Sabe, meu caro Taunay, para não chorar, dia e noite, recorro às mais difíceis equações do cálculo diferencial e integral. É o único meio de vencer a obsessão da guerra civil e dos bombardeamentos. (André Rebouças, em 1893)
Mais uma uma vez um ser humano foi transformado em palanque político; mais uma vez o racialismo ganha mais destaque que a dignidade humana; mais uma vez o sentimentalismo tomou lugar da racionalidade objetiva; mais uma vez a virtude deixa de ser uma qualidade moral para se tornar uma bandeira a ser hasteada por todos aqueles cuja vida se mede pelo engajamento; mais uma vez o evangelho da violência – que, na verdade, é um dysangelium, para usar o termo nietzschiano – foi pregado e suas consequências não são a salvação das almas doentes, mas a condenação sumária de inocentes.
João Alberto de Freitas, morto por espancamento de forma absolutamente brutal, na última quinta-feira, num supermercado Carrefour, em Porto Alegre – ouça meu comentário aqui –, para a imprensa brasileira perdeu a sua humanidade e foi transformado no homem negro. O Carrefour, diante da impessoabilidade das acusações de racismo, se transformou numa empresa racista, mesmo tendo em seu quadro de funcionários, segundo seu vice-presidente de recursos humanos, 57% de funcionários negros e mais de um terço de gestores negros, e de ter criado, ainda em 2013, um Comitê de Diversidade, e ter encabeçado, em 2015 – a partir da fundação do Instituto Carrefour e da realização de um fórum de discussão sobre diversidade e inclusão –, a criação da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, com investimento de dezenas de milhões de reais, da qual foi suspensa após o horripilante evento da última quinta. Ainda assim, irresponsáveis vandalizaram lojas da rede e – como sói acontecer em casos como esse – funcionários negros pagaram pelo ocorrido. Ou seja, como diz o ditado: a corda sempre estoura do lado mais fraco; e, parafraseando a música – contraditoriamente sempre usada em favor de tais protestos violentos –, a carne mais barata do mercado continua sendo a carne negra.
Saber se houve racismo ou não na ação dos assassinos deixa de ser uma busca pela verdade, mas apenas uma disputa narrativa que confirme visões previamente estabelecidas
Tudo isso é muito lamentável, pois, para além do assassinato e da selvageria absurda perpetrada por Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva – que devem receber condenação exemplar, de acordo com todo o rigor da lei –, e da total inércia de todos aqueles que foram testemunhas oculares – cúmplices? – do assassinato a sangue frio sem nada fazer, somos levados não a uma reflexão profunda sobre os aspectos reais de todo o ocorrido, desde seu início até o seu trágico desfecho, mas cada um escolhe qual parte enfatizar, a fim de marcar uma posição política diante de sua audiência e de seus pares.
Some-se a isso a total irresponsabilidade de grande parte da imprensa, cujo papel primordial deveria ser informar, mas, ao contrário, induz a população a conclusões que brotam das preferências político-ideológicas de seus redatores e jornalistas, provocando mais ruídos em vez de esclarecimentos. Isso acaba obrigando toda a sociedade a reagir imediatamente, construindo uma imensa Torre de Babel de opiniões e a perda total da realidade e objetividade dos fatos. Diante de tal situação, sabermos se houve racismo ou não na ação dos assassinos deixa de ser uma busca pela verdade, mas apenas uma disputa narrativa que confirme visões previamente estabelecidas. Resultado: mais divisão, mais animosidade, mais esgarçamento de nosso frágil tecido social.
Entretanto, há ainda algo que nos escapa enquanto sociedade nesse debate, capturado politicamente e marcado por ideologias secularistas da modernidade: nossa natureza e nossa dignidade foram totalmente pulverizadas num coletivismo que nos descaracteriza e nos transforma em meras peças num xadrez de poder que nos foge à compressão. A ideia rousseauniana de que “o ser humano é bom, mas a sociedade o corrompe” nos torna, todos, ao mesmo tempo, inocentes dentro de um sistema que, por si só, nos aprisiona e oprime, e também culpados pela reprodução desse sistema. A responsabilidade individual passa a dividir espaço com acusações de caráter abstrato – embora materialista – em relação a instituições, estruturas etc. Desse modo, categorias como Poder Econômico e Poder Político passam a ser a origem de todos os nossos males. Ou seja, é a morte do ser humano como indivíduo autodeterminado (e espiritual) e a absolutização do homem social.
Daí para uma divisão dicotômica, maniqueísta e reducionista da realidade não precisamos de muito esforço, como nos mostra Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista: “Nossa época – a época da burguesia – caracteriza-se, contudo, por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade se divide, cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente opostas: a burguesia e o proletariado”. Não há mais determinações individuais, não há mais, como diziam os filósofos da antiguidade, a tensão da alma ante seu fundamento divino, não há mais natureza humana. O que há são opressores e oprimidos.
Toda a realidade humana foi reduzida a duas categorias sociais abstratas, e suas contradições não são mais fruto de uma natureza cosmicamente corrompida, cujos desdobramentos se caracterizam, também, por opressões sociais. A realidade social foi absolutizada e é considerada a única a ser analisada e transformada, de acordo com um ideal utópico que considera possível algum tipo de controle objetivo da natureza humana que não seja o reconhecimento de sua imperfeição e a prudência como virtude política e social. Tudo isso gera o que o filósofo Gustave Thibon chamou, em seu magnífico O olhar que se esquiva à luz, de mistificação materialista:
O positivismo marxista denuncia, sob o nome de “mistificação idealista”, o nada dos valores espirituais e religiosos, e não admite como causas autênticas dos atos humanos senão as necessidade de ordem econômica. É certo que esta mistificação existe, mas deduzir deste estado, de fato, uma lei geral, constitui uma nova mistificação mil vezes mais grosseira que a precedente. Que é que esses espíritos chamados positivos encontram nos valores espirituais e religiosos para os considerarem ilusórios? O fato de serem espirituais e inverificáveis – o que, numa concepção materialista do mundo e para espíritos aferrados à verificação científica, equivale a não ser. Mas, excetuando algumas situações extremas, em que os instintos biológicos como que abafam todas as outras tendências, os nossos atos mais comuns e cotidianos são ditados por motivos de ordem espiritual e religiosa.
A análise de Thibon nos ajuda a compreender por que conceitos materialistas como racismo estrutural são amplamente aceitos, pois essa realidade secularizada há muito tomou conta do imaginário social – inclusive do imaginário religioso, como procuro demonstrar em meu curso gratuito oferecido por esta Gazeta do Povo –, produzindo uma doutrina secular correspondente à doutrina do pecado original, que, segundo o eminente teólogo Emil Brunner em sua Dogmática, seria “o pecado como uma força dominante, e o fato de que todos os homens estão associados na solidariedade do pecado”. Já o conceito de racismo estrutural, de acordo com o professor Sílvio Almeida em seu livro, para além de dizer que a “reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade”, também afirma que os indivíduos são “parte integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis suas ações, é por eles criado e recriado a todo momento”. Ou seja – e aqui vai meu recado aos cristãos –, não há como aceitar a teoria do racismo estrutural sem ferir uma das principais doutrinas do cristianismo.
Mas ainda que não sejas cristão, caro leitor, fica aqui o meu questionamento: será que a reação apressada e emocional a um dos nossos mais profundos problemas sociais, o racismo, não nos turva a razão e nos torna presa fácil de armadilhas conceituais que podem, em vez de nos ajudar a solucionar os problemas, intensificá-los ainda mais? Penso que sim. A morte do que há de espiritual (racional) em nós tirou-nos a humildade de reconhecermos nossas próprias limitações, transformando-nos em juízes sumários uns dos outros e da própria história. É por isso que o imenso André Rebouças, tão logo percebeu os descaminhos da Revolução Francesa – pela qual se entusiasmou na juventude –, a abandonou em favor da moderação. Em seu autoexílio na Ilha da Madeira, ao receber notícias da tragédia republicana no Brasil, investia em racionalidade objetiva – como demonstra o trecho da carta ao amigo Visconde de Taunay, em epígrafe – a fim de não sucumbir a sentimentos revolucionários. Urge ressuscitar em nós o homem racional; mas, para isso, é preciso que parem de matar o nosso espírito.
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