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“Somente quando os números estão a serviço de uma visão dominante é que ficam propensos a ser aceitos cegamente, sem passar pelo crivo da crítica e sem considerar outras estatísticas, as quais podem contar uma história um tanto quanto diferente.” (Thomas Sowell, Os intelectuais e a sociedade)
No último dia 16, os portais de notícias, os canais de tevê, os blogs, enfim, toda a mídia repercutiu com grande (e fingida) estupefação o relatório “Pele Alvo: a bala não erra o negro”, produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) – entidade que, vale lembrar, recebeu, em 2021, mais de R$ 1 milhão da Open Society de George Soros, segundo dados divulgados por esta Gazeta do Povo. No relatório, de acordo com o próprio site da instituição, “são analisadas informações sobre a cor da letalidade gerada por ação policial”. E diz que “os dados foram obtidos junto a secretarias estaduais de Segurança Pública de Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo via Lei de Acesso à Informação (LAI)”.
O sensacionalismo generalizado das chamadas na internet foi, no mínimo, curioso, mas não surpreendente. Veja alguns: No G1 encontramos: “Uma pessoa negra foi morta pela polícia a cada 4 horas em oito estados do país no ano passado, diz pesquisa”. O site Poder360 mudou um pouco o enfoque, mas busca o mesmo efeito: “65,7% dos mortos pela polícia em 2022 eram negros, diz estudo”. A Folha de S.Paulo deu ênfase a um estado específico para um maior efeito: “Todas as pessoas mortas pela polícia no Recife em 2022 e em 2021 eram negras, diz relatório”. E o portal Gazeta do Estado, de Goiás, também caprichou: “A cada 100 mortos pela polícia em 2022, 65 eram negros, mostra estudo”.
A pesquisa omite um fator importantíssimo para a análise dos dados e, também, para o encaminhamento do problema: a criminalidade. A visão dos pesquisadores é a de que a criminalidade tem causas eminentemente sociais, dentre as quais a principal é o racismo
Para além do horror dos fatos – um assassinato sempre será um horror –, nota-se uma clara intenção de causar comoção com a chamada da notícia. Se fosse algo assim: “Em oito estados a polícia matou 4.219 pessoas em 2022”; ou “Em oito estados cuja população negra passa dos 70%, mais de 60% dos mortos pela polícia eram negros”; ou, para enfatizar, como a Folha: “Na Bahia, estado com 80,9% de negros, 94,76% dos assassinados pela polícia eram negros”, não chamaria tanto a atenção. Ou, ainda, imagine se algum veículo ousasse apresentar a notícia assim: “Dos 47.508 assassinatos ocorridos no Brasil em 2022, 4.219 foram perpetrados por policiais”. Alguém poderia se perguntar: “ora, e os outros 43.289, quem os cometeu?”
Não quero, com isso, macular a sensibilidade do leitor para dados tão dramáticos – a letalidade policial é um dado dramático, uma vez que a polícia deve evitar ao máximo ceifar a vida de uma pessoa, ainda que esta seja um criminoso –, mas poderíamos ainda fazer algumas perguntas: “em quais circunstâncias essas pessoas negras foram mortas?” Ou: “Qual a porcentagem de pessoas negras mortas pela polícia em relação às pessoas negras presas em flagrante delito?” Ou, ainda: “quantas pessoas negras foram mortas pelo crime organizado, pelo tráfico de drogas e pelas milícias em 2022?” Algumas dessas perguntas até soariam racistas para alguns, mas não são perguntas absurdas e poderiam ampliar nossa perspectiva do problema.
Ao que parece, a pesquisa omite um fator importantíssimo para a análise dos dados e, também, para o encaminhamento do problema: a criminalidade. Ou melhor: não se trata de omissão, mas de abordagem. A visão dos pesquisadores é a de que a criminalidade tem causas eminentemente sociais, dentre as quais a principal é o racismo – o racismo estrutural, para ser mais específico. Diz o relatório: “Observando a história brasileira, é possível afirmar que a política de segurança pública nacional tem como pilar um aparato bélico e patrimonialista, que criminaliza um perfil específico, como herança colonial, fazendo com que seus agentes sejam truculentos e ineficientes no exercício de suas funções. Essa ordem social é mantida pela força policial com apoio da Justiça – que legitima ações perpetradas pelos órgãos de segurança”. Até aqui, tudo bem. Mas aí: “No entanto, é necessário entender a violência como uma questão social e alocar recursos que garantam uma política de segurança pública eficaz” (grifo meu). E assim apresenta seu objetivo específico: “A partir dos dados que mostraremos aqui, será possível entender a estratégia de associar práticas ilegais a corpos negros – como uma forma de neutralizar a participação desses indivíduos na sociedade –, e também o processo de criminalização da pobreza como política de controle social” (grifo meu). Os dados apresentados têm como objetivo, segundo os pesquisadores, denunciar o “projeto da branquitude que causa a tragédia do derramamento de sangue negro no Brasil”.
O que seria a branquitude e qual seria esse projeto? Ou o que seria “manter a estrutura imposta pela branquitude”, como também afirma o relatório? De acordo com o Observatório da Branquitude – mais uma entidade pitoresca bancada por George Soros e por descendentes de banqueiro brasileiro –, a branquitude “é definida como o lugar de privilégios raciais simbólicos e materiais, que se construiu historicamente como o mais elevado da hierarquia racial, com o poder de classificar o outro, atribuir racialidade e subjetividade estigmatizante a quem considera não branco, sendo essa a pedra basilar do racismo”. Ou seja, a branquitude é uma abstração. Como pode uma abstração ter um projeto ou impor uma estrutura? Não estou duvidando de que pessoas brancas, no Brasil, desfrutem de privilégios por serem brancas; isso é um fato. A estigmatização e a cultura de subalternização do negro, fomentada desde os tempos da escravidão, segue viva e atuante. O que me parece difícil de provar é que isso faça parte de um projeto consciente. Mais do que isso: de um projeto racista.
Outra importante questão: É óbvio que a criminalidade tem causas sociais (como a desigualdade, a pobreza e o próprio racismo), mas estas não são as únicas. Talvez nem sejam as principais. Se houvesse uma relação de causalidade entre pobreza e criminalidade, países mais pobres teriam índices de criminalidade maiores. Malaui e República Centro-Africana, por exemplo, estão entre os países mais pobres do mundo; no entanto, não estão nem entre os 30 mais violentos. A correlação entre esses fatores deve ser analisada em conjunto com outros critérios. A impunidade é um deles. O quanto o crime compensa no Brasil? Num país que só esclarece 30% dos homicídios (na média; há estados que não chegam a 8%), qual o incentivo disso para os quase 50 mil assassinatos que amargamos por ano? O Brasil ocupa o terceiro lugar na quantidade de homicídios totais no mundo, ficando atrás apenas da Nigéria e da Índia.
Esses dados não preocupam os pesquisadores? Eles não devem ser levados em consideração quando falamos de violência e letalidade policial? Estas não são um efeito colateral de um problema maior, como uma maioria negra não só em situação de vulnerabilidade social, mas também no crime? Não é importante levar em consideração que, de acordo com pesquisas, “homens, negros e jovens são os que mais morrem e os que mais matam” nessa escalada macabra de violência, e que a causa da morte de pessoas negras não pode estar relacionada única e exclusivamente ao racismo?
A intenção dessas pesquisas não é compreender por que tantas pessoas negras ainda vivem em situação de vulnerabilidade e como mudar isso de forma responsável. O diagnóstico está dado de antemão
Não se você acredita que o racismo é estrutural. Essa é a chave interpretativa de todas essas pesquisas. O relatório diz que não basta culpar a violência nas periferias se não há “garantia de direitos básicos e constitucionais para essas comunidades, como acesso a moradia, infraestrutura urbana, saneamento básico, trabalho decente e empregos locais, lazer, educação de qualidade e cultura”, e eu concordo. O problema é: como conseguir isso? Apontar como causa dos graves problemas sociais brasileiros o racismo estrutural nos leva, fatalmente, a buscar como solução uma mudança radical e profunda no modo como a sociedade brasileira se organiza em suas estruturas social, jurídica, política e econômica. Mas o que significa isso? Que a solução é revolucionária e anticapitalista.
Ou seja, no fim das contas, a intenção dessas pesquisas não é compreender por que tantas pessoas negras ainda vivem em situação de vulnerabilidade e como mudar isso de forma responsável, democrática, sem uma ruptura radical que pode nos levar a uma situação ainda pior. O diagnóstico está dado de antemão e as causas são baseadas em petições de princípio como: O racismo é estrutural; existe um “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios”; e “a polícia é racista como a sociedade é”, como disse o ouvidor da Polícia Militar de São Paulo. Pela lógica, não nos resta outra saída a não ser a alteração completa na ordem institucional brasileira. Aonde isso nos levaria, só Deus sabe; mas a história já nos mostrou que, ainda que alguns pensem que é melhor tentar do que continuar assim, quase sempre isso deu errado.
O problema todo começa quando os dados são usados a fim de provar teses previamente estabelecidas. Nem digo que os pesquisadores são comunistas ou coisa que o valha, mas são, em sua imensa maioria e em maior ou menor grau, de esquerda, e sua visão de mundo influencia na interpretação dos dados. Como diz Thomas Sowell, em Os intelectuais e a sociedade, uma “confusão se dá entre o que está acontecendo com as categorias estatísticas e o que está ocorrendo com indivíduos de carne e osso na medida em que avançam ou recuam de uma categoria para outra”. Mas essa confusão é intencional, uma vez que “a manipulação dos números pode tornar quaisquer dados estatísticos consistentes com determinada visão, e a manipulação de outros números ou até mesmo dos mesmos números, vistos ou selecionados de forma diferente, pode produzir dados consistentes com a visão oposta”.
Por isso pesquisas como essa, esses relatórios, seguirão produzindo os mesmos resultados sem que nada efetivamente seja feito para que as coisas mudem, simplesmente porque as mudanças exigidas, no fundo, pedem uma ruptura institucional. Nem investir em soluções quiméricas, como “desarmamento; mudança de gestão, estrutura e funcionamento das polícias; desencarceramento; e fim da guerra às drogas” resolveria o problema, pois uma visão romântica, rousseauniana, do criminoso como um produto da desigualdade social não condiz com a realidade. Como afirma Sowell, em sua análise do tema:
“A visão do intelectual ungido esvazia o aspecto punitivo e reforça os aspectos preventivos procurando, em primeiro lugar, as causas sociais que estão ʻna baseʼ da atividade criminosa e também investindo, por outro lado, na ʻreabilitaçãoʼ dos criminosos. Os temas secundários que gravitam em torno da visão principal incluem a diminuição de responsabilidade pessoal por parte dos criminosos, alegando infâncias infelizes, histórias de vida angustiantes ou outros fatores que, supõe-se, estejam acima do controle dos indivíduos.”
Enquanto isso, ativistas negros comemoram a renovação da Lei de Cotas nas universidades, assinada pelo presidente Lula, ao mesmo tempo em que nosso ensino básico – que é o que realmente prepara uma pessoa para uma vida adulta e responsável e a afasta da vulnerabilidade e da criminalidade (Ensino de qualidade reduz taxa de homicídio em 25%, além de aumentar a empregabilidade) – continua perpetuando os piores índices, colocando os alunos brasileiros entre “os piores do mundo em alfabetização e habilidades de leitura”. Dizer que os mais pobres são os mais afetados é dizer uma obviedade. Enquanto isso, mais de 70% dos jovens que abandonam a escola são negros. Enquanto isso, governos investem em populismo barato, com soluções impraticáveis – como o Novo Ensino Médio e as escolas de tempo integral, ou mesmo Lula falando em criar uma poupança para o jovem não abandonar a escola. Esse é o principal problema social do país, e é a principal causa que mantém a população periférica na vulnerabilidade absoluta.
Mas não é possível que essas pessoas pensem que a única solução para o gravíssimo problema educacional brasileiro seja uma revolução socialista por causa do racismo estrutural. Sim, é possível, eles pensam.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos