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“A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.” (Dietrich Bonhoeffer)
Uma das mais importantes doutrinas do Cristianismo, formulada há mais de 15 séculos e que até hoje nos assombra por sua, digamos, eloquência, é a do pecado original. Segundo a tradição cristã, todos os seres humanos, sem exceção, são pecadores porque, de certo modo, compartilham da natureza corrompida do mítico (perdoem os literalistas) casal Adão e Eva. O gigante Santo Agostinho, primeiro formulador dessa doutrina, acreditava que tal reprodução se dava de forma seminal – isso mesmo, caro leitor, pelo sêmen. Diz ele em seu obra máxima A Cidade de Deus: “Deus, autor das naturezas e não dos vícios, criou o homem reto, mas este, espontaneamente pervertido e justamente castigado, gerou pervertidos e castigados. É que todos estivemos naquele homem único quando todos fomos aquele homem único que foi arrastado ao pecado pela mulher que dele fora feita antes do pecado. Ainda não tinha sido criada nem distribuída a cada um de nós a forma na qual cada um de nós devia viver individualmente, mas já existia a natureza seminal de que havíamos de nascer. E estando esta corrompida pelo pecado, aprisionada nas cadeias da morte, justamente castigada – do homem não podia nascer um homem de condição diferente”. (grifo nosso)
Não é preciso grande teologia, ainda que esta exista, para que nos convençamos de nossas imperfeições morais – ainda que não acreditemos no pecado bíblico
C.S. Lewis, em O problema do sofrimento, apesar de não endossar a doutrina da transmissão seminal, diz que tal concepção não é absurda, antes pode ser, realmente, o “verdadeiro entendimento das realidades espirituais além de nossa percepção normal”. E completa: “Esse pecado foi descrito por Agostinho como a consequência do Orgulho, do movimento por meio do qual uma criatura (isto é, um ser essencialmente dependente, cujo princípio de existência repousa não em si próprio, mas em outro) tenta erguer-se e existir por si mesma”. E, convenhamos, leitor amigo, qualquer um de nós é capaz de perceber os defeitos irremediáveis de nossa natureza (alguns preferirão caráter); e, no fim das contas, parafraseando Paulo – não eu, o apóstolo –, o bem que queremos não fazemos, mas o mal que não queremos está sempre diante de nós. Não é preciso grande teologia, ainda que esta exista, para que nos convençamos de nossas imperfeições morais – ainda que não acreditemos no pecado bíblico. Para além de todo secularismo pós-moderno, a realidade ainda se impõe.
Entretanto, para uma imensa quantidade de acadêmicos e formadores de opinião contemporâneos, influenciados pelos mestres da suspeita – termo de Paul Ricoeur para se referir a Marx, Nietzsche e Freud –, sobretudo pela visão de mundo marxista em que “a religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não gira em torno de si mesmo”, o ser humano se tornou virtualmente perfectível, e conceber um mundo de razão, iluminado, autônomo e livre dos interditos religiosos é o suprassumo da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Um mundo em que a felicidade reside numa nova realidade, tão bem ironizada por Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov, na famosa frase que inverto aqui para efeitos retóricos: “tudo é permitido”, afinal de contas, “Deus não existe”.
O curioso é que tal realidade idílica mudou a concepção de ser humano sem conseguir, no entanto, transformar o ser humano. O “mundo melhor” imaginário dessa geração só existe nas teorias e nas fantasias ideológicas. Continuamos por aí a espalhar nossos defeitos de caráter, nossas mentiras, nossos maus preconceitos, nossa arrogância, nosso ódio, nossa inconstância, nossa imprudência; enfim, nossa natureza pecaminosa, sem que, no entanto, admitamos a existência do pecado. E a partir daí as justificativas para esse “experimento contra a realidade” – como diz Roger Kimball (parafraseando Hannah Arendt) – vão se tornando cada vez mais absurdas. Como ironizou G.K. Chesterton brilhantemente em Ortodoxia:
“Certos novos teólogos questionam o pecado original, que constitui a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada. [...]. Os santos mais poderosos, assim como os mais poderosos céticos, tomaram o mal positivo como ponto de partida de sua argumentação. Se for verdade (como certamente é) que o homem pode sentir uma felicidade extraordinária em esfolar um gato, então o filósofo religioso só pode fazer uma dentre duas deduções. Ou ele deve negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou deve negar a presente união entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos. Os novos teólogos parecem pensar que uma solução altamente racionalista é negar o gato.”
Tamanha negação da realidade é o mote de quase tudo que se produz de pensamento na pós-modernidade. No entanto, seus frutos, que já eram sentidos na arte cheia de secularismo e contestação do século passado, agora podem ser colhidos, já um tanto passados, na amplidão das redes sociais. Se antes o protótipo do homem-massa de que fala Ortega y Gasset em A rebelião das massas era o “especialista”, atualmente é a celebridade. Enquanto aquele “é um sábio-ignorante [...], que é um senhor que se comportará, em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua questão especial, é um sábio”, este, cujo conhecimento é composto de fragmentos de pensamento daquele, é só um ignorante. Mas é famoso, e sua fama imprime autoridade às suas manifestações públicas, e suas opiniões são vistas por muitos como opiniões abalizadas, científicas, ainda que ignorem por completo o sentido do que dizem.
E temos ainda uma agravante: tais pessoas não são somente pródigas em opiniões, mas são uma espécie de para-raios de opiniões esdrúxulas, e abraçam toda e qualquer teoria que lhes dê projeção entre seus pares e entre o público que os segue. Sua atividade principal, que não é a reflexão, mas o entretenimento, transforma assuntos sérios em likes e engajamento; e seu alcance e influência, por serem imensos, “fazem a cabeça” de muita gente. E não quero dizer com isso que os especialistas devem voltar a ter a primazia absoluta das opiniões sobre assuntos que não dominam, mas que o fato de artistas, YouTubers, Tik-Tokers etc. terem assumido esse papel na atualidade só torna as coisas mais complicadas e incontroláveis.
A intenção da “confissão” de Paola Carosella é retórica. O que ela parece querer, na verdade e num primeiro momento, é dividir sua suposta culpa com a sociedade e – voilà! – conscientizar os incautos racistas inconfessos
O exemplo mais recente – e com isso volto à questão do pecado original – é o da chef de cozinha Paola Carosella e um tuíte revelador que ela fez no dia 9 de abril. Confira, estupefato leitor: “Eu sou racista, não quero ser, mas tenho certeza que sou. Impossível não ser racista nascendo numa sociedade racista. A gente mamou racismo, todo poder foi branco. Toda autoridade foi branca. Vc e eu somos racistas. O começo é esse: sou sim racista e não quero ser”. (sic, grifos meus)
O que significa isso? Num primeiro momento, tão somente uma confissão de crime de acordo com a Lei 7.716/1989. Se alguém diz, publicamente, “sou assassino” (artigo 121 do Código Penal) ou “sou estelionatário” (artigo 171 do Código Penal), deve ser processado e, caso se prove o crime, punido. Mas, ao que parece, não era essa a intenção de Carosella, ela não falava sério. A intenção de sua “confissão” é retórica. O que ela parece querer, na verdade e num primeiro momento, é dividir sua suposta culpa com a sociedade e – voilà! – conscientizar os incautos racistas inconfessos. E isso, consequentemente, a coloca numa posição de superioridade moral; afinal de contas, se uma das alegações da militância que alimenta pessoas falantes como Carosella é a de que a sociedade é estruturalmente racista, a primeira coisa que uma pessoa branca deve fazer é assumir seu lugar e, nesse passo à frente (e em falso), tornar-se antirracista. Não basta dizer que não é racista – como supostamente teria dito Angela Davis –, pois essa é a posição dos ignorantes; é preciso esse movimento de autoimolação pública.
É idiota? É. Mas é grave também.
Primeiro, porque me parece que ela não chegaria a essa conclusão sozinha. Não foi na solidão de seus pensamentos que sua condição pecaminosa se lhe revelou. Ela provavelmente foi catequizada por alguém. Teve contato com alguns dos livros sagrados desse novo culto – Pequeno manual antirracista e Racismo estrutural, por exemplo –, se não por uma leitura direta, por algum evangelista de redes sociais (porque está na moda entre os famosos serem orientados por jovens revolucionários de internet) e caíram as escamas de seus olhos. Carosella, que não conheço e já desprezo – afinal de contas, sou negro e tenho nojo de racistas –, se converteu e declarou publicamente “sou pecadora e não quero ser”, ou: “o mal que não quero...”. E foi além. Reconheceu que seu pecado é parte de sua natureza, que tendo nascido em pecado é impossível não ser pecadora. Em seguida, a revelação bombástica: “todos pecaram”.
Essa religião secular só é possível porque a arrogância e o orgulho humanos nunca atingiram níveis tão altos
A emulação da doutrina do pecado original é flagrante, mas com um detalhe devastador: não há redenção. Afinal de contas, de que adianta afirmar “sou, sim, racista e não quero ser” se não poderá, num futuro próximo, dizer: “agora não sou mais”. Como faz para deixar de ser racista? É possível? Quem é o meu redentor nesse caso? Eu mesmo? O Sílvio Almeida? Declarar o racismo como status ontológico é o mesmo que dizer “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3,23) sem que uma possibilidade de salvação seja apresentada. A solução deste dilema, segundo consta nas entrelinhas dessa nova religião secular, passa por uma reestruturação do cosmos – nesse caso, uma revolução. É simplesmente catastrófico, se não fosse mero jogo de cena.
Mas essa religião secular só é possível porque a arrogância e o orgulho humanos nunca atingiram níveis tão altos. Se, num extremo, a religião se entrega à Dança da Morte com a política, do outro o culto ao abstracionismo acadêmico das religiões civis criou um mundo condenado à destruição revolucionária. Nos dois casos, é a imanentização do eschaton cristão, a salvação mundana, que impera.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos