“Dirigidos andamos por incapazes que exercem a sinistra função de lobrigar na política desta grande terra apenas as suas vantagens particulares, as suas vantagens deles, Bloquistas, Sátrapas, Oligarcas, Senadores, Ministros, Deputados... Mandões, Chefes de clã, tigres famintos que arrocham os pulsos aos povos, sufocam neles todos os nobres impulsos de ideal para melhor devorar-lhes as carnes.” (Sílvio Romero, Nosso maior mal, 1909)
No último final de semana fiquei sabendo – totalmente contra a minha vontade, diga-se de passagem – que o Ministro de Direitos Humanos e da Cidadania, Sílvio Almeida, velho conhecido desta coluna, usou uma de suas redes sociais para demonstrar não o quão produtiva é sua pasta – cujo orçamento, que eles julgam “curto”, é de R$ 789,5 milhões do nosso suado dinheirinho, e é (ou deveria ser) responsável “pela articulação interministerial e intersetorial das políticas de promoção e proteção dos Direitos Humanos no Brasil” –, mas para fazer papel de agente político do petismo, num óbvio desvio de finalidade do poder a ele outorgado.
Almeida acionou a Advocacia Geral da União (AGU) contra os deputados bolsonaristas Nikolas Ferreira e Felipe Barros “por espalharem vídeos com ofensas e informações falsas de que o governo Lula teria permitido o banheiro unissex no Brasil”. De acordo com o ministro, “o deputado Nikolas Ferreira divulgou vídeo em que distorce completamente a Resolução do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, órgão autônomo em suas decisões, que publicou resolução contendo recomendações a respeito dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Já o deputado Felipe Barros afirma que o Ministério dos Direitos Humanos ʻinstituiuʼ o banheiro unissex nas escolas brasileiras”. Depois correu ao “X” (ex-Twitter) e disse: “Quem usa a mentira como meio de fazer política, incentiva o ódio contra minorias e não se comporta de modo republicano tem que ser tratado com os rigores da lei. É assim que vai ser”.
Isso não seria propriamente um problema, haja vista que os deputados, de fato, a fim de “lacrarem” em suas redes sociais, mentiram a respeito da resolução (o que não deixa de ser uma espécie de divertissement diante de um país em que 50% da população não tem saneamento básico) que não instituiu banheiro unissex em lugar algum, mas “apenas formula orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização” e que não tem força legal. A tal resolução fala que deve ser garantido o uso de banheiro segregado “quando houver” e que “sempre que possível”, os banheiros unissex (mas individuais) devem ser instalados.
Mas o ministro não parou por aí. Na sequência, fez outra postagem, dessa vez mirando diretamente dois inimigos políticos, dizendo: “Serão também tomadas providências contra outros propagadores de Fake News, dentre os quais um sujeito que já teve seu mandato cassado por desrespeitar mulheres de um país em guerra e outro, um Senador da República que quando juiz de direito envergonhou o Poder Judiciário”. O leitor há de concordar que isso é inadmissível. O ministro se refere especificamente a dois indivíduos – o ex-deputado Arthur do Val e o ex-juiz da Lava-Jato e atual senador Sérgio Moro – com acusações de cunho meramente político, pois Arthur já foi inocentado pelo Ministério Público Federal, que não viu materialidade nas denúncias feitas contra o ex-deputado, que foi cassado; ou seja, já pagou politicamente por seus áudios moralmente condenáveis.
Já em relação a Sérgio Moro, a afirmação de Almeida é ainda pior, pois os julgamentos da Lava-Jato sofreram uma investida do establishment político, que, numa manobra jurídica, transformou o certo em errado. Por mais que se possa questionar alguns procedimentos do juiz e dos procuradores, não há como apagar que muitos envolvidos confessaram seus crimes, bilhões foram devolvidos aos cofres públicos e ainda correm processos no exterior. As denúncias feitas a respeito do procedimento dos procuradores e do juiz Sérgio Moro devem ser investigadas e julgadas pelos poderes competentes para tal, e Sílvio Almeida, como advogado, sabe disso; sabe que não se deve acusar alguém sem o devido processo legal. Por isso sua postagem é inadmissível a um ministro de Estado. Mas a pergunta que não quer calar é: por que isso ocorre? Por que, no Brasil, não respeitamos os acordos de civilidade mínimos a uma sociedade saudável?
Ser brasileiro é ser limitado por nosso horizonte cultural e histórico. Um europeu ou um chinês têm muito mais lastro cultural para nortear sua capacidade de compreensão da realidade do que nós, brasileiros.
O fato é que o Brasil é um país de cultura autoritária. A imensa maioria dos brasileiros não sabe e não quer viver numa democracia, onde há diversidade e divergências. Somos vingativos, amamos nos dar bem e prejudicar os outros – sobretudo com poder nas mãos. Toda divergência é anátema, toda discordância é traição e toda ideia contrária é mentira e deve ser eliminada. A intolerância é a regra e o sentimentalismo é virtude. Aqui, qualquer um que tenha algum poder, trata logo de exercê-lo contra o outro. Somos atrasados, violentos, ignorantes – quando não somos maus mesmo. Matamos mais do que países em guerra, punimos inocentes e libertamos criminosos; somos escapistas e refratários a compromissos.
Na esfera pública, entra e sai governo e é sempre a mesma coisa. Por que? Porque os piores governam; gente baixa, pretensiosa, oportunista e rancorosa. Socialistas que se julgam iluminados, liberais do bolso alheio, reacionários atoleimados e simples mamateiros. As exceções confirmam a regra. E governar aqui é: patrimonialismo (fazer do público algo privado), uma quantidade infinita de benefícios e o enriquecimento às custas dos pobres. E no entorno dessa vergonha, vampiros, cobras, ratos e outros bichos peçonhentos aguardando para dar o bote. Enquanto isso, a educação segue nos piores índices, mais de 280 mil pessoas vivem em situação de rua e cada um dos nossos parlamentares custa aos cofres públicos 528 vezes a renda média do brasileiro. Tudo errado.
Aí, quando, num instante de consciência nos perguntamos “por que isso ocorre?”, creio que é necessário um aprofundamento das razões. E ninguém melhor que Mário Vieira de Mello para nos ajudar. Não pretendo me aprofundar no pensamento do autor, pois, meu colega de Gazeta do Povo e irmão em Cristo Guilherme de Carvalho já o fez com maestria em sua coluna. A mim basta que, numa citação ferina, mas basilar, reflitamos na profundidade do que está dito. Diz o filósofo e diplomata:
“O Brasil é um país novo. Essa constatação encerra um grande número de promessas, mas contém igualmente elementos inquietantes para o orgulho e a vaidade brasileiras. O fato de que somos um país novo cria limitações para as nossas possibilidades de assimilação cultural que precisaremos aprender a aceitar com simplicidade e modéstia, se quisermos realmente possuir um dia a estrutura de uma consciência verdadeiramente nacional. Um dos erros mais nefastos da inteligentsia brasileira de todos os tempos foi acreditar que ela própria, a elite intelectual do país, se situava em planos espirituais mais ou menos próximos daqueles em que se situam as elites das nações possuidoras de uma grande e antiga cultura. Sessenta por cento da população do país é composta de analfabetos – assim ou de forma análoga se exprimiria tal convicção – [atualmente temos em torno de 10% de analfabetos e 30% de analfabetos funcionais] mas os que estudam, os que sabem, os que vivem para o espírito pouca diferença fazem dos que, na Europa, representam a inteligentsia.”
O que Vieira de Mello diz é que o fato do Brasil ser um país jovem, afeta, de maneira indelével, nossa cultura geral. Ser brasileiro é ser limitado por nosso horizonte cultural e histórico; um intelectual brasileiro é a mesma coisa. A cultura individual por se destacar, mas o horizonte cultural geral sofre do mesmo problema. Um europeu ou um chinês têm muito mais lastro cultural para nortear sua capacidade de compreensão da realidade do que nós, brasileiros. E com base nisso, ele assevera:
“Tal maneira de considerar as coisas encerra um indiscutível erro de visão. O fato de sessenta por cento da população de um país ser analfabeta, não pode deixar de se refletir da maneira mais grave na mentalidade dos quarenta por cento restantes e de maneira ainda mais grave na dos círculos extremamente restritos das elites. Há em toda alma humana uma parte individual, uma parte que é o resultado da iniciativa, do esforço e das oportunidades do indivíduo, e uma parte coletiva, uma parte que é o resultado da iniciativa, do esforço e das oportunidades da coletividade a que pertence o indivíduo. Assim, por mais que o intelectual brasileiro tenha desenvolvido as suas faculdades e capacidades, a parte coletiva de sua alma reflete ainda hoje a situação deplorável da educação do nosso povo. Se constitui como um vazio de aspirações e de impulsos que empresta à totalidade de seu ser um caráter desarmonioso e incompleto. Não será daí, mais do que de uma suposta consciência alienada, que terá surgido a tendência ornamental de nossa cultura?”
Creio que faça total sentido. Parafraseando outro grande filósofo brasileiro, Sílvio Romero (citado na epígrafe), nosso maior mal é não termos consciência positiva do que somos realmente – o que nos daria a humildade necessária para nos fazer avançar de maneira mais realista e cautelosa –, mas ufanarmo-nos em sermos o que não somos. Somos estetas, a nós importam as aparências mais do que a realidade. E isso se reflete profundamente em nossa intelectualidade, em nossos formadores de opinião e em nossos políticos, o que é um prato cheio para oportunistas e salteadores intelectuais de toda sorte. Somos reféns não só de nossos representantes, mas, sobretudo, de ideólogos que manipulam as massas a fim de tirarem vantagem e prevalecerem. Essa parece ser a lógica que anima ministros como Sílvio Almeida ou qualquer outro que faz mau uso do poder que tem. Como um país assim pode dar certo?
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