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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Totalitarismos

Por que ainda defendem o comunismo? Ou: uma ideia que nos deforma as mentes

Fila para obter óleo de cozinha em Bucareste (Romênia), em 1986, sob o governo comunista de Nicolae Ceausescu. (Foto: Scott Edelman/US Department of State/Domínio público)

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“Aconteceu também de, estando eu a conversar com pessoas refinadíssimas do Ocidente, ser indagada, com um tom de cumplicidade: ʻAqui entre nós, era assim tão ruim a vida no comunismo?ʼ Enfim, aconteceu-me que pessoas que nasceram, elas, na liberdade, me explicassem, com frases pré-fabricadas e numa nova língua de pau, como foi e como de fato é o comunismo”. (Ioana Pârvulescu, Também eu vivi no comunismo)

A pergunta que forma parte do título desse artigo é sinceríssima, mas um tanto retórica. Eu, como nunca fui uma pessoa de esquerda, que sempre, muito provavelmente por personalidade e por educação, pensei que as mudanças devem acontecer – salvo raríssimas exceções – dentro da ordem institucional vigente e não a destruindo, nunca vi com bons olhos movimentos revolucionários, sobretudo aqueles baseados em ideais utópicos, abstratos. A frase do imenso Tobias Barreto – que figura entre os notáveis já tratados, mais de uma vez, por mim nesta Gazeta do Povo –, “a igualdade só pode obrar como tendência, não pode obrar como direito”, sempre me pareceu fazer sentido, ainda que inconsciente, desde muito cedo em minha vida de estudos.

Portanto, sempre que vejo alguém defendendo ideias que não ultrapassam um exame lógico ou moral simples, fico intrigado. E foi o que aconteceu no último fim de semana, ao ver um corte da participação de um professor de Economia da Uerj num podcast, dizendo que era a favor da pena de morte em regimes comunistas. O acadêmico, que anda desfilando em vários podcasts, debatendo com alguns dos próceres da natimorta direita brasileira e levando a melhor, é hábil em elencar informações (ou propaganda) das maravilhas dos regimes comunistas e dos horrores do capitalismo, diante de pessoas que não leram o livro, mas viram o filme. Não é um tolo, conhece do que diz e expõe com segurança e desenvoltura seus argumentos, merecendo a repentina fama.

Causou-me espécie a desfaçatez de um professor da Uerj em defender pena de morte para opositores, bem como saber que tais ideias são endossadas, ainda hoje, por muitas pessoas no Ocidente livre e capitalista

Como um bom conservador que tento ser, busco na experiência histórica, sempre que possível, uma baliza para minhas posições, bem como para minha maneira de ver o mundo e compreender suas vicissitudes. Saber lidar com as limitações e as contradições da vida, e não buscar soluções disruptivas inconsequentes, deveria fazer parte da vida de qualquer adulto responsável. Por isso causou-me espécie a desfaçatez do professor em defender pena de morte para opositores, bem como saber que tais ideias são endossadas, ainda hoje, por muitas pessoas no Ocidente livre e capitalista.

Tal situação me fez lembrar de um pequeno, mas notável livro, lançado recentemente pela editora Monergismo, uma pequena editora protestante que – graças a Deus! – abriu seu catálogo para a publicação dos excepcionais autores romenos, traduzidos exclusivamente por meu querido e dedicado amigo Elpídio Mário Dantas Fonseca. O livro se chama Uma ideia que nos deforma as mentes, e foi escrito a seis mãos pelos filósofos Gabriel Liiceanu, Andrei Pleşu e Horia-Roman Patapievici, e trata-se de, como diz o tradutor no prefácio, “uma tentativa de responder à pergunta: por que o comunismo, apesar dos horrores que cometeu e comete, ainda goza de prestígio no Ocidente e entre os jovens leste-europeus que não o viveram? Por que, ao contrário do nazismo, o comunismo não provoca igual repulsa, mas antes, é ainda visto como solução?” Ou seja, um livro que vem exatamente ao encontro de minhas inquietações diante da posição de um acadêmico brasileiro.

Em seu prefácio, os autores dizem que “partiram da ideia de que a divisão da memória europeia é uma consequência inevitável da inexistência de uma memória comum. E a chave de reencontro de uma memória comum está na gerência da memória do comunismo. Assim como a chave da primeira unificação europeia foi a vitória sobre o fascismo e a memória comum que disso resultou, a chave da segunda unificação europeia foi o desabamento do comunismo e a memória comum que deveria daí ter resultado. Mas o comunismo não foi vencido (desabou sozinho), e a memória do comunismo não se tornou comum, é ainda flutuante e, como um fantasma, assola a Europa” – e o mundo, eu diria. É impressionante, aterrorizante até, que, mesmo diante de tudo o que foi feito em nome do comunismo, um número considerável de pessoas influentes ainda o defenda como um conjunto de ideias e proposições não só viáveis, mas a única maneira de tornar o mundo um lugar melhor.

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No primeiro ensaio – O terceiro dia do comunismo? –, Andrei Pleşu afirma: “o comunismo não está comprometido. Há poucas pessoas dispostas a dizer, em voz alta: ʻfui nazista na juventudeʼ, mas pessoas dizem ʻfui comunista na juventude, sei que se cometeram erros, mas a ideia permanece ainda muito atraente’”, e busca encontrar explicações para tal posicionamento. Aqui no Brasil, o recente caso Monark não nos deixa dúvida dessa sandice, ainda mais se comparado com a reação quase nula à afirmação nem um pouco dúbia do nobre acadêmico de esquerda. Pleşu analisa um pequeno livro, escrito por Emmanuel Terray, ex-membro do Partido Comunista Francês, que tem o mesmo título de seu ensaio, só que sem a interrogação, e tem como premissa a seguinte proposição: “assim como Jesus ressuscitou ao terceiro dia depois de ter sido sepultado, assim o comunismo ressuscitará, depois de ter levado um duro golpe em 1989”. E Pleşu procura compreender as posições desse homem idoso e ainda fascinado pelo comunismo, afirmando, a partir de um tema da Índia tradicional, “que a vida do homem tem quatro etapas: uma etapa de formação; uma, de fundação de uma família, depois desta, uma etapa de participação comunitária; e a última etapa, a de retirada do mundo”. E, após constatar que é comum os ativistas desrespeitarem tais etapas, complementa:

“Ora, aparece uma tendência nas pessoas como o senhor Terray de ter como problema dominante os outros. E então, o problema do outro substitui o problema do eu, e o problema da injustiça abstrata substitui o problema do sentido. O problema é que quando refletes acerca do sentido, chegas num determinado momento também ao problema da justiça, mas, se te bloqueias desde o começo no problema da justiça, já não tens tempo, já não tens como chegar ao problema do sentido. Assim chega alguém a ser ativista. O ativista é, por definição, alguém que não tem tempo de pensar, que é ativo até a insônia.”

E ao argumento, sempre pronto à boca dos defensores do comunismo, de que “a ideia é boa, mas foi mal aplicada” – ou seja, ainda não foi aplicado corretamente –, Pleşu objeta: “Mas que significa uma ideia boa? [...] O marxismo pretende que uma ideia é boa se é verificada pela prática. Não existe teoria válida se ela não é verificada, não é legitimada praticamente. [...] Uma ideia se valida pelos seus resultados. Se uma ideia é boa, mas não é aplicável, se se estabelece que onde quer que se tenta não se mantém, então ela já não pode ser chamada ideia boa, chama-se utopia”.

É impressionante, aterrorizante até, que, mesmo diante de tudo o que foi feito em nome do comunismo, um número considerável de pessoas influentes ainda o defenda

Após o ensaio há uma rápida sequência de perguntas e respostas que se sucederam à exposição da conferência cuja transcrição constitui o ensaio, em que Pleşu ainda faz uma bela ponderação a respeito de algo que, curiosamente, antes de ler o livro, eu fiz no fim de semana numa das minhas redes sociais – sim, voltei a postar com parcimônia: “Mas parece-me correto dizer que não deve ser confundida a esquerda com o comunismo, assim como não deve ser confundida a direita com o fascismo”.

Liiceanu, no ensaio que dá título ao livro, busca refutar filosoficamente as principais ideias comunistas, tais como a dos “cinco modos de produção”. Diz ele: “Depois de 1948, ensinava-se a história da Romênia da seguinte maneira: qualquer criança descobria na escola que a história da humanidade é uma sucessão de algumas ʻordens sociaisʼ ou ʻmodos de produçãoʼ. Ou seja, a comunidade primitiva, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e, eis, apresentado triunfalmente por todas as vias e tendo já na URSS um passado glorioso de 30 anos, o socialismo, recém-aparecido. Ele era a variante embrionária do comunismo, ʻem que entraremosʼ. Depois dele, o tempo da história se fechará sobre si. A humanidade traquinará numa relva de eternidade da história. Não seremos imortais, mas seremos todos felizes e iguais. E, todos nós, gênios”.

O problema, diz Liiceanu, é que se os três primeiros modos de produção foram espontâneos, orgânicos, e ocorreram de acordo com as circunstâncias, “ninguém construíra, ʻcientificamenteʼ, num laboratório do pensamento econômico, o feudalismo ou o capitalismo e, por isso, eles se apresentavam semelhantes a macieiras selvagens crescidas à margem do caminho”. No entanto, “ao contrário das ordens precedentes, desenvolvidas de maneira natural uma da outra, o comunismo aparece como um ʻartefatoʼ. Ele é construído. [...] Ele aparece como um voluntarismo extremo e se manifesta como um golpe na história soldado com a aparição de um ʻhomem novoʼ. Doravante acabou-se com o ʻhomem caídoʼ das economias pré-comunistas! A revolução econômica e política é apenas o meio de ʻcriarʼ outro homem, um homem que trabalha alegremente (ʻé não alienadoʼ), ʻomnilateralʼ, ʻalegrando-se livremente com os seus sentidosʼ, em suma, o ʻhomem totalʼ. O império do comunismo é deste mundo”. E arremata: “É certo, junto com ela [a massa proletária], entrará em cena também a morte. Mas uma morte salutar. O ʻhomem novoʼ desprender-se-á, vitorioso e com o punho cerrado, de um monte de cadáveres”.

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O comunismo é, desse modo, uma ficção, mas uma ficção, segundo Liiceanu, mais forte que a realidade: “O comunismo sempre se escondeu atrás de um ʻainda nãoʼ, atrás de um ʻexatamente no ponto deʼ e atrás da irrealidade de um futuro atingido assintomaticamente. Nunca, ali onde o ʻsocialismo venceuʼ, o presente foi tão duramente oprimido em nome desse futuro fictício.” Irretocável.

Já Patapievici buscará nos mostrar, no ensaio A memória dividida: Reflexões acerca do comunismo: os seus efeitos e os nossos defeitos, as ligações intrínsecas entre comunismo e fascismo como duas faces de uma mesma moeda totalitária e sanguinária. Ele inicia dizendo:

“Se as ideias dos ditadores fascistas já não gozam hoje senão da aprovação de grupos marginais, minoritários, a quem a lei fundamental da maioria dos países mantém com vigilância num estado de marginalidade que se encontra no limite da legalidade, as ideias dos ditadores comunistas ou socialistas gozam de uma larga simpatia pública e beneficiam-se tanto da promoção acadêmica quanto do apoio legal internacional, em nome dos direitos humanos.”

O livro de Liiceanu, Pleşu e Patapievici deve ser lido por todos aqueles que pretendem compreender os gravíssimos problemas de se normalizar o comunismo a partir de uma idealização irrefletida

E busca uma resposta para esse absurdo no que chama de assimetrias filosóficas ideais entre fascismo/nazismo e comunismo. E argumenta: “o comunismo reivindica para si ideias que são válidas também hoje (igualdade, fraternidade e liberdade), só que as distorceu. Ao passo que o nazismo invoca ideias em que ninguém mais crê hoje, ora, mais ainda, essas ideias provocam uma repulsa moral unânime”. Mas Patapievici dirá que é simplesmente mentira dizer que o comunismo baseia-se nos ideias iluministas; em vez disso, baseia-se “na ideia da luta de classes, na ideia da derrubada, pela violência, da ordem social existente, na ideia da organização, pela violência, da sociedade, na ideia da suspensão das liberdades em vista da supressão das desigualdades, na ideia de censura preventiva da liberdade de expressão, na ideia do partido único e da realização do Estado totalitário, na ideia da ideologização permanente da sociedade, enfim, na ideia expressa popularmente por Stálin, com o gracejo que não se pode fazer omelete sem quebrar ovos”.

E mapeia essa assimetria em quatro fatores: 1. a “dificuldade em aceitar a origem comum dos regimes totalitários”; 2. o “comunismo é percebido como modernista, ao passo que o fascismo é percebido como antimodernista; 3. um “tipo de incapacidade moral de aceitar os fatos”; e, por fim, 4. a “falta de clareza moral dos homens de hoje quanto às relações entre as insatisfações deles diante da sociedade em que vivem e a imagem idealizada que continuam a ter quanto às defuntas sociedades comunistas”.

Pois bem, caríssimo leitor, esse é apenas um aperitivo desse importante livro, que deve ser lido por todos aqueles que pretendem compreender os gravíssimos problemas de se normalizar o comunismo a partir de uma idealização irrefletida. Os autores, dos quais já tratei em outra ocasião – inclusive seu mestre, o platônico Constantin Noica –, são pensadores argutos e experientes, e sabem como poucos na atualidade expor suas ideias com sincera clareza e objetividade. Por isso julgo não só oportuna, mas urgente a publicação de suas obras, que Elpídio vem, de modo absolutamente abnegado e benevolente, vertendo para nossa língua com a dedicação de um vocacionado. Leiam e divulguem, pois a construção de uma democracia sadia passa pela percepção acurada de seus desvios e descarrilamentos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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