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“Louvo o desprendimento e a total disponibilidade sobre toda a humildade; e isso porque pode haver humildade sem desprendimento, mas não pode haver desprendimento perfeito sem humildade perfeita, pois a humildade perfeita tende à anulação do próprio eu”. (Mestre Eckhart)
Sim, meu caro leitor, sei que ditadores sanguinários andam desfilando por aqui e que nossa bananeira República, mais uma vez, está servindo de mau exemplo para o mundo civilizado. Mas disso todo mundo está falando. Também sei que terminou a gloriosa Succession, a melhor série da atualidade, que merece todos os louvores que vem recebendo. Mas dela também todo mundo está falando. E o que seria desta Gazeta do Povo, cuja marca é a diversidade, se todo mundo, aqui, estivesse falando da mesma coisa? Pois louvemos isso.
Na última segunda-feira dei aula em meu Clube do Livro, e, sempre que algo me chama a atenção num autor que trabalhamos, gosto de trazer para minha coluna a fim de dividir com meus leitores pelo menos um pouquinho do que vimos na aula. Já fiz isso com Lima Barreto, Flannery OʼConnor, Machado de Assis e Georges Bernanos. Agora é a vez de falar de Liév Tolstói, um dos maiores romancistas da literatura mundial, autor dos estupendos Guerra e Paz e Anna Kariênina, e uma grande quantidade de novelas e contos extraordinários.
Esse mês investimos num texto curto, uma das novelas tolstoianas que li há muitos anos e cujo impacto em mim nunca diminuiu, mesmo porque inspirou um filme que também amo, do qual falarei abaixo. Padre Sérgio é um texto dinâmico e extremamente bem escrito (e belamente traduzido por Beatriz Morabito), que tem características de oralidade, como bem observou o tradutor Boris Schnaiderman, daquelas lendas medievais sobre os santos da tradição cristã. Diz ele, na apresentação da obra: “A sucessão de episódios apresentados em forma de parábolas, a estrutura de feição linear e a linguagem de aparência simples (exceto nos primeiros capítulos) se prestam para sintetizar uma vida inteira no âmbito de um relato que pode ser lido, ou falado, num tempo relativamente curto.” As aspirações de um jovem que, desde criança, sente o toque divino, mas acaba por ceder, pelo menos por um momento, aos poderes mundanos. Seus desejos, decepções e, sobretudo, tentações são tratadas por Tolstói com maestria ímpar.
Mas a novela também exala um aspecto bastante reprovável da personalidade de Tolstói – principalmente nos anos em que estava escrevendo a obra, entre 1890 e 1898, intermitentemente: a misoginia. Pois é, amigo leitor, também me surpreendi durante a pesquisa e alguns alunos do Clube também notaram isso na obra. Poderíamos depositar tal característica na personalidade do protagonista se a biografia do autor não o denunciasse. Como diz Schnaidernan, a obra, de fato, “tem esses atributos todos e é a personificação da visão de Tolstói tinha então da mulher”. Ou seja, nosso conde Liév Nikolaevitch Tolstói tinha opiniões absolutamente constrangedoras a respeito das mulheres, e isso, de certo modo, está reproduzido no modo como o protagonista da novela, Stiepan Kassátski – o Padre Sérgio –, as vê: quase sempre como veículos de tentação.
Primeiro ele desiste do casamento, na véspera, ao descobrir que sua noiva, à qual tinha se unido, confessadamente, por interesse, fora amante do imperador. Depois, tendo tomado o hábito de monge, passa pela situação da cena tétrica na cela do mosteiro, em que, para fugir da tentação da divorciada Mákovkina – que apostara com amigos que poderia seduzi-lo –, toma uma decisão desesperada (que guardo para a curiosidade do leitor). Depois, a cena da derradeira queda, com a filha do comerciante. Com exceção de sua mãe, sua irmã e a redentora Praskóvia Mikháilovna – a Páchenka –, as mulheres são todas de caráter duvidoso, prontas a levar o quase-santo à ruína espiritual.
O fato é que ler Tolstói é sempre uma experiência empolgante, e apesar de ter sido um homem, em muitos sentidos, deplorável, foi um gênio literário absoluto, e essa genialidade salvou sua obra do didatismo ideológico e do falso moralismo.
E nosso querido Tolstói não nos deixa em dúvidas a esse respeito, pois seus diários e cartas têm declarações inconfessáveis a respeito das mulheres. No ano em que terminou Padre Sérgio, 1898, escreveu em seu diário: “[As mulheres] geralmente são estúpidas. Mas o diabo lhes empresta miolos quando elas trabalham para ele. Então, elas realizam milagres do pensamento, da prudência e da constância com o fim de fazer algo sórdido [...]. É inútil pedir a uma mulher que avalie os sentimentos de seu amor exclusivo com base no sentimento moral. Ela não consegue fazê-lo porque não possui o verdadeiro sentimento moral, isto é, um que está acima de todos os outros.”
Chocante, não é? Mas não se engane pela data, pois o clássico escritor pensava assim desde muito jovem. Em 1847, aos 19 anos, escreveu:
“Agora, devo estabelecer minha próxima norma. Considere a companhia de mulheres como um mal social inevitável e mantenha-se o máximo possível afastado delas. Quem, na realidade, é a causa da sensualidade, da indulgência, da frivolidade e todo tipo de outros vícios em nós senão as mulheres? Quem deve ser culpado pela perda de nossas qualidades naturais, tais como a coragem, a firmeza, a sensatez, a probidade etc. senão as mulheres?”
O historiador Paul Johnson, num capítulo pouquíssimo elogioso de seu Os intelectuais em que trata de Tolstói, diz que, para além de seu desejo de ser um reformador social e um profeta – “queria liderar, atividade para a qual não tinha a menor habilidade, o que é diferente de vontade; também queria profetizar, fundar uma religião e transformar o mundo, tarefas para as quais ele era moral e intelectualmente desqualificado” –, Tolstói abusava das servas de sua propriedade, tendo, inclusive, um filho com uma delas, Timofei Bazikin, que ele jamais assumiu. E que, na verdade, “em contraste com seus esforços no sentido de retratar Anna Kariênina, parece que ele nunca fez um esforço sério na vida real para penetrar e compreender a mente de uma mulher. Na verdade, não admitiria que uma mulher pudesse ser uma pessoa séria, adulta e que possuísse uma moral”.
Há uma discussão sobre o quanto a mentalidade revolucionária e apocalíptica de Tolstói influenciou em sua obra. O grande crítico Harold Bloom pensa que não há influência, a obra permanece soberana; já Otto Maria Carpeaux e George Steiner julgam que sim. Como diz Steiner: “o panfleto invadiu o poema”. Mas o fato é que ler Tolstói é sempre uma experiência empolgante, e apesar de ter sido um homem, em muitos sentidos, deplorável, foi um gênio literário absoluto, e essa genialidade salvou sua obra do didatismo ideológico e do falso moralismo. Sem contar que não são todas as suas personagens femininas que são retratadas de maneira negativa; Anna Kariênina, por exemplo, é quase a antítese da mulher vulgar que ele descreve em seus diários. Também há obras cujo tema não está tão perpassado por suas ideias morais ou religiosas, como Guerra e Paz ou mesmo a espetacular novela Khadji-Murat. Ou seja, minha intenção não é desestimulá-lo a ler Tolstói, mas somente trazer essa, digamos, curiosidade, que gerou reflexões bastante interessantes na aula do Clube.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise