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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Inspiração

Um país sem heróis

Ayrton Senna no GP dos Estados Unidos de 1991, temporada em que foi tricampeão do mundo. (Foto: wileynorwichphoto/Creative Commons Attribution 2.0 Generic license)

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“O esplendor da espécie humana – depois de termos visto o horror dela, o de que é capaz –, o esplendor é que ninguém, sozinho, pode encontrar seu caminho. Esta é a verdade.” (Gabriel Liiceanu)

Em aula recente de Projeto de Vida – disciplina eletiva do rocambolesco Novo Ensino Médio –, numa turma de 9.º Ano do ensino fundamental, o tema era “o que te inspira?”. E, para meu espanto, descobri que, de uns 35 alunos que estavam na sala, apenas dois responderam que têm em suas vidas pessoas que os inspiram. Um deles falou de seu avô, homem trabalhador incansável e dedicado à esposa doente há muito tempo; e o outro mencionou o jogador de futebol português Cristiano Ronaldo. E só. Os outros simplesmente não responderam nada, e aqueles aos quais perguntei diretamente me disseram, de bate-pronto: “não tenho ninguém que me inspire”.

Daí, naquele momento, a pergunta que me fiz – e que está respondida na epígrafe pelo filósofo romeno Gabriel Liiceanu – foi: como alguém pode almejar e alcançar objetivos na vida sem pessoas que lhes sirvam de inspiração, de modelo exemplar? Pois é, ninguém. Tentei, então, apontar-lhes a necessidade de termos pessoas em quem nos espelhamos ou que admiramos a ponto de querermos seguir-lhes os passos, imitar seus feitos ou mesmo sua personalidade e trajetória, e lhes ofereci um exemplo pessoal.

O motor de uma sociedade é a capacidade de seus cidadãos de levarem adiante os ideais que garantem o progresso e a prosperidade

Quando terminei o colegial (atual ensino médio), por ter feito um curso técnico de quatro anos (Eletrônica), não quis fazer faculdade naquele momento. No entanto, durante aquele, digamos, ano sabático encontrei-me com um amigo com quem havia estudado no ginásio (o atual fundamental II) e ele já estava no segundo ano de faculdade, pois fez um curso técnico de três anos e já emendou no curso superior. Enquanto conversávamos e ele me contava de suas realizações até aquele momento, pensei: “caramba, ele já está no segundo ano da faculdade e eu nem comecei!” Outra coisa da qual me lembrei é que, sendo o filho caçula, meus irmãos mais velhos ainda não tinham se graduado. Lembrei que poderia dar essa alegria aos meus pais, que, aliás, decidiram estudar tarde pensando no bem da família.

Ou seja, tive duas inspirações marcantes naquele momento: meu amigo João e meus pais; e, ainda, um contraexemplo: meus irmãos – que, depois de mim, também se graduaram. Mais do que isso, tenho muitas outras inspirações vindas do mundo da cultura (Quincy Jones), da história (André Rebouças), do esporte (Pelé), da política (Dom Pedro II) e tantos outros que me serviram e servem de exemplo para que eu, cada vez mais, busque realizar meus propósitos com excelência. Não só pensando em mim, mas sabendo que o motor de uma sociedade é a capacidade de seus cidadãos de levarem adiante os ideais que garantem o progresso e a prosperidade.

No Brasil, creio que a última figura capaz de produzir em larga escala esse efeito simbólico de heroísmo foi Ayrton Senna, cuja morte completou 30 anos em 2024. Senna foi um corredor singular, não só pela capacidade técnica, mas pela obstinação, que contrastava com sua personalidade apolínea (como Pelé, outro símbolo), não dada a escândalos e conflitos. Mesmo praticando um esporte de elite como a Fórmula 1, Senna unia todas as classes sociais nos domingos pela manhã em que nos brindava com suas vitórias extraordinárias. Aguardávamos o Tema da Vitória e Galvão Bueno gritando, entusiasticamente: “Ayrton, Ayrton, Ayrton Senna, do Brasil!”

Sua morte, em 1.º de maio de 1994, gerou um nível de comoção jamais visto no Brasil e no mundo, e está entre os funerais mais assistidos da história. Lembro-me vivamente da Rede Globo tocando sem parar a Canção da América, de Milton Nascimento, e mostrando a cena não propriamente do acidente, no GP de San Marino, na Itália, mas do momento em que a cabeça do piloto se moveu, no que pareceu ser seu último suspiro. Foi muito marcante. Um exemplo do nível de comoção foi o modo como jornalistas japoneses noticiaram a morte de Senna, dizendo que, se não fosse por ele, o esporte não teria se tornado tão conhecido no Japão. Depois de Senna, outras mortes de brasileiros causaram grande comoção (como a de Pelé), mas nenhuma foi como a dele.

Mas veja, caro leitor, isso foi há 30 anos. Depois de Senna não tivemos ninguém capaz de unir o Brasil desse modo. Mesmo Pelé teve sua imagem o tempo todo ameaçada, sobretudo por ativistas negros, por supostamente não ter lutado contra o racismo e ter “abandonado” uma filha. E talvez seja esse fato que nos tem feito, desde então, procurar entre políticos (populistas) essa figura heroica que nos falta na cultura. Mas políticos que são capazes de unir a população geralmente o fazem por intenções pessoais; afinal de contas, quanto mais pessoas acreditando no que eles dizem, mais votos. E esse não é exatamente um motivo inspirador.

Talvez o advento da internet tenha pulverizado de tal modo os interesses que o reconhecimento de heróis, de símbolos inspiradores e modelos exemplares seja muito mais difícil de construir em larga escala. Mas ver meus alunos sem esse impulso, sem essa perspectiva, sem essa motivação nem mesmo de modo particular, é não só triste, mas preocupante, pois compromete não só o seu futuro individual, mas o futuro do país.

Urge surgir entre nós novos heróis, novos sedutores, não que nos conduzam a um caminho errado, mas que nos mostrem o certo

Gabriel Liiceanu fala desse impulso recuperando o sentido tradicional da palavra sedução. Em sua obra Da Sedução, ele diz: “Que diz o verbo seduco? Em primeiro lugar, seduco significa ʻlevar a uma parteʼ, ʻretirar a uma parteʼ, ʻlevar à parteʼ [...]. Daqui se generaliza de maneira natural o sentido de ʻsepararʼ, ʻdivorciarʼ”. Ou seja, seduzir, nesse sentido, quer dizer, conduzir alguém (à parte) e mostrar-lhe um caminho. Todos, diz ele, “somos orientados por um desejo confuso, para horizontes vastos da vida. Qualquer adolescente diz isso”. E complementa:

“Somos, em cada situação, seduzidos por aqueles que, em termos freudianos, nos propiciam o ʻvivenciar da satisfaçãoʼ. O sedutor é o que faz possível ʻo vivenciar da satisfaçãoʼ no horizonte de um desejo que não consumiu nunca seu objeto. Ele é o único que dá perspectiva a esta consumação e que, assim, se torna indispensável para a realização do princípio do prazer. Uma vez que, na nossa vida, aparece uma nova necessidade, e em seguida a ela, um novo desejo está à espreita, somos aptos a ser seduzidos e começamos a esperar e a procurar quem nos pode ajudar a suprimir o desamparo e a obter ʻo vivenciar da satisfaçãoʼ […]. O sedutor dá a mão ao seduzido e o conduz por um mundo que o seduzido espera, mas que apenas ele, o sedutor, é o que abre e que, para os outros, não existe. O mundo que o sedutor abre é o mundo encantado da sedução e exatamente no seu mistério, na sua novidade, na sua unicidade consta toda a força da sedução.”

Desse modo, como ele complementa numa entrevista a Horia-Roman Patapievici que vai ao fim do volume: “A vida de cada um de nós não se pode realizar verdadeiramente senão se alguém te tomar e te conduzir por um caminho que é a tua realização”. Por isso urge surgir entre nós novos heróis, novos sedutores, não que nos conduzam a um caminho errado, mas que nos mostrem o certo. Nossa juventude depende disso.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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