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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Por que a esquerda quer controlar as redes sociais?

Censura chinesa ao Homem dos Tanques. (Foto: D. Thompson)

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“Gente pobre é caprichosa – e é assim por disposição da natureza […]. E todo mundo sabe, Várienka, que uma pessoa pobre é pior que um trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém, seja lá o que for que escrevam! eles mesmos, esses escrevinhadores, podem escrever o que for! – para o pobre vai ficar tudo como sempre foi.” (Dostoiévski, Gente Pobre)

A volta da esquerda ao poder trouxe consigo alguns desafios singulares a ela, não só para construir sua governabilidade diante de um mundo muito diferente daquele que Lula deixou em 2011, como para que suas pautas se façam críveis num ambiente de livre opinião totalmente novo.

Em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff, grande parte do jogo político e das forças de influência, de certo modo, ainda permaneciam com as instituições tradicionais, tais como os partidos, as velhas raposas políticas e a  imprensa mainstream – esta última, ou por amizade ou por conta das milionárias verbas de propaganda estatal.

O que ocorreu nos últimos anos, com o advento das redes sociais, foi uma descentralização da informação (e da desinformação). Com isso, as opiniões das pessoas comuns começaram a não depender mais do direcionamento da mídia tradicional, e a construção de canais alternativos de comunicação, informação, debate – quem precisa de um Café Filosófico com Vladimir Safatle, mediado por Márcia Tiburi? – e militância política, bem como a produção de conteúdo dos mais variados tipos e para os mais variados gostos passaram ao alcance de todos os que tinham um computador (ou smartphone), uma boa dose de retórica, presença de câmera e disposição para gravar vídeos com certa constância. O resto é história.

A esquerda ignorou esse fenômeno por muito tempo, ainda que, no período eleitoral de 2014 (antes até), os chamados MAVs (Militância em Ambientes Virtuais) tenham atuado forte e violentamente, sob a tutela do PT, para intimidar, perseguir e assassinar reputações de quem se colocasse no caminho de seu projeto de poder. Mas quem, de fato, se espalhou e fez sua mensagem ser ouvida, catapultada pelo impeachment e pela Lava-Jato, foi o antipetismo e o espírito antissistema de uma natimorta direita que, na sequência, foi praticamente toda sequestrada por um movimento político. Quando os players de esquerda se deram conta, só se falava de Bolsonaro na internet e toda força contrária na mídia tradicional – como as fatídicas entrevistas na GloboNews, no Jornal Nacional, e no Roda Viva, da TV Cultura – que tentava parar aquele fenômeno só fizeram alimentá-lo ainda mais. Resumindo: com o advento da internet a esquerda perdeu completamente o controle da narrativa política e, consequentemente, seu poder de convencimento ou mesmo de assimilação.

Ao retornar ao poder, com uma pequeníssima vantagem, para o terceiro mandato de um Lula ultrapassado num Brasil machucado e dividido, a esquerda se viu acuada. Ainda que os artistas, em seu peleguismo atávico, tenham refeito o seu patético Lula lá da campanha de 1989, o efeito dessa vez foi praticamente nulo, pois o país mudou e todo o discurso apelativo e emocional – em meio à escalada da violência, a sensação de insegurança (inclusive econômica) e a perpetuação da corrupção com o fim da Lava-Jato – não convence mais. Então um dilema se impôs: como voltar à mesma relevância política de vinte, trinta anos atrás sem os meios quase exclusivos de propaganda que sempre estiveram disponíveis através da militância e da mídia tradicional? Como vencer a internet na disputa pelos corações e mentes? Analisemos a questão conceitualmente buscando uma resposta.

O progressismo – no sentido de uma ideologia do progresso, que vê o progresso sempre como algo vantajoso – não é natural no ser humano. Há um senso de preservação e de ordem que sempre entra em conflito com as mudanças, que são fruto das circunstâncias e, em casos mais urgentes, realizadas pelas mãos de pessoas excepcionais. E a esquerda sabe disso. Não é à toa que as pesquisas sempre apontam o brasileiro como um povo conservador. Essa é uma tendência que, apesar de se cristalizar em posições morais (e até moralistas), como a defesa da família tradicional e contrária ao aborto, no fundo evidencia esse senso de preservação intrínseco no ser humano. João Camilo de Oliveira Torres nos ajuda a entender, em Os construtores do império, o que chama de “estado de espírito” conservador:

“É uma posição política que reconhece que a existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que as mudanças sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro. Podemos dizer que o traço mais característico da psicologia conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações e mudanças feitas sem o sentido da continuidade histórica − mais: o conservador acha impraticáveis e condenadas ao suicídio todas as reformas fundadas unicamente na vontade humana, sem respeito às condições preexistentes. Podemos reformar − por meio de um processo de cautelosa adaptação do existente às novas condições − nunca o estabelecimento de algo radicalmente novo.”

Já a mentalidade progressista inverte essa noção natural através de uma imaginação idílica. Para um progressista, o mundo é dividido entre burgueses e proletários – ou, em sua versão mais recente, opressores e oprimidos – e essa dicotomia precisa ser vencida pela justiça social. Numa visão de mundo herdada de Rousseau, uma pessoa de esquerda pensa que a formação da sociedade civil foi uma subversão de um “estado de natureza” em que todos viviam sem necessidade de nada. O bom selvagem, segundo Rousseau em seu famigerado Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, é um sujeito integrado à natureza; “sua imaginação nada lhe pinta; seu coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente à mão, e ele está tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar adquirir maiores, que não pode ter nem previdência nem curiosidade […]. Sua alma, que coisa alguma agita, entrega-se ao sentimento único de sua existência atual sem nenhuma ideia do futuro, por mais próximo que possa estar; e seus projetos, limitados como suas vistas, estendem-se apenas até ao fim do dia”.

Mas, segundo ele, a partir do momento em que alguém, “tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: ʻIsto é meuʼ, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. E assevera: “Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: ʻLivrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!ʼ”

Óbvio que isso tudo foi uma invencionice de Rousseau – que se propôs, em seu Discurso, a “afastar todos os fatos” –, mas pegou. O filósofo Irving Babbitt, em seu Democracia e Liderança, explica a malandragem rousseauniana: “O que é chave para a natureza de Rousseau, e também para o que passou como ideal para os incontáveis rousseaunianos, é encontrado na sua declaração de que, incapaz de descobrir um homem a seu gosto no mundo real, ele construiu para si mesmo uma ʻera dourada de fantasiaʼ. Sua natureza é, em síntese, o que descobri alhures como projeção de sua imaginação idílica” (grifo meu). E conclui: “O cristianismo tem se esforçado por para fazer humilde o homem rico, enquanto o efeito inevitável do evangelho rousseauniano é fazer orgulhoso o homem pobre”. Toda mentalidade progressista e revolucionária moderna, inclusive Marx, é fruto disso.

Ou seja, no fundo o que temos é o conflito entre o senso comum – no melhor sentido do termo, o pensamento ancestral, a “democracia dos mortos”, como diz Chesterton –, passado de geração em geração e que reconhece a necessidade de combinar preservação e mudança, e a imaginação idílica e antinatural rousseauniana. Isso é flagrante, ainda que de modo incipiente e nada afeito à reflexão, nas redes sociais. E as pessoas mais simples, em seu dia a dia, também reconhecem isso. Desse modo, a esquerda não consegue mais emplacar sua narrativa política e ainda tem de lidar com todos os fracassos históricos das experiências socialistas e comunistas.

A internet é o ambiente em que todas essas contradições são evidenciadas e contestadas

A cada tentativa de afirmar sua superioridade moral, sua hipocrisia é exposta, ainda que de modo desajeitado – e muitas vezes temerário –, por qualquer cidadão comum de posse de um smartphone e uma conta no “X” (ex-Twitter). E o leitor tem a prova disso lendo os comentários das postagens de esquerda (e da imprensa tradicional) nas redes sociais.

Daí a conclusão: se esquerda não tem mais o monopólio da verdade e da virtude, só resta a ela a tentativa de controlar o discurso através da regulação das mídias sociais. Não se trata de proteção da democracia, mas da mera recuperação e manutenção de poder. Não se trata de diminuir as fake news, mas de garantir a “verdade” dos poderosos. Não se trata de punir criminosos virtuais (para tal já existem leis), mas de cercear a liberdade de expressão de opositores. Ou seja, a nós resta salvar a democracia dos nossos “democratas”. Que Deus nos ajude.

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