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“Um anacoreta que rola sobre pedras num furor de submissão é, fundamentalmente, uma pessoa mais saudável que muitos homens sóbrios de chapéus de cetim que caminham por Cheapside [...]. Não estou, no momento, reivindicando, para o devoto, nada mais que esta vantagem primária: a de que embora possa, pessoalmente, estar se fazendo fraco e miserável, está, mesmo assim, fixando os pensamentos, sobretudo, numa força e felicidade gigantes, numa força que não tem limites e numa felicidade que não tem fim.” (G.K. Chesterton, Hereges)
Sim, concordo que o uso político da religião é algo nocivo tanto à política quanto à religião; inclusive já disse isso várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna (aqui e aqui, por exemplo), e tenho um curso gratuito – Religião e Política, uma relação perigosa –, oferecido pela Gazeta do Povo, em que trato com certa profundidade do assunto. Como cristão, sei muito bem que a Bíblia abunda em exemplos nesse sentido, e que as relações corruptas entre sacerdotes e profetas junto aos governantes ocupam grande parte do Antigo e do Novo Testamento, e aqueles que denunciaram tais práticas foram duramente castigados (Jeremias 38, por exemplo). Entendo que sociedades laicas não devem ter a religião como guia – ou, pelo menos, não como guia único – para políticas públicas e que o debate público deve ser parcimonioso em relação a ela.
No entanto, também entendo que religiosos têm todo o direito de se candidatarem e defender os interesses que lhe são de direito numa democracia – a liberdade religiosa e de culto, por exemplo. Num país majoritariamente religioso, a religião é parte fundamental não somente da vida privada, mas também da dinâmica social. Feriados, festas religiosas, bem como o patrimônio material e imaterial ligado às religiões são elementos constitutivos da vida social e, portanto, de interesse público. A laicidade (princípio político que garante a separação entre o Estado e a Igreja e protege a liberdade religiosa e as crenças) e o laicismo (postura que se opõe à expressão pública da religiosidade e que busca diminuir a importância da religião na sociedade) devem ser distinguidos, sendo esta uma característica de sociedades ateístas sui generis (como repressoras experiências comunistas) e aquela, uma garantia do Estado Democrático de Direito.
Pedro Cardoso, se é que tem alguma ideia do que está dizendo, não está falando do Jesus bíblico, o Jesus do cristianismo, pois é exatamente na morte e na ressurreição de Jesus Cristo que está todo o fundamento da religião que Dele deriva
Ou seja, nas frágeis sociedades democráticas, que, como já vimos, estão sempre em luta contra toda sorte de instabilidades e capturas ideológicas, a principal virtude é que os direitos sejam assegurados, os deveres sejam respeitados e as críticas não caiam nas simplificações ou rotulações que ferem a liberdade de manifestação e expressão. Mas, infelizmente, não é o que ocorre quando temos, de um lado, ideologias que se insurgem contra a própria sociedade e cujos mais destacados adeptos posam de bastiões do esclarecimento, demonstrando, no fim das contas, sua arrogância e visão estreita da realidade. Nesse sentido, temos, dentre nossos formadores de opinião, uma classe particularmente suscetível a discursos ideológicos que se pretendem modernos e inclusivos, mas são só demonstração de um elitismo completamente obtuso: os artistas.
O exemplo que trago ao caro leitor é o de Pedro Cardoso, o eterno Agostinho Carrara de A Grande Família, que, desde que deixou a Rede Globo, vem transformando seus ressentimentos em opiniões que só não são divertidas porque, tragicamente, refletem as opiniões de praticamente toda a nossa classe artística, bem como de nossos intelectuais públicos do mainstream global. Recentemente, numa entrevista, Cardoso, um declarado ateu que diz “respeitar as religiões”, se meteu a falar sobre a vida e a morte de Jesus Cristo, e a quantidade absurda de tolices proferidas por ele – curiosa, mas não surpreendentemente festejada por toda sorte de esquerdistas nas redes sociais –, são dignas de reprodução. Vejamos:
“Eu pergunto aos religiosos cristãos em que a morte de Jesus salva a humanidade e ninguém consegue me responder. Porque [o que] salva a humanidade é a vida de Jesus, não a morte de Jesus. Mas, se a gente pensar que é a morte de Jesus que salva a humanidade, nós vamos sempre eleger um pai como o pai foi para Jesus, um pai que vai nos pedir a nossa vida. Então é preciso ter uma nova compreensão do cristianismo para livrar o povo brasileiro desse masoquismo, que é o masoquismo de origem cristã muito profunda, mas um cristianismo que eu reputo equivocado. Jesus perdeu quando morreu, ele não ganhou; a humanidade perdeu. Se Jesus não tivesse sido assassinado pelos romanos e pela aristocracia religiosa judaica, a humanidade, talvez, conhecesse uma obra muito mais interessante de Jesus do que a que ficou. Entender a morte de Jesus como uma vitória faz com que o povo deseje permanentemente um carrasco e não um homem feliz.”
Óbvio que Pedro Cardoso, se é que tem alguma ideia do que está dizendo, não está falando do Jesus bíblico, o Jesus do cristianismo, pois é exatamente na morte e na ressurreição de Jesus Cristo que está todo o fundamento da religião que Dele deriva. Como diz o apóstolo Paulo: “se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1 Coríntios 15,14). Para os cristãos, a morte representa a vida e, sim, a remissão dos pecados – ainda que, nessa vida, continuemos pecando.
Pensar em Jesus como um simples mestre moral, como se sua vida tivesse sido exemplar e dela devêssemos tirar os fundamentos de uma vida correta, é um pensamento reducionista (e materialista), que pretende se apropriar de Jesus e transformá-lo em mais um dentre inúmeros mestres morais que surgiram na humanidade. Entretanto, para um cristão, isso não faz qualquer sentido. Deixemos que o gênio de G.K. Chesterton, já citado em epígrafe, em seu clássico O Homem Eterno, nos esclareça – a citação é longa, mas fundamental:
“Ora, não é fácil considerar o Novo Testamento como um Novo Testamento. Não é nada fácil entender a boa-nova como nova. Tanto para o bem como para o mal, a familiaridade nos enche de pressupostos e associações; e nenhum homem da nossa civilização, não importa o que ele pense sobre religião, pode realmente ler esse texto como se nunca houvesse ouvido falar dele antes. Seja como for, é óbvio que é absolutamente a-histórico falar como se o Novo Testamento fosse um livro que houvesse caído, perfeitamente encadernado, do céu. Trata-se simplesmente de uma seleção que a autoridade da Igreja fez de um grande volume de antiga literatura cristã. Mas, deixando de lado qualquer questão desse tipo, existe uma dificuldade psicológica em sentir o Novo Testamento como novo. Existe uma dificuldade psicológica em ver aquelas palavras tão conhecidas do jeito que elas são, sem ir além do que elas intrinsecamente representam. E essa dificuldade deve ser de fato muito grande, pois seu resultado é muito curioso. O resultado é que a maior parte dos críticos modernos e da crítica atual, até mesmo da crítica popular, tece um comentário que é exatamente o inverso da verdade. É tão completamente o inverso da verdade que quase se poderia suspeitar que esses críticos simplesmente nunca leram o Novo Testamento. Todos nós ouvimos gente repetindo centenas de vezes, pois eles nunca se cansam de dizê-lo, que o Jesus do Novo Testamento é de fato alguém sumamente misericordioso e bondoso, que ama a humanidade, mas que a Igreja ocultou esse caráter humano em seus repelentes dogmas e o sufocou com seu terrorismo eclesiástico até Jesus assumir um caráter desumano. Atrevo-me a repetir que isso é quase exatamente o inverso da verdade.”
O Jesus do Novo Testamento está longe de ser a figura meramente cândida e boazinha que ateus, vá lá, bem-intencionados como Pedro Cardoso querem ver
Ou seja, a familiaridade turva o nosso espanto e, não raro, diminui o nosso entendimento. A figura tantas vezes retratada, tantas vezes interpretada, sobretudo dentro de uma cultura que praticamente tem origem na propagação desses eventos e doutrinas, nos escapa. Chesterton continua:
“A verdade é que é a imagem de Cristo nas igrejas que aparece quase inteiramente suave e misericordiosa. É a imagem do Cristo dos evangelhos que mostra também muitos outros aspectos. A figura dos evangelhos de fato expressa com palavras de beleza que quase parte o coração a sua compaixão por nossos corações partidos. Contudo, essa não é de modo algum a única espécie de palavras proferida por ele.”
O Jesus do Novo Testamento está longe de ser a figura meramente cândida e boazinha que ateus, vá lá, bem-intencionados como Pedro Cardoso querem ver. O “outro” Jesus é muito mais complexo e confunde os simplórios:
“Existe algo que assusta, algo que gela o sangue da gente na ideia de termos uma estátua do Cristo irado. Existe algo insuportável até mesmo para a imaginação na ideia de virar a esquina de uma rua ou de entrar no espaço de um mercado e topar com a paralisante petrificação daquela figura atacando uma geração de víboras, ou daquela face fixando a cara de um hipócrita.”
Cardoso e todos os não religiosos que, no entanto, procuram ver algo de moralmente útil nos Evangelhos têm uma visão extremamente limitada de tudo o que uma figura como Jesus comporta de significados (e mistérios). Quem lesse os Evangelhos sem pressupostos, por exemplo:
“[...] não encontraria as banalidades comuns em favor da paz. Encontraria vários paradoxos em favor da paz. Encontraria vários ideais de não resistência, que, tomados como se apresentam, seriam pacíficos demais até mesmo para qualquer pacifista. Numa passagem ele seria aconselhado a tratar um assaltante não com resistência passiva, mas com incentivos positivos e entusiásticos, se os termos forem tomados ao pé da letra, cobrindo com presentes o ladrão de mercadorias. Mas ele não encontraria nenhuma palavra sobre toda aquela retórica óbvia contra a guerra que encheu as páginas de inúmeros livros, odes e discursos; nenhuma palavra sobre a perversidade da guerra, o desperdício da guerra, a assustadora escala da mortandade da guerra e todo o resto da conhecida loucura; de fato, nenhuma palavra sequer sobre a guerra. Não há nada que lance alguma luz particular sobre a atitude de Cristo acerca da atividade bélica organizada, excetuando-se o fato de que ele aparentemente gostava bastante dos soldados romanos. De fato, falando a partir do mesmo ponto de vista externo e humano, eis outra perplexidade: ele parece ter-se relacionado muito melhor com romanos que com judeus. Mas a questão nesse caso é certo tom a ser apreciado simplesmente lendo determinado texto; e poderíamos apresentar inúmeros exemplos disso.”
Enfim, se Pedro Cardoso não fosse um típico artista brasileiro, parte integrante e indissociável de nossa egocêntrica classe falante, cheia de si e com um profundo desprezo pelo próprio povo e seus valores mais profundos; se não fosse um incorrigível esquerdista arrogante, desses ao estilo Petra Costa, diretora do panfleto pseudocinematográfico Democracia em Vertigem, herdeira da Andrade Gutierrez (uma das empreiteiras envolvidas no petrolão do PT), que disse, recentemente, que a religião não deveria se envolver com arte ou política, ao mesmo tempo em que cometeu mais um panfleto, Apocalipse nos trópicos, dessa vez para falar do envolvimento dos evangélicos com o bolsonarismo – ou seja, lá vem bobagem –, nós lhe daríamos um crédito. Mas, ao fim e ao cabo, Pedro, Petra e outras pedras de tropeço seguirão não compreendendo os mistérios mais básicos que só foram revelados aos humildes de coração.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos