“Os seres humanos cometerão equívocos seja qual for o sistema econômico. Eis o ponto-chave: que espécies de incentivos e restrições farão com que eles corrijam seus próprios erros? ” (Thomas Sowell, Economia Básica)
Sempre que converso com uma pessoa de esquerda, é comum que, em seus argumentos, a pessoa tente, às vezes involuntariamente, passar a ideia de que sou insensível ao sofrimento do outro, à pobreza e à miséria alheia. Ser de esquerda, pensa ele de si próprio, é pensar nos pobres, enquanto ser capitalista é pensar nos ricos. A propósito: sendo um termo criado por marxistas, é comum que o capitalista seja o “dono dos meios de produção”, e que um trabalhador que se diz capitalista só está vivendo em alienação. Mas creio que meu leitor compreende, para além da filigrana semântica, o que quero dizer: sou capitalista porque sou um defensor do capitalismo, ou – para satisfazer os puristas – da economia de mercado.
Nesse sentido, fazer uma defesa do capitalismo passa por tentar convencer meu interlocutor – tarefa inglória, na maior parte das vezes – de que a preferência pelo capitalismo não significa desprezo pelos pobres ou mesmo um erro de diagnóstico, mas só uma maneira de compreender qual a melhor solução para o problema. Diante da miséria e da desigualdade, o que seria melhor: um mundo mais igualitário ou um mundo mais livre? Tudo começa aqui, eis o ponto de partida para a definição de preferências acerca do melhor sistema econômico.
O comunismo se define como um regime igualitarista, que se consolidaria a partir da abolição das classes sociais e da propriedade privada, e a instituição da propriedade coletiva dos meios de produção. Daí todos seríamos donos de tudo e ninguém teria mais do que ninguém. Sua etapa anterior, o socialismo, se caracterizaria pela reorganização da sociedade através da tomada dos meios de produção e do controle e reorganização sociedade através do Estado. E a social-democracia seria um regime intermediário entre a economia de mercado e o Estado de bem-estar social, com forte presença do Estado, através de sistemas de transferência de renda e uso dos recursos públicos, a fim de melhorar a vida dos mais pobres. O sucesso de cada uma dessas empreitadas depende, fundamentalmente, da adesão voluntária dos indivíduos ou de sua sujeição através do terror estatal ou revolucionário. Uma vez que a condição natural do ser humano é a desigualdade e a pobreza, buscar a igualdade exigirá um “esforço” e tanto.
A preferência pelo capitalismo não significa desprezo pelos pobres ou mesmo um erro de diagnóstico, mas só uma maneira de compreender qual a melhor solução para o problema da miséria e da desigualdade
Para um esquerdista, a abolição das classes sociais seria uma verdadeira libertação das amarras burguesas, mas na verdade exigirá que nos deitemo num leito de Procusto. Como diz Roger Scruton em seu Tolos, fraudes e militantes: “Se a libertação envolve liberar o potencial do indivíduo, como impedir que os ambiciosos, determinados, inteligentes, bonitos e fortes saiam na frente, e o que devemos nos permitir como meios para reprimi-los?” Uma pergunta incômoda, por certo. Como vencer a desigualdade natural em noma de uma igualdade imaginária e programática? Scruton responde: “É melhor não confrontar essa questão impossível. É melhor convocar os velhos ressentimentos que examinar o que virá depois de sua expressão. Ao declarar guerra às hierarquias e instituições tradicionais em nome de seus dois ideais [liberdade e igualdade], portanto, a esquerda é capaz de obscurecer o conflito entre eles”.
Essa questão não é nova no debate político e filosófico. E penso que uma das reflexões mais extraordinárias a esse respeito veio de um gênio brasileiro do qual, atualmente, pouco ou nada se fala. Estou falando de Tobias Barreto, filósofo, jurista e poeta brasileiro – já tratado por mim nesta Gazeta do Povo –, em seu ensaio magistral Um discurso em mangas de camisa, proferido por ele no Club Popular de Escada, em 07 de outubro de 1877. Nessa breve “obra-prima da sociologia brasileira” (nas palavras de Hermes Lima), Barreto reflete, de modo arguto e ferino, não só a política de nosso país mas os fundamentos que sustentam o pensamento contemporâneo. A certa altura, os temas da liberdade e da igualdade surgem, e ele os enfrenta de modo corajoso. Leiamos um trecho – longo, mas importante:
“Mas antes de tudo, que a liberdade e a igualdade são contraditórias e repelem-se mutuamente não milita dúvida. A liberdade é um direito, que tende a traduzir-se no fato, um princípio de vida, uma condição de progresso e desenvolvimento; a igualdade, porém, não é um fato, nem um direito, nem um princípio, nem uma condição; é, quando muito, um postulado da razão, ou, antes, do sentimento. A liberdade é alguma coisa de que o homem pode dizer: eu sou!...; a igualdade, alguma coisa de que ele somente diz: quem me dera ser!... A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. A liberdade é aquele estado no qual o homem pode empregar tanto as suas próprias como as forças da natureza ambiente, nos limites da possibilidade, para atingir um alvo que ele mesmo escolhe […]. A igualdade é aquele estado da vida pública no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual independência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável de igualdade – o comunismo –, porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que, tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota.”
Luiz Gama, que os esquerdistas adoram usar como exemplo de revolucionário, também refletiu sobre a liberdade em mais de uma ocasião e contexto, pois era um liberal convicto. No Brasil escravista, falar em liberdade não era uma abstração, bem como falar em progresso exigia um olhar para o mundo e como ele se desenvolvia. Nesse sentido, falar em liberdade significava assumir seus fundamentos de modo radical. Diz ele, num artigo intitulado Liberdade de ensino e escola para todos:
“Que a liberdade não pode ser limitada em nenhuma de suas manifestações, por importar essa limitação um atentado contra a consciência humana e flagrante violação dos direitos individuais, já o disse escritor eminente; e tão clara e completa vai a sua doutrina nestas poucas palavras, que nos dispensamos de desenvolvê-la. Que a união dos homens em sociedade forma um pacto comum, que tem por base a igualdade, e que, portanto, semelhante união não pode, por modo algum, direta ou indiretamente, atentar contra a independência individual, senão garanti-la em toda a sua plenitude, dizem-no com inimitável eloquência e segurança inabalável as instituições mosaicas; os evangelhos confirmam-no; e todos os publicistas cristãos sustentam-no. Que a liberdade é a causa do direito, foi escrito por Deus na árvore da ciência, e ninguém ousará contestá-lo”.
Ou seja, disso depende toda reflexão e todo o debate acerca do capitalismo e do comunismo. Não há diálogo possível sem que se estabeleça a preferência do interlocutor a esse respeito. Óbvio que, de modo abstrato, uma pessoa de esquerda dirá que prefere um mundo mais igualitário, pois isso garantiria o mínimo a cada um e não deixaria ninguém para trás. Mas isso é pura abstração utópica, e um tipo de abstração defendida, geralmente, por quem jamais passou necessidade na vida. As pessoas comuns continua acreditando na defesa da liberdade, da propriedade e da capacidade de, pelos próprios esforços, conquistar o que se desejam. Isso é o que, aliás, mais irrita aqueles que são de esquerda, pois julgam que a sociedade em geral – os trabalhadores – é alienada e precisa da ajuda de seus intelectuais/militantes para adquirir consciência de classe. Isso não significa, obviamente, que as pessoas não tenham consciência das injustiças que sofrem, tampouco do sofrimento alheio. E não é fortuito que o teórico mais proeminente do capitalismo, Adam Smith, tenha escrito sua Teoria dos sentimentos morais antes de escrever sua obra-prima, A riqueza das nações. No início do primeiro capítulo daquela obra, ele diz: “Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela. Dessa espécie é a piedade, ou compaixão, emoção que sentimos ante a desgraça dos outros, quer quando a vemos, quer quando somos levados a imaginá-la de modo muito vivo”.
Mas, em sendo a liberdade um princípio de vida, como nos disse Tobias Barreto, e a percepção da desigualdade sendo algo natural, é igualmente natural que as pessoas prefiram ser livres e ajudar ao próximo do que submeterem a sua liberdade ao poder de um grupo ou mesmo do Estado. Ou seja, não é natural que as pessoas busquem a igualdade.
As pessoas comuns continuam acreditando na defesa da liberdade, da propriedade e da capacidade de, pelos próprios esforços, conquistarem o que se deseja. Isso é o que, aliás, mais irrita aqueles que são de esquerda
Sim, é possível objetar e oferecer argumentos de que, sob a desigualdade produzida pelo capitalismo, pela economia de mercado, seja necessário buscar alternativas. No entanto, como diz Thomas Sowell na frase em epígrafe, todos os sistemas são falhos; o problema é saber como lidar com essas falhas, quais incentivos são oferecidos para que os eventuais problemas sejam solucionados. Lidar com a economia não é algo trivial, é necessário estudos e experiência. Na introdução de seu clássico Economia Básica, ele é enfático:
“Boas intenções não bastam; na verdade, sem a compreensão de como a economia funciona, ser apenas bem-intencionado pode levar a resultados contraprodutivos, se não desastrosos, para o país como um todo. Vários, se não a maioria dos desastres econômicos, decorreram de políticas pretensamente benéficas — e tais desastres poderiam ter sido evitados caso aqueles que as delinearam e implementaram entendessem de Economia. A despeito de existirem controvérsias na Economia, isso não significa que seus princípios econômicos, tal como os da Química ou da Física, sejam apenas uma questão de opinião.”
Ser contra o capitalismo porque ele produz desigualdade não é suficiente se o contrário disso for a sujeição igualitária. Mais do que isso: quem me garante que, virando a mesa de um modo de produção que se estabeleceu há mais de dois séculos, que tirou milhões e milhões de pessoas da miséria, e o substituindo por um ideal, tudo correrá bem. A própria história nos mostra que as coisas não são tão simples. Aqueles que defendem regimes alternativos, baseados em países que os experimentaram ou experimentam, sob o argumento de, nesses lugares, supostamente, não existem criança fora da escola nem gente na rua não estão dispostos a viverem lá com o básico (quando há o básico), numa sociedade totalmente controlada pelo Estado. Aí o que sobra é jogar a culpa nos outros. Como diz Scruton, os historiadores socialistas “sistematicamente minimizam as atrocidades cometidas em nome do socialismo e atribuem a culpa pelos desastres às forças ʻreacionáriasʼ que impedem seu avanço”. Trata-se de “uma narrativa mitopoética do mundo moderno na qual guerras e genocídios foram atribuídos àqueles que resistiram à justa ʻlutaʼ pela justiça social”.
Uma análise acurada do que ocorreu nos 200 anos que se sucederam à Revolução Industrial não nos deixa dúvidas de que o capitalismo foi o grande promotor de “justiça social” – veja o vídeo 200 países, 200 anos, 4 minutos, produzido pela BBC, e tenha uma noção. Os críticos da Revolução Industrial, como promotora de vil exploração de mulheres e crianças, e submissão à jornadas extenuantes de trabalho, não passa de mistificação se comparada ao que era a Europa antes dela. Ludwig von Mises, em seu indispensável Ação Humana, nos esclarece:
“A verdade é que as condições no período que antecedeu à Revolução Industrial eram bastante insatisfatórias. O sistema social tradicional não era suficientemente elástico para atender às necessidades de uma população em contínuo crescimento. Nem a agricultura nem as guildas conseguiam absorver a mão de obra adicional. A vida mercantil estava impregnada de privilégios e monopólios; seus instrumentos institucionais eram as licenças e as cartas patentes; sua filosofia era a restrição e a proibição de competição, tanto interna como externa. O número de pessoas à margem do rígido sistema paternalista de tutela governamental cresceu rapidamente; eram virtualmente párias. A maior parte delas vivia, apática e miseravelmente, das migalhas que caíam das mesas das castas privilegiadas. Na época da colheita, ganhavam uma ninharia por um trabalho ocasional nas fazendas; no mais, dependiam da caridade privada e da assistência pública municipal. Milhares dos mais vigorosos jovens desse estrato social alistavam-se no exército ou na marinha de Sua Majestade; muitos deles morriam sem glória, em virtude da dureza de uma bárbara disciplina, de doenças tropicais e de sífilis.”
As pessoas têm todo o direito de defender o comunismo, mas toda a mística comunista,na qual se baseiam não só a crítica da exploração, mas o desejo de um mundo igualitário, parece ser fundamentada em abstrações acríticas – ou pré-críticas, como diz Eric Voegelin. Um exemplo simplório seria o conceito de natureza humana. Marx, sendo um materialista, estabeleceu que nossa vida é “condicionada” materialmente, pelas relações econômicas. Diz Voegelin, no Volume 08 de sua História das ideias políticas: “Mas o que significa ʻcondicionarʼ? O termo dificilmente é esclarecido por uma formulação anterior de que as formas políticas estão ʻradicadasʼ em relações materiais”. E assim os termos vão sendo expostos sem qualquer cuidado conceitual. Por isso a discussão com alguém de esquerda se torna inconciliável, pois sua visão de mundo está alicerçada em reducionismos abstratos que ignoram toda a complexidade humana.
Aqueles que defendem regimes alternativos sob o argumento de, nesses lugares, supostamente, não existir criança fora da escola nem gente na rua não estão dispostos a viverem lá com o básico numa sociedade totalmente controlada pelo Estado
Quem critica o capitalismo, geralmente o faz com um ar de superioridade moral, como se a opção oferecida – que, em geral, nunca foi testada, ou, se foi, deu errado – é melhor, a despeito da falta de evidências. Basta forçar a situação através de uma revolução que tudo se resolverá pelo desejo de suas iluminadas cabeças. Como diz Frédéric Bastiat em seu A Lei: “Enquanto a humanidade tende para o mal, eles, os privilegiados, tendem para o bem. Enquanto a humanidade caminha para as trevas, eles aspiram à luz; enquanto a humanidade é levada para o vício, eles são atraídos para a virtude. E desde que tenham decidido que este deve ser o verdadeiro estado das coisas, então exigem o uso da força a fim de poderem substituir as tendências da raça humana por suas próprias tendências.” Isso me soa como uma grande cilada.
Isso não quer dizer, também, que não devemos criticar os abusos que ocorrem no capitalismo. O chamado rentismo, os juros abusivos, a plutocracia ou mesmo o liberalismo do bolso alheio, do herdeiro confortável que só quer pagar menos imposto, que ignora que, num país em que 100 milhões de pessoas não têm saneamento básico, falar em Estado Mínimo é sadismo. Sem nos livrarmos da Lei de Gérson, e sendo uma sociedade perenemente desconfiada, mergulhada na impunidade, nossa vigilância deve ser redobrada – não só com os outros, mas conosco também. Mas, de novo, o que conta é sabermos se, na busca por uma opção melhor do que o capitalismo, não nos depararemos com algo pior e imprevisto, e seja tarde demais.
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