplos bíblicos são tão abundantes que nem precisam ser citados aqui. Quando Deus, através do profeta Oséias, diz: “o meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento”, é exatamente porque a idolatria é fruto não só rejeição ao conhecimento, mas de uma apetite pecaminoso pela satisfação imediata. Por isso, Ele diz, adiante:
“Comerão, mas não se fartarão; entregar-se-ão à luxúria, mas não se multiplicarão; porque deixaram de atentar ao Senhor. A luxúria, e o vinho, e o mosto tiram o coração. O meu povo consulta a sua madeira, e a sua vara lhe responde, porque o espírito da luxúria os engana, e prostituem-se, apartando-se da sujeição do seu Deus. Sacrificam sobre os cumes dos montes, e queimam incenso sobre os outeiros, debaixo do carvalho, e do álamo, e do olmeiro, porque é boa a sua sombra; por isso vossas filhas se prostituem, e as vossas noras adulteram. Eu não castigarei vossas filhas, quando se prostituem, nem vossas noras, quando adulteram; porque eles mesmos com as prostitutas se desviam, e com as meretrizes sacrificam; pois o povo que não tem entendimento será transtornado.” (I Reis 18,10-14)
A frase “sou Bolsonaro, mas voto Marçal”, que pode ser vista em comentários de qualquer manifestação crítica do séquito bolsonarista ao coach da montanha, é um sinal inequívoco dessa vulnerabilidade que brota da sedução idolátrica, pois, uma vez que a fidelidade a Deus foi quebrada, a confiança nos ídolos é volátil e volúvel, muda ao sabor do vento; um ídolo jamais poderá satisfazer aquele vazio existencial que só pode ser preenchido por Deus.
Os cristãos deveriam ser os primeiros a convocarem a nação ao arrependimento e à rejeição a todo projeto humano messiânico; deveriam ser os primeiros a serem uma voz profética diante de tanta manipulação política em nome de Deus; deveriam ser os primeiros a confiar na providência divina diante de cenários espiritualmente desfavoráveis. Entretanto, agora é tarde. Assistamos, pois, o avanço de nossa queda. Pelo menos mudaremos o nosso mindset – nas trevas.
Observação: A pesquisa AtlasIntel mencionada nesta coluna foi feita com 1.803 paulistanos de 16 anos ou mais entre os 15 e 20 de agosto, tem margem de erro de 2 pontos porcentuais e índice de confiança de 95%. Está registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o número SP-02504/2024.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos