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“Minhas palavras nas mãos de um jornalista são piores do que aquilo que ele próprio pode escrever.” (Karl Kraus)
“Quero sentir de novo / Aquela antiga emoção / De te ver chegando / Pra alegrar meu coração / Vem para aliviar o meu interior / Só o meu bom Deus é sabedor / Do quanto eu / Quero sentir de novo.” (Exaltasamba)
O atento leitor já percebeu, pelas epígrafes, que o grande estadista ateniense não será tema desse artigo. Antes fosse, pois aquele, segundo Tucídides em seu História da guerra do Peloponeso, era “o homem mais eminente entre os atenienses daquele tempo graças à sua superioridade tanto em palavras quanto em atos”; e que, em seu tempo de governo, seguiu “uma política moderada e a manteve segura, e foi sob seu governo que Atenas atingiu o auge de sua grandeza”. Ou seja, podemos dizer deste que era um conservador, um político capaz de conciliar o poder bélico e a capacidade estratégica ao cuidado e o desenvolvimento de seu povo.
O fato é que o tempo em que vivemos é muito menos heroico do que a Era de Ouro de Atenas, e a sabedoria outrora louvada atualmente é vista como retrógrada e caricata. À prudência, à sobriedade, à capacidade de se antecipar aos problemas, à preservação da democracia dos mortos (da qual nos falava Chesterton), ao senso de dever para com as novas gerações; enfim, a todas essas virtudes fomos obrigados a dar outro nome, pois “conservadorismo” se tornou uma palavra maldita, um anátema, o retrato de pessoas que devem ser combatidas, pois estão dispostas a tudo para manter o status quo e a exploração dos mais pobres.
O tempo em que vivemos é muito menos heroico do que a Era de Ouro de Atenas, e a sabedoria outrora louvada atualmente é vista como retrógrada e caricata
Vejamos um exemplo recente: a deputada Laura Sito, do Partido dos Trabalhadores (PT), eleita em 2022 pelo estado do Rio Grande do Sul, deu uma pequena entrevista a uma arquiteta e ativista de Passo Fundo (RS), Marina Bernardes, e o assunto foi – pois é – o conservadorismo. Quando recebi o vídeo, não compreendi o que uma deputada de esquerda poderia dizer sobre o assunto, mas entendi tudo tão logo a conversa começou. A pergunta inicial foi: “Laura, eu queria que tu compartilhasses um pouquinho: por que a gente precisa combater o conservadorismo?” A resposta é surpreendente, mas não exatamente pela inteligência:
“Combater o conservadorismo na sociedade é defender a democracia. Defender o direito à vida, o acesso a uma cidadania plena a todos e todas, especialmente pras mulheres, pro povo negro, pro povo LGBT e pra todos aqueles que eles dizem que é o que não presta. E é exatamente por isso que nossas cidades têm de se tornar territórios antifascistas, territórios democráticos.”
Como se não bastasse, a entrevistadora emenda: “E como é combater o conservadorismo sendo uma mulher?” A resposta:
“É um grande desafio, porque, na nossa sociedade, infelizmente, nós, mulheres, somos as mais atingidas pela violência, e o conservadorismo ratifica essa violência que nós sofremos. Por isso, fazer das nossas cidades, das nossas localidades, territórios democráticos, territórios anticonservadores, antifascistas, é fundamental pra construir uma democracia que preserve em primeiro lugar a vida, das mulheres, da população LGBT, dos negros e negras, da juventude, dos povos indígenas; por isso combater o conservadorismo é fundamental, e para nós, mulheres, é vital.”
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Para não parecer excessivamente cruel com a ignorância da deputada, podemos dar-lhe o desconto de não só ter sido formada politicamente por uma ideologia que só funciona pelo contraste, encontrando um inimigo figadal para combater, mas porque, após décadas de caricaturização do conservadorismo construída pela esquerda, e de uma educação que só reforçou a profunda ignorância a respeito de uma disposição e de uma prática política que é legítima, fundada numa tradição milenar e que foi sustentada e teorizada por um grande número de intelectuais de caráter insuspeito (e muito longe de serem fascistas), como o britânico Roger Scruton e o brasileiro João Camilo de Oliveira Torres, tivemos no Brasil recentíssimo um governo que esforçou para dar vida à caricatura – e conseguiu. Uma vez perdida a tradição, sobraram o reforço de preconceitos em nome do politicamente incorreto, a violência política em nome da ordem, o louvor da desigualdade em nome da liberdade, a profanação religiosa em nome de Deus, e o golpismo em nome da democracia. A deputada tem culpa de sua completa estupidez? Tem. Mas ela não é de todo injustificável.
O fato é que tal ignorância não está somente nos políticos, mas em praticamente todos os formadores de opinião – sejam jornalistas, artistas e todos aqueles que insistem em dar opinião sobre tudo quando têm diante de si uma câmera e um microfone. A necessidade que pessoas cuja área de atuação é o entretenimento têm de “se posicionar” as coloca na complicada situação de terem de falar sobre o que não conhecem, de se expor a situações de constrangimento – caso todo o seu entorno não fosse igual ou mais acentuadamente ignorante. O papel dos jornalistas nessa confusão é fundamental, pois estes se julgam os mais sábios dos mortais e capazes de iluminar o debate público baseados em sua visão obtusa de mundo.
O leitor não precisaria de um exemplo, pois em sua mente deve ter surgido uma série de situações, nos últimos anos, nas quais jornalistas, artistas, atletas e toda sorte de figuras públicas disseram asneiras em nome da democracia, dos direitos humanos, da salvação da Amazônia, da luta pela igualdade, do progressismo esclarecido. Mas o darei mesmo assim – e aqui o título desse artigo se encontra com o texto: Péricles Aparecido Fonseca de Faria, o nosso querido Pericão, do lendário Exaltasamba, esteve no programa Roda Viva na última segunda-feira. Falou de sua vida, de sua carreira, mas não escapou, graças a essa notória estupidez pretensiosa de nossos jornalistas, de ter de falar de política. Péricles respondia a uma pergunta sobre sua “jornada de autodescoberta”, quando, do nada, Vera Magalhães, a âncora do programa, interrompeu a resposta e disparou: “Péricles, essa tua maturidade, essa forma muito racional, muito direta com que você lida com esses dilemas que se apresentam, me mostram um perfil de uma pessoa, de certo modo, conservadora; conservadora em relação à família, em relação ao seu trabalho. É isso mesmo ou você não se definiria assim do ponto de vista comportamental e político?”
A necessidade que pessoas cuja área de atuação é o entretenimento têm de “se posicionar” as coloca na complicada situação de terem de falar sobre o que não conhecem
Caríssimo leitor, diante de tudo o que eu apresentei acima, qual a possibilidade de Péricles ter respondido “sim”? Pois é, quase nula. Ele disse, pois:
“Eu não me vejo como um conservador, mas, é como eu disse no começo, eu sei o que não quero, e já vi muita coisa acontecer – principalmente na minha vida – e hoje já não quero passar por certas coisas. Eu procuro... por exemplo, eu criei os meus filhos e estou criando agora a Maria Helena, e eu tô criando pro mundo, mas eu quero dar a base melhor, para que, quando ela chegar no momento dela de ser adulta, ela saber de onde ela veio. Então, eu quero ser essa base, eu, junto com a mãe dela, a gente vai fazer de tudo para que ela seja essa pessoa melhor, assim como eu fiz com o Lucas. E dentro da minha família eu sou aquele que se preocupa […]. Por exemplo, quando eu tô junto com a minha mãe, eu não deixo ela fazer nada, ela quer estar à frente, mas eu não deixo ela fazer; eu sou aquele que se preocupa, eu sou o que cuida também.”
A pergunta, que se iniciou com uma tentativa de compreender a natureza da disposição de Péricles, mas que, ao fim, incluiu capciosamente uma armadilha para tentar evidenciar seu posicionamento político, obrigou o excepcional cantor a fugir da rotulação, ainda que sua resposta tenha representado o mais puro exemplo de conservadorismo. Certamente ele não o fez por mal, e até penso que, pela sua resposta, o seu conhecimento sobre a tradição conservadora não seja tão ridiculamente caricato como o da deputada riograndense. Mas, caso ele respondesse afirmativamente, sem capacidade de defender e aprofundar sua posição – inclusive distinguindo-a de um posicionamento político stricto sensu –, certamente seria cancelado nas redes sociais, chamando de bolsonarista, e teria de passar o resto de sua existência se explicando.
Talvez pudesse usar como exemplo o seu xará ateniense, mas, no atual século de Péricles, muito menos heroico e muito mais ignorante, quem, entre seus pares e fãs, sabe quem foi o maior estadista grego de todos os tempos?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos