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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Por um conservadorismo antirracista

Grupo de artistas pinta um mural com o retrato de George Floyd na parede do lado de fora da Cup Foods, onde Floyd foi morto sob custódia da polícia, em 28 de maio de 2020 em Minneapolis, Minnesota. As pessoas se reunem no local desde que Floyd foi morto. (Foto: AFP)

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Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! (Cruz e Souza, O Emparedado)

Uma das maiores confusões propagadas ao longo dos séculos recentes é a de que o conservadorismo seria uma doutrina política de elite, baseada na manutenção do status quo. Numa rápida pesquisa pela internet, é possível encontrar um artigo, na Revista PUC Minas, que expressa as palavras de um professor universitário dizendo o seguinte: “Para o sociólogo e professor da PUC Minas, Robson Sávio Reis Souza, o conservador é essencialmente individualista e só se preocupa em manter o seu status quo. Além disso, cultua o rentismo, ou seja, vive de aplicações de capitais, e só pensa em concentrar rendas. ‘Com essa questão do capital, estamos vivendo uma onda fascista, moralista, xenófoba e misógina, permeada de sentimento de ódio’”. O tal professor Robson Sávio é pós-doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Salamanca e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp), órgão da PUC Minas e da Arquidiocese de Belo Horizonte. Além disso – é importante frisar – escreve para o site Brasil247, aquele site envolvido no Petrolão. Ou seja, é esse tipo de ignorância que professores tarimbados ensinam nas universidades brasileiras, criando um espantalho que pode ser facilmente rechaçado, afinal de contas, quem quer se associar a algo ligado a uma “onda fascista, moralista, xenófoba e misógina, permeada de sentimento de ódio”?

O problema de definições como essa, do nobre pós-doc, é que não refletem, absolutamente, a verdade daquilo que o filósofo Michael Oakeshott chama de “disposição conservadora” em seu livro Conservadorismo [On being conservative], que nada mais é que:

[...] preferir o familiar ao estranho, preferir o que já foi tentado a experimentar, o fato ao mistério, o concreto ao possível, o limitado ao infinito, o que está perto ao distante, o suficiente ao abundante, o conveniente ao perfeito, a risada momentânea à felicidade eterna. Relações familiares e lealdades têm preferência sobre o fascínio pelas alianças de momento; comprar e aumentar é menos importante do que manter, cultivar e aproveitar; a tristeza da perda é mais aguda do que a empolgação pela novidade e pela promessa. Significa viver dentro dos limites do patrimônio, usufruir dos meios possíveis à riqueza, contentar-se com a necessidade de maior perfeição que é exigida a cada um em dada circunstância.

Ou seja, uma doutrina moral das pessoas absolutamente comuns; muito mais simples que a definição catastrófica do nosso professor247. No entanto, ele não é exceção; esse tipo de concepção errônea é corrente no pensamento acadêmico brasileiro, principalmente nas ciências humanas, quase completamente dominadas pelo pensamento marxista. Isso faz com que nossa própria tradição de pensamento conservador, que possui figuras como Visconde de Cairú, Joaquim Nabuco, André Rebouças e João Camilo de Oliveira Torres, seja completamente desconhecida dos jovens universitários, que passam a reproduzir a ignorância propagada propositadamente por seus professores.

João Camilo, sobre quem já escrevi aqui, nesta Gazeta do Povo, diz que o conservadorismo é, em termos políticos, a posição que “reconhece que a existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que as mudanças sociais, para serem justas e válidas, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro”. E André Rebouças, o cérebro do abolicionismo, dizia que a questão social brasileira seria resolvida “não por utopias socialistas e violências anarquistas ou comunistas, mas, sim, convencendo-se ao operário que o trabalho é uma necessidade higiênica, que sem trabalho é impossível ter saúde – o fator principal da felicidade. E também, por outro lado, demonstrando aos ricos que todos os abusos do luxo, da gula e da volúpia, proporcionados pelo excesso de riqueza, conduzem fatalmente à perda da saúde – isto é, o maior bem que há nesse mundo”. Tudo isso porque os conservadores são guiados, como diz Russell Kirk, “pelo princípio da prudência”; e que “qualquer medida pública deve ser julgada pelas consequências de longo prazo, não apenas por vantagens ou popularidade temporárias”.

Tais princípios, que parecem muito livrescos aos olhos de um progressista, seguem evidentes na ordem moral natural das civilizações mais antigas. Por exemplo, os povos Bantu – que englobam mais de 400 grupos étnicos africanos –, são caracterizados, segundo o eminente missionário Placide Tempels, citado pelo padre Raul Ruiz de Asúa Altuna, em seu Cultura tradicional Bantu, por serem comunidades tradicionais, interligadas por fortes laços familiares que se estendem até os mortos:

O homem nunca aparece como um indivíduo isolado, como uma substância independente. Todo homem, todo indivíduo, constitui um elo na cadeias de forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado superiormente à sua linhagem ascendente e sustentando, inferiormente, a linhagem de sua descendência. Podemos afirmar que para os Bantu o indivíduo é, por necessidade, clânico. Isso não se refere a uma relação de dependência jurídica, nem de parentesco, mas deve ser entendida como uma real interdependência ontológica.

O que significa isso senão a “democracia dos mortos” de que fala Chesterton ou mesmo o “contrato do sociedade eterna” de que fala Edmund Burke? Entre os Bantu, a liberdade e a propriedade (não da terra, mas dos bens) são amplamente preservadas, mas dentro de um sistema comunitário tradicional e rígido. Nenhuma civilização ou sociedade, na história da humanidade, se consolidou sem isso.

Feitas essas considerações a fim de dirimir enganos conceituais, é preciso reconhecer que há outro lado da moeda, digamos, pouco nobre de um certo conservadorismo ressurgido recentemente. Por conta da apropriação ideológico-partidária de causas sociais legítimas (violência contra as mulheres, racismo, homofobia etc.) por progressistas de toda sorte, determinados grupos conservadores mais obtusos e ignorantes – que eu chamaria, na verdade, de reacionários, conforme a definição de João Camilo – tendem a enxergar tais demandas como “coisa de comunista” ou “mimimi”, e acabam por cerrar fileiras com a injustiça. Tais pessoas não têm em mente que a ideia de justiça está nos fundamentos do conservadorismo, pois parte do princípio de que toda vida tem valor transcendente. Por isso as sociedades criam leis, para garantir que nenhum indivíduo tenha poder arbitrário sobre o outro. Como diz o economista liberal Frédéric Bastiat – inspiração para o projeto pós-abolicionista de Rebouças –, em seu A lei: “A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes, que os homens foram levados a fazer as leis”. Nesse sentido, “a lei é a organização do direito natural de legítima defesa. É a substituição da força individual pela força coletiva. E esta força coletiva deve somente fazer o que as forças individuais têm o direito natural e legal de fazer: garantir às pessoas as liberdades, as propriedades; manter o direito de cada um; e fazer reinar entre todos a JUSTIÇA”. Por isso Bastiat era contra a espoliação (apesar de reconhecê-la como fruto de leis humanas que a legalizavam) e a escravidão, pois, para ele, esta era “uma violação, sancionada pela lei, dos direitos da Pessoa”; era, ao fim e ao cabo, “a lei tornada instrumento de injustiça”.

Um excelente exemplo prático desses princípio pode ser encontrado em ninguém menos que Edmund Burke, considerado o pai do conservadorismo moderno. Burke foi um crítico contumaz do modo como a Inglaterra governava a Índia nos tempos da colonização, na pessoa de seu governador Warren Hastings. Burke disse, num de seus discursos – citado na monumental biografia escrita por Russell Kirk: “A invasão tártara foi perniciosa, mas é a nossa proteção que destrói a Índia. A sua foi a inimizade, mas a nossa é amizade. Lá, nossa conquista, após vinte anos, é tão rude quanto no primeiro dia”. Para Burke a Inglaterra tinha violado a lei moral natural, que garantia dignidade a todos os seres humanos, ainda que num sistema de conquista. Como diz Kirk: “Todo poder é de Deus, e a Companhia das Índias Orientais, o rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns não têm poder arbitrário para outorgar – não existe autoridade ilimitada, ‘porque o poder arbitrário é uma coisa que nenhum homem pode suportar e nenhum homem pode conferir. Não há quem se governe a si mesmo segundo a própria vontade, nem, muito menos, nenhuma pessoa pode ser governada pelo arbítrio de outrem’”.

Burke processou o governador geral da Índia numa ação de impeachment que durou, após sua renúncia, em 1785, sete anos (1788-1795) e, mesmo desgastado pela insistência – que muitos consideravam exagerada –, Burke não desistiu, pois “estava convencido de que as ofensas de Hastings constituíam um ataque a todo o tecido social da Índia e tinham servido para dissolver os laços morais e consuetudinários que unem os homens para o bem comum”. Isso é conservadorismo, caríssimo leitor; e qualquer um que se deixe levar por antagonismos políticos e passe ao largo da justiça, não é conservador, é mero reacionário, que busca vantagens pessoais em torno de uma identificação ideológica.

Os casos recentes de mortes, de dois homens negros nos EUA – o jovem de 25 anos, Ahmaud Arbery, e George Floyd, de 46 anos –, e do menino João Pedro, de 14 anos, no Brasil, levantaram, novamente, a questão do racismo e, lá fora, geraram protestos que já se arrastam por seis dias (até o momento, 01/06/2020), com muita destruição em várias cidades... e mais mortes. Uma situação assaz delicada, por certo. É evidente que os protestos foram, como sempre, capturados por grupos de militantes profissionais e por jovens antifa de esquerda; e que trata-se de uma questão bastante controversa quando se sabe que mais de 90% dos assassinatos de negros americanos são perpetrados por outros negros, e que o aliciamento de crianças e jovens negros – 75% oriundos de lares sem o pai –, pelas dezenas de milhares de gangues, causam um dano terrível à comunidade negra americana e tendem a evocar um certo ceticismo diante de tamanha reação ao que parece ser uma exceção: a morte causada por policiais brancos; (isso foi tema de um longo artigo que escrevi sobre o movimento #BlackLivesMatter, e também de outro, sobre o funeral de Aretha Franklin, aqui, nesta Gazeta do Povo). Outro problema é que esses casos quase sempre estão envolvidos em muitas contradições, pois, geralmente, dependem de testemunhas que parecem estar sempre prontas a incriminar a polícia. Alguns deles, como o de Michael Brown (que cito no artigo sobre o BLM), fica demonstrada a inocência dos agentes da lei, que agiram em legítima defesa. Mas, ainda que os casos reais sejam exceções, estas confirmam a regra e não devem ser ignoradas.

No entanto, nobre leitor, os três casos recentes não deixam dúvida, se não do racismo, da total arbitrariedade e injustiça cometidas contra dois suspeitos – se é que podemos chamá-los assim – e uma criança absolutamente inocente. Por isso foi um ultraje para mim ver tantos que se dizem conservadores relativizando os casos como se fossem absolutamente iguais àqueles sobre os quais pairam controvérsias. Sim, os três casos foram de assassinato; se culposos ou dolosos, a justiça determinará; mas não podemos, em nome de um pseudoceticismo – que, na verdade, se manifesta em ódio ideológico e racismo mesmo – menosprezar a razão e o bom senso. Isso não é conservadorismo, é covardia. Conservadores devem se pautar pela verdade e pela prudência, sem jamais negligenciarem das “coisas permanentes” – dentre elas, a justiça, uma virtude cardeal. O racismo existe, é um mal moral (e um pecado, para os cristãos) e deve ser combatido por todos, inclusive por conservadores.

Luiz Gama, o grande abolicionista, tinha o temperamento conservador; não obstante, deixa claro que não compactuaria com a injustiça por medo de ser confundido com radicais:

Sei que algumas pessoas dessa cidade, aproveitando caridosamente o ensejo do movimento acadêmico, mandaram dizer para a Corte e para o interior da província, que isto por aqui, ao peso de enormes calamidades, ardia entre desastres temerosos e desolações horríveis, atestados por agentes da INTERNACIONAL!... e que eu (que não por certo faltar à sinistra balbúrdia, estava capitaneando uma tremenda insurreição de escravos! [...] Protesto, sinceramente, não só para fazer calar os meus caluniadores políticos como aos inimigos da Loja América, que não sou nem serei jamais agente ou promotor de insurreições, porque de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício à mísera escravatura e muito menos ao partido republicano, a que pertenço, cuja missão consiste, entre nós, em esclarecer o país. Se algum dia, porém, os respeitáveis juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei, e os imprescindíveis deveres que contraíram perante a moral e a nação, corrompidas pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a “resistência”, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para pôr preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juizes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores. (Luiz Gonzaga Pinto da Gama, Correio Paulistano, 1871)

Que não sejamos negligentes e covardes de abandonarmos causas tão nobres só porque, geralmente, se transformam em bandeira política nas mãos daqueles que só fazem se aproveitar delas em benefício próprio.

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