“Dom João ouvindo o padre José Maurício ao cravo”, de Henrique Bernardelli.| Foto: Wikimedia Commons

“O traço característico pelo qual o músico é reconhecido como parte de uma nação deve, em todo caso, ter um fundamento mais profundo do que os traços que nos levam a reconhecer Goethe e Schiller como alemães, Rubens e Rembrandt como holandeses, ainda que devamos admitir um motivo comum para tal origem. Investigar em seus pormenores tal motivo deve parecer tão atraente quanto examinar a fundo a essência da própria música”. (Richard Wagner, Beethoven)

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A história brasileira é, provavelmente, uma das mais – senão a mais – sui generis dentre as nações. A formação do nosso país é, desde o início, tão carregada de acontecimentos inóspitos que fica difícil compreendê-la a não ser com o coração aberto às mais espantosas contradições do espírito humano. Sim, prezado leitor, não se penetra na história brasileira através do ressentimento ou mesmo do simplismo anacrônico da historiografia militante. É preciso, antes de tudo, discernimento.

O Brasil é aquele país no qual a “invasão” encontrou, segundo Pero Vaz de Caminha, um povo à vontade, “todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”, e, sobretudo, receptivo, pacífico, pois “nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram”. E após terem subido à nau e sido recebidos, por Pedro Álvares Cabral e sua tripulação, “com muito prazer e festa”, rejeitaram comida, vinho, trocaram alguns pertences e tiveram a atitude mais brasileira de todas ainda hoje:

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Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.

É curioso pensar que um povo que se lançara ao mar com a intenção de encontrar terras por onde estender o seu reino tenha encontrado cá, do outro lado do Atlântico, num primeiro momento, não a guerra, mas a paz. Um sinal claro de como as coisas se dariam por aqui, ostentando um processo miscigenatório único na história humana, que, de certo modo, como diz Gilberto Freyre, “corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”. Afirmações que merecem ponderação, é verdade; mas negá-las nos leva à negação de nossa própria história. Todo o sofrimento pelos quais passaram os indígenas – primeiro alvo do processo de escravização – e, depois, os africanos e descendentes escravizados por quase 350 anos não pode ser absolutizado, ainda que tenha sido atroz, ainda que tenha maculado para sempre nossa história. Não podemos perder de vista que o Brasil nasceu sob os auspícios da modernidade e recebeu, tão logo pôde, os influxos da Revolução Francesa e do Iluminismo. Antes disso, era praticamente impossível pensar numa nação sem escravos. Como diz Ricardo Benzaquen de Araújo, em sua obra Guerra e Paz – Casa-grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30, a respeito da Revolução Francesa:

Anulando hierarquias, suprimindo privilégios e tentando transferir a soberania dos príncipes para o povo, eis que se instaura então no Ocidente uma generosa obsessão com a efetivação dos direitos naturais da pessoa humana e a conversão da justiça em algo palpável e universal. Esta obsessão, vale a pena registrar, admitirá as substâncias mais diversas e os mais variados caminhos, mas irá seguramente se tornar um dos ideais fiadores da nossa concepção de modernidade.

José Maurício Nunes Garcia é considerado por muitos o maior compositor de música sacra das Américas de seu tempo

Desse modo, a questão escravista não pode, simplesmente, ser analisada do ponto de vista dos direitos humanos do Iluminismo francês, pois esse não era o modo de pensar da Antiguidade ou mesmo da Idade Média. A noção de violência do regime deve vir acrescida da ideia de que, por mais de três séculos pessoas nasceram dentro dele, vendo, desde o nascimento até a morte, negros como escravos – ou seja, com a visão normalizada pela incontestável estrutura social vigente. Não se trata de ser condescendente com a violência, mas de ver as coisas como são, de julgar o passado com lentes apropriadas. Freyre, que muitos consideram um romântico em relação aos gravíssimos problemas da colonização brasileira, não deixa de salientar a crueldade quando relata, por exemplo, em Casa-grande & senzala, casos de senhores que mandavam “queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as crianças estourando ao calor das chamas”. Por outro lado, salienta que nossa formação foi um processo de “equilíbrio sobre antagonismos”; e que a miscigenação, como símbolo máximo desses processo, agiu sempre “amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-os, condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil”.

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E foi nesse ambiente totalmente singular que surgiu aquele que foi uma das maiores glórias brasileiras, que, como não poderia deixar de ser, teve sua vida envolta nesse oceano de contradições quase inimagináveis, provavelmente só possíveis no Brasil. Estou falando de José Maurício Nunes Garcia, considerado por muitos o maior compositor de música sacra das Américas de seu tempo.

José Maurício Nunes Garcia nasceu em 22 de setembro de 1767, no Rio de Janeiro, filho de Apolinário Nunes Garcia, alfaiate, e de Vitória Maria da Cruz, lavadeira, ambos mestiços, filhos de “crioulas da Guiné” – escravas, portanto – com brancos (provavelmente seus senhores).Viveu uma vida modestíssima; tendo perdido o pai aos 6 anos, foi sustentado pela mãe e pela tia (de nome desconhecido), duas lavadeiras que, percebendo o talento do menino para o estudo, custearam-lhe, com muito esforço, aulas particulares. Conforme nos conta Alfredo d'Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, o mais célebre biógrafo de José Maurício – e contumaz entusiasta de sua obra:

Foram estas duas valentes mulheres que, por meio de seu trabalho diário, talvez a lavar e engomar para fora, se empenharam em mandar ensinar-lhe a ler e a escrever, além das quatro operações aritméticas, e não pequenos esforços empregaram para que fosse crescendo em certa roda de meninos mais ou menos morigerados, não em malta de vagabundinhos, e pudesse assim, pelas aptidões, de pronto reveladas, recomendar-se ao interesse e à atenção dos mestres e das pessoas generosas.

Mas antes de continuar, estimado leitor, gostaria de salientar que o ambiente musical no qual José Maurício se criou não poderia ser mais característico desse equilíbrio sobre antagonismos brasileiro. É quase inacreditável que, em pleno regime escravista, tal realidade fosse possível. Diz Taunay que “os cronistas do tempo nos falam com verdadeiro entusiasmo dos cantores e instrumentistas pretos e mulatos, ensinados conforme a tradição da Companhia […]”. A prova é o relato surpreendente do estatístico Adrien Balbi, em seu Essai Estatistique:

Pensamos que teríamos atingido nosso objetivo apenas de maneira imperfeita, se não disséssemos uma palavra sobre um tipo de Conservatório de Música estabelecido há muito tempo nos arredores do Rio de Janeiro, e que se destina apenas a fomentar os negros na música. Esta instituição é devida aos jesuítas, assim como todos aqueles estabelecidos no Brasil antes da chegada do rei, e estão ligados à civilização e educação do povo […] Quando o rei chegou ao Rio de Janeiro, [ele] e toda a corte ficaram admirados a primeira vez que ouviram missa na igreja de Santo Inácio de Loyola, em Santa Cruz, da perfeição com que a música vocal e instrumental era executada por negros de ambos os sexos, que haviam se aperfeiçoado nessa arte segundo o método introduzido vários anos antes pelos antigos proprietários dessa fazenda, e que felizmente haviam sido preservados. Sua Majestade, que ama a música, querendo tirar proveito dessa situação, fundou escolas de primeiras letras, de composição musical, de canto e de vários instrumentos em sua casa de campo, e conseguiu, em pouco tempo formar, entre seus negros, instrumentistas e cantores muito habilidosos. Os dois irmãos, Marcos e Simão Portugal, têm peças especialmente compostas para estes novos discípulos de Terpsichore, que as executam à perfeição; e vários deles foram admitidos entre os músicos das capelas reais de Santa Cruz e de São Cristóvão. Alguns chegaram a tocar instrumentos e cantar de uma maneira verdadeiramente admirável. Lamentamos não podermos dar os nomes do primeiro violino, do primeiro fagote e do primeiro clarinete de São Cristóvão, e duas negras que se distinguiram entre suas companheiras pela beleza de suas vozes e pela arte e expressão que revelam no canto. Os dois irmãos Marcos e os maiores conhecedores do Rio de Janeiro os têm em muito apreço. Sua Majestade assistiu muitas vezes a cerimônias religiosas nas quais toda a música foi executada por seus escravos músicos.

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Com a chegada do príncipe regente dom João VI ao Brasil, em 1808, a vida de padre José Maurício Nunes Garcia ganha um fôlego – e que fôlego!

Mas o caso específico de José Maurício Nunes Garcia é ainda mais espetacular. Estudou música com Salvador José “o pardo” de Almeida e Faria, conterrâneo de sua mãe (de Mariana, MG) e velho amigo da família; depois, filosofia racional e moral com Agostinho Corrêa da Silva Goulão; e gramática latina, com Padre Elias. Após três anos de estudos, os dois mestres lhe fizeram o convite para lecionar as disciplinas, mas ele declinou, uma vez que já ganhava algum dinheiro como músico, tocando em orquestras e bandas. No entanto, consta que tenha dado aulas de Filosofia, “e com muito brilho”, conforme nos diz Taunay – provavelmente em período posterior. Mais precisamente em 1779, quando tinha apenas 12 anos, começou a dar aulas particulares de música. Curiosamente, José Maurício nunca teve instrumento próprio, antes treinava nos pianos e cravos de seus alunos.

Em 1790 perdeu sua tão amada e benfeitora tia e, dois anos depois, finalmente – não sem uma série de percalços – veste o hábito sacerdotal. Taunay revela: “José Maurício, mulato como era, e bem caracterizado, precisava fazer desaparecer a desigualdade original que o colocava, aos olhos dos concidadãos e filhos da mesma pátria, em posição naturalmente inferior e retraída”. Mas não foi tão fácil assim. José Maurício tinha, em larga escala, as qualidades exigidas para o sacerdócio – tais como o sentimento católico de seus pais, sua boa índole e educação, a moralidade familiar etc. No entanto, outro obstáculo se interpunha entre o decidido postulante e sua ordenação. Quem nos conta é a musicóloga Cleofe Person de Mattos, em sua biografia de José Maurício:

O depoimento das testemunhas não alcançava, porém, o limite das exigências do processo de habilitação. Erguia-se diante de José Maurício outra dificuldade a ser vencida, ou justificada: o problema da raça, olhado como defeito para os futuros sacerdotes. Razão por que, ao mesmo tempo que formaliza em ofício o seu desejo de ingressar na vida religiosa, José Maurício, que qualifica de “irregularidade” o defeito de cor, dirige-se ao bispo, solicitando a indispensável licença “justificativa” desse “defeito”, sem a qual não lograria habilitar-se.

É difícil acreditar que algo assim possa ter acontecido. Mas estamos no Brasil, caríssimo leitor, terra, como já disse, calcada em contradições, em antagonismos. Não havia, nas exigências da Igreja Católica, qualquer impedimento para que negros fossem padres; a Igreja tinha, já a essa época, santos negros – como Santa Ifigência e Santo Elesbão. Essa era uma proibição local, vinda da constituição eclesiástica da Bahia, que proibia pretos e seus descendentes de entrarem para o sacerdócio. Mas José Maurício faz uma petição contundente, solicitando para que seja dispensado do “defeito de cor”, uma vez que cumpria todos os demais requisitos. Suas palavras demonstram a habilidade retórica que, posteriormente, ele aperfeiçoará com o grande poeta Silva Alvarenga. Quem apresenta o texto é a professora Cleofe:

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Diz José Mauricio Nunes Garcia natural e batizado na Catedral desta cidade, filho legítimo de Apolinário Nunes Garcia e de Vitória Maria da Cruz, pardos libertos, que ele, para ser dispensado da cor e merecer de Vossa Excelência a dispensa quer justificar os itens seguintes: Que ele é (...) filho legítimo dos pais acima declarados, pardos, filhos de pretos, os quais deram boa educação ao justificante. Provará que este mesmo, desde a sua infância, teve vocação para o estado sacerdotal, e, para melhor poder conseguir, se tem aplicado aos estudos de gramática, retórica e filosofia racional e moral, e arte da múzica. Provará que o justificante tem vivido com regularidade nos seus costumes, sem nota alguma, e espera sê-lo até o fim de sua vida, (...) ser temente a Deus, e obediente as leis. Provará que o justificante não desmerece esta graça não só por não estar incurso em alguma irregularidade que a do defeito da cor... digo suspensão e excomunhão, como porque espera da benigna piedade de Vossa Excelência esta grande esmola com a qual poderá fazer as mais diligências do estilo. Pede a Vossa Excelência [que] queira dignar-se admitir o  justificante a justificar as premissas, e justificadas de (...) com o suplicante do defeito da cor por serem seus pais pardos filhos de pretos, visto que Vossa Excelência tem esta faculdade, a qual espera o suplicante, na misericórdia do Senhor, possa bem aproveitar lhe fazendo a Deus bons serviços no estado sacerdotal, remetendo para esse fim ao Muito Reverendo Dr. Provisor na forma do estilo. (grifo nosso)

Evocou, para ser aceito, algo tão incontestável quanto sua cor: sua excelência moral e inteligência destacada. Ou seja, como tenho repetido aos meus jovens alunos: nada resiste ao verdadeiro talento.

Quem responde é o deão Francisco Gomes Villas Boas, mencionando a proibição da constituição baiana, mas salientando que, ainda que José Maurício e seus pais sejam “descendentes de pretos”, tanto eles quanto o “justificante orador [...] tem vivido com muita cristandade, e o mesmo orador é bem morigerado, e com muita vocação, desde seus tenros anos, para o estado eclesiástico, e com muita aplicação aos estudos de latinidade, retórica e filosofia, que por todas estas boas qualidades virá a ser muito útil à Igreja”.

Por fim, em 1792 é aceito, aos 25 anos, tornando-se presbítero e, logo em seguida, padre, ofício que cumprirá com extrema fidelidade até sua morte. Há, ainda, outro detalhe digno de nota: para ser padre era também necessário ter algum patrimônio. José Maurício, de família pobre, obviamente não tinha. Quem lhe fez uma caridade, doando-lhe um imóvel, foi o comendador Thomás Gonçalves, rico comerciante local, cujo filho era companheiro de estudos de José Maurício. Tal casa se tornaria, posteriormente, a casa onde ele manteria sua escola de música por décadas, destacando-se como professor nato, um verdadeiro educador e benemérito da sociedade. Quem nos conta é o Visconde de Taunay:

Grandeza d'alma, dizíamos, pois no meio das dificuldades da vida colocou, antes de tudo e com inexcedível desinteresse, o nobilíssimo sentimento de ser útil a seus patrícios, facilitando aos desprotegidos da fortuna, lembrando sem dúvida dos penosos dias da própria existência, os auxílios e os conselhos de que tanto necessitam os primeiros passos de qualquer carreira – incansável e nunca assaz exaltada constância, porquanto manteve essa aula, ele só, sem apoio nem recompensa, por espaço de trinta e oito anos, até quase seus últimos dias em 1830!

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Apesar do grande apreço de dom João VI pelo padre músico, isso não foi suficiente para livrá-lo de todo das dificuldades

Com o sacerdócio, sua carreira de compositor, iniciada já nos idos de 1783 – aos 16 anos compôs sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria –, ganha destaque. Já era professor de música consagrado, sobretudo na Irmandade de Santa Cecília, que zelava – sob as bênçãos da padroeira dos músicos – pela infraestrutura musical da cidade. Porém, como padre, passa a ajudar no ofício do então mestre de capela, cônego Lopes Ferreira, já idoso; poucos anos depois, em 1798, se aposentaria e indicaria para o cargo o jovem padre José Maurício. A essas alturas, seu talento como orador também era reconhecido. Como diz o grande Januário da Cunha Barbosa – um dos grandes intelectuais de seu tempo, e que fora, também, cônego da capela real –, padre José Maurício “estudou retórica com igual aproveitamento, ouvindo as lições do doutor Manoel Ignácio da Silva Alvarenga, e deu provas, depois, de que estava senhor dos preceitos de eloquência e de que sabia usar deles na exposição de argumentos de teologia, a que também se aplicou em muitos e excelentes sermões que pregou, depois de se ordenar de presbítero no ano de 1792”.

Com a chegada do príncipe regente dom João VI e da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, a vida de padre José Maurício Nunes Garcia, tão marcada por dificuldades e discriminações, sofrendo preterimentos de toda ordem, ganha um fôlego – e que fôlego! O padre caiu nas graças do rei, cuja sensibilidade musical logo notou, no mestre de capela, exímio talento, transformando-o em mestre da Capela Real. O escritor Manoel Araújo Porto-Alegre, também entusiasta e biógrafo de José Maurício, diz que:

Para se avaliar o poderio e a força do talento de José Maurício, basta dizer que el-rei o chamava de novo Marcos [Portugal], antes que este célebre compositor tivesse chegado ao Brasil; e que, a despeito de sua cor mestiça, era tolerado na corte, nessa corte onde o auto de nascimento formava o maior merecimento de um homem, dava direito a todas as simpatias, e onde ser brasileiro, e mormente mulato, bastavam para alienar de si todos os favores, e mesmo muitos direitos. O senhor D. João VI era o único que de coração nunca distinguiu no homem incidentes ou acidentes.

A fama absolutamente injusta de dom João VI, de homem bonachão e tosco, é desmentida por seus feitos – escamoteados por essa historiografia ressentida do último século: “incontestavelmente”, diz Taunay, “tinha esse monarca a mais elevada intuição e generosíssimos impulsos”. Criou a Academia de Belas Artes, trazendo uma plêiade de artistas franceses a fim de ensinar os artistas brasileiros; a família Taunay, que tanto contribuiu com a nossa cultura, veio nessa comitiva. Numa cena emocionante, ocorrida em 1810 e que coroou a atividade musical de padre José Maurício, dom João o condecorou com o Hábito da Ordem do Cristo. Quem nos relembra é, mais uma vez, o Visconde de Taunay: “Em uma dessas grandes festividades, sentiu-se el-rei tão arrebatado de entusiasmo que, acabada a festa, mandou chamar ao paço o padre José Maurício, e, em plena corte, tirando da farda do Visconde de Villa Nova da Rainha o Hábito de Cristo, colocou-o com a sua própria mão no peito do seu músico, dizendo-lhe, ao mesmo tempo, as coisas mais lisonjeiras”. E completa: “Esse ato de el-rei animou e deu alento ao grande artista, que mais facilmente soube desdenhar as zombarias da corte, e rir-se da ignorância daqueles que desprezavam-no por ser um pouco escura a cor da pele”. O padre mesmo declarou, certa vez: “o que tenho sofrido daquela gente, só Deus sabe; se não tivera el-rei do meu lado, mil vezes estalaria de dor!”

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É certo, a professora Cleofe o confirma, que, apesar deste grande apreço de dom João VI pelo nosso padre, isso não foi suficiente para livrá-lo de todo das dificuldades. Era muito exigido na corte, pois o rei não se preocupava muito com o tempo de composição das obras; antes pedia, estipulava um prazo e o padre tinha de se desdobrar para cumpri-lo. O seu ordenado, que foi, é fato, aumentado por dom João, não condizia com o seu grande número de atividades – dentre as quais os sermões, as aulas, a composição e a regência na capela real – e lhe mantinha em dificuldades financeiras constantes. No entanto, como foi dito, sem o reconhecimento do rei, a vida de José Maurício, um gênio em meio a medíocres, teria sido muito pior.

Cumpre-nos, como brasileiros, reconhecer e exaltar a vida e obra do padre José Maurício Nunes Garcia

As disputas com famoso compositor e organista luso Marcos Portugal, célebre no mundo à época e que, desde sua chegada ao Brasil, em 1811, fez ao padre a mais absoluta oposição – não só por inveja, mas pela própria disputa entre os estilos, uma vez que Portugal era filiado à escola italiana, e padre José Maurício já respirava ares alemães, influenciado, sobretudo, por Mozart e Haydn –, são bastante conhecidas. José Maurício suportou a tudo com sua fortaleza característica, não entrando em embates, antes provando, sempre que podia, seu valor incontestável, reconhecido pelo próprio Marcos Portugal num encontro promovido pela rainha Carlota Joaquina, que, querendo testar a capacidade de seu mestre de capela, convidou Marcos Portugal para avaliá-lo. O padre executou uma peça dificílima de Haydn, que deixou o compositor português embasbacado. Mas isso não foi o suficiente, pois Marcos Portugal assumiu a função de mestre da Capela Real, tomando o lugar de José Maurício. Diz a professora Cleofe: “A presença do compositor português foi notória sobretudo no cumprimento das prerrogativas correspondentes ao título de mestre compositor que lhe fora outorgado. Não só a responsabilidade de compor para as cerimônias que se realizavam na Real Capela, que passava às suas mãos, como se adianta que dom João 'descia à Real Capela quando o regente era Marcos Portugal'”. Ele e seus músicos, chegados com ele de Portugal, desdenhavam do padre José Maurício e lhe disputavam espaço a todo momento. Mas ele resistiu.

Em 20 de março de 1816 morre sua mãe, curiosamente no mesmo dia da rainha-mãe, dona Maria I. O famoso Réquiem composto por padre José Maurício para a cerimônia da Ordem Terceira do Carmo em homenagem à rainha-mãe está cheio da pungência pela morte de sua própria mãe.

Com a partida de dom João VI para Portugal, em 1821, padre José Maurício foi cada vez mais caindo no ostracismo. Diz a professora Cleofe: “O mundo afetivo do padre José Maurício ficou profundamente abalado com essa partida. Ia-se embora o amigo, o protetor, o rei que lhe dava valor. Se fora difícil conviver na Capela e na corte enquanto o rei permanecera no país, mais tristes tornaram-se os seus dias após a partida daquele a quem, apesar de tudo quanto sofrera, silenciosamente, à sua sombra, nele via apenas o rei que apreciava sua música”. Para piorar a situação, dom Pedro I, com a justificativa de contenção de despesas, diminui a pensão que o padre recebia, e suas dificuldades financeiras aumentaram consideravelmente. A essas alturas, Marcos Portugal, já doente de apoplexia, reconhecera o valor do padre e tinha por ele grande estima.

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Padre José Maurício Nunes Garcia morreu em 18 de abril de 1830, aos 62 anos, em reclusão e na miséria. Como diz o seu filho, o médico José Maurício Nunes Garcia Júnior: “mais tarde, quando faltaram recursos a meu pai, ocupava-se ele em cozinhar, lavar, engomar, inclusive costurar. Uma vez, fez sapatos”. Falando em filhos, apesar de sua condição de sacerdote, padre José Maurício teve cinco filhos com Severiana Rosa de Castro; dentre eles, o conhecido médico que leva o seu nome, e o músico Apolinário José. Deixou composições de reconhecimento internacional, como as missas da Conceição, de Nossa Senhora do Carmo e a Pastoril, bem como a grandiosa Missa de Santa Cecília. Igualmente marcantes são o Réquiem e o Ofício dos Defuntos, de 1816, e as Matinas de Finados. Também foi conhecido compositor popular, cuja mais famosa obra é a modinha Beijo a mão que me condena. Como diz o Visconde de Taunay, “constituem as numerosas composições de José Maurício precioso tesouro, que tem sido, até os nossos dias tratado, digamo-lo francamente, com a maior indignidade”.

Cumpre-nos, como brasileiros, reconhecer e exaltar a vida e obra do Padre José Maurício Nunes Garcia, que o Barão de Taunay, pai do Visconde que lhe biografou – que infundiu no filho o amor pela obra do padre –, sempre que pedia notícias do nobre e esquecido compositor, diretamente da França – para onde retornou em 1821 –, perguntava por Le Grande Mulatre!