— […] Nikolai Vsievolódovitch olhou severamente para ele —, eu queria apenas saber: você mesmo crê ou não em Deus?
— Eu creio na Rússia, creio na sua religião ortodoxa... creio no corpo de Cristo... creio que o novo advento acontecerá na Rússia... Creio... — balbuciou Chátov com frenesi.
— E em Deus? Em Deus?
— Eu... eu hei de crer em Deus. (Fiódor Dostoiévski, Os Demônios)
Lembro-me ainda hoje do impacto que a obra Discipulado, do pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (de quem já falei em vídeo), causou em mim. Eu havia me convertido há pouco tempo quando o livro caiu em minhas mãos – não me lembro agora quem mo indicou – e foi um choque deparar-me com tamanho radicalismo e, sobretudo, tamanha coragem. Fiquei por semanas atordoado com o que tinha lido e pensando: “o que esse sujeito quer é impossível”.
Dietrich Bonhoeffer nasceu em 4 de fevereiro de 1906, filho de um bem-sucedido psiquiatra, Karl Bonhoeffer, e uma professora, Paula Bonhoeffer, neta do eminente teólogo protestante Karl von Hase. Formou-se em teologia pela Universidade de Tübigen e doutorou-se pela Universidade de Berlim, em 1927. Em 1930, como ainda era muito jovem para ser ordenado pastor (tinha somente 24 anos), viajou para um período de intercâmbio nos Estados Unidos, onde conheceu o genial teólogo Reinhold Niebuhr. Deu algumas aulas como convidado no Union Theological Seminary e também conheceu um jovem estudante negro, Franklin Fisher, que o introduziu no pentecostalismo festivo e devoto das igrejas negras americanas, que muito o impressionaram. Frequentou a The Abyssinian Baptist Church, em Nova York, e teve oportunidade de andar pelo Harlem e viver – e refletir e se envergonhar com – o intenso racismo e a segregação americanos. Tal experiência marcaria de maneira indelével sua fé e sua teologia.
Como pastor e teólogo, fez oposição ao regime nazista desde o primeiro dia de sua ascensão. Criticou a subserviência de correligionários e fundou, em 1934, com outros pastores dissidentes, – dentre eles o grande Karl Barth – a Igreja Confessante, cuja Declaração Teológica de Barmen, sua confissão de fé, dentre outras coisas, diz: “Declaramos publicamente nesta Confissão, perante todas as igrejas evangélicas da Alemanha, que aquilo que ela mantém como patrimônio comum está em grande perigo que também ameaça a unidade da Igreja Evangélica Alemã. Ela se acha ameaçada pelos métodos de ensino e de ação do partido eclesiástico dominante dos ‘cristãos alemães’ e pela administração da Igreja conduzido por ele. Esses métodos se vêm tornando cada vez mais salientes neste primeiro ano de existência da Igreja Evangélica Alemã. Essa ameaça reside no fato de que a base teológica da unidade da Igreja Evangélica Alemã tem sido contrariada contínua e sistematicamente e tornada ineficaz por doutrinas estranhas, da parte dos líderes e porta-vozes dos ‘cristãos alemães’, bem como da parte da administração da Igreja. Se tais doutrinas conseguirem impor-se, então, conforme todas as Confissões em vigor em nosso meio, a Igreja deixará de ser Igreja, e a Igreja Evangélica Alemã, como federação de Igrejas Confessionais tornar-se-á intrinsecamente impossível”. A Igreja Confessante torna-se um grupo clandestino e seus líderes passam a ser perseguidos e enviados a campos de concentração; Martin Niemöller, apesar das controvérsias que cercam o seu nome, foi um deles. Em 1935 fundam, na cidade de Finkenwalde, um seminário clandestino, subterrâneo, para treinamento de pastores da Igreja Confessante.
Em 1939, com o serviço militar convocando os jovens, Bonhoeffer, desesperado com a possibilidade de ter de pegar em armas para defender o nazismo, faz alguns contatos nos EUA e, a convite do Union Theological Seminary, volta à América. Mas sua visita dura apenas 26 dias. Bonhoeffer arrepende-se e sente que não deveria ter deixado a Alemanha nesse momento tão difícil. E diz, em carta ao amigo Reinhold Niebuhr:
Tive tempo para pensar e orar sobre a minha situação e a de meu país, e de ter a vontade de Deus esclarecida para mim. Cheguei à conclusão de que cometi um erro ao vir para a América. Preciso atravessar este período difícil da nossa história nacional com o povo cristão da Alemanha. Eu não terei direito a participar da reconstrução da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não compartilhar as provações desta época com meu povo. Meus irmãos no Sínodo Confessante queriam que eu partisse. Eles talvez tivessem razão ao me pressionar, mas eu estava errado em partir. Uma decisão dessa cada homem deve tomar sozinho. Os cristãos na Alemanha enfrentarão a terrível alternativa de desejar a derrota da nação para que a civilização cristã possa sobreviver, ou desejar a vitória da nação e, assim, destruir a nossa civilização. Eu sei qual dessas alternativas tenho de escolher; mas não posso fazer essa escolha em segurança.
Então, mesmo sob os protestos efusivos dos amigos americanos, que queriam proteger o proeminente jovem teólogo, Bonhoeffer retorna à Alemanha e começa, aos poucos – principalmente quando as notícias sobre os campos de concentração começam a chegar –, a se envolver com um movimento de resistência, conspiratório, infiltrado dentro da Abwehr (o serviço de inteligência militar alemão) e liderado por pessoas como seu cunhado, Hans von Dohnányi, e seu irmão Klaus Bonhoeffer. Colabora com a fuga de muitos judeus da Alemanha e chega, inclusive, a participar indiretamente de dois atentados para assassinar Hitler; mas, em 5 de abril de 1943 foi preso com outros conspiradores e, em 9 de abril de 1945, foi enforcado, nu, no campo de concentração de Flossenbürg. Um verdadeiro mártir moderno.
Mas, voltando ao livro Discipulado, que me causou e ainda causa grande impressão a cada releitura que faço (já perdi a conta de quantas vezes o li), é fácil perceber o porquê da radicalidade da obra. Publicado em 1938, em plena vigência do regime nazista, Bonhoeffer sabe exatamente com o que está lidando e como não sucumbir à tamanha barbárie. A apostasia está às portas; muitos pastores aceitaram sujeitar-se a um regime político totalitário – uns por convicção, outros por medo. Mas como ele diz: “todo chamado de Jesus conduz à morte”. Numa Alemanha prestes a ser totalmente destruída por bombas, e diante de milhões de vidas ceifadas injustamente, não há meio-termo. Por isso, ele inicia Discipulado – que após esse primeiro capítulo não para de nos surpreender – com uma das passagens mais impactantes de toda história da literatura cristã, falando sobre a diferença entre a Graça Barata e a Graça Preciosa:
A graça barata é inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa. Graça barata é graça como refugo, perdão malbaratado, consolo malbaratado, sacramento malbaratado; é graça como inesgotável tesouro da Igreja, distribuído diariamente com mãos levianas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça seria justamente que a conta foi liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação. Que seria a graça se não fosse barata? […] A igreja participa da graça [somente] pelo simples fato de ter essa doutrina da graça. Nesta igreja encontra o mundo fácil cobertura para os seus pecados, dos quais não têm remorso e de que não deseja verdadeiramente libertar-se. […] Graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios. A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem a confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
O quão fácil é, para aqueles que são cristãos como eu, nos deixarmos seduzir pela graça barata. Sim, pois tendo-a como favor imerecido de Deus, nos sentimos livres de sermos ao menos exemplos morais para o mundo que nos cerca – antes nos entregamos aos jogos de poder. E veja, caríssimo leitor, exemplos morais não são moralismo; não basta sermos meros repetidores de regras que se aplicam a gregos e troianos, menos a nós. O exemplo moral não é um discurso, é uma conduta. É um desafio de cada dia não sucumbirmos ao disfarce nominal sem transformação real. Em tempos em que colocar “cristão” em perfil de redes sociais se tornou sinal de identificação política – ou seja, da expressão mais reles da graça barata – é sempre bom relembrarmos que Cristo não é de direita ou de esquerda, conservador ou progressista – ainda que consigamos projetar algumas características de nossa visão de mundo (ou preferências políticas) no comportamento de Jesus Cristo – como, inclusive, eu mesmo já fiz em artigo aqui, nesta Gazeta do Povo. Para todos os efeitos, devemos lembrar que o Estado é, sempre, ministro (servo) de Deus para correção, não para bênção (Rm 13:1-7). Portanto, é necessário, imprescindível até, que nos demos conta da admoestação de Bonhoeffer, ao dizer, em sentido contrário, que:
A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o homem arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga suas redes e o segue. A graça preciosa é o Evangelho que se deve procurar sempre de novo, o dom pelo qual se tem que orar, a porta à qual se tem que bater. Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado, e é graça por chamar ao discipulado de Jesus Cristo; é preciosa por custar a vida ao homem, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é, sobretudo, preciosa por ter sido preciosa para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu Filho – “fostes comprados por preço” – e porque não pode ser barato para nós aquilo que custou caro para Deus. A graça é preciosa sobretudo porque Deus não achou que seu Filho fosse preço demasiado caro para pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus. A graça preciosa é a graça como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo, não lançado aos cães; e por isso é graça como palavra viva, a Palavra de Deus que ele próprio pronuncia de acordo com seu beneplácito. Chega até nós como gracioso chamado ao discipulado de Jesus; vem como palavra de perdão ao espírito angustiado e ao coração esmagado. A graça é preciosa por obrigar o indivíduo a sujeitar-se ao jugo do discipulado de Jesus Cristo. As palavras de Jesus: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” são expressão da graça.
A graça de Deus em Jesus é preciosa. Ele não entra pela porta dos fundos; antes bate à porta da frente (Ap 3:20), a porta do nosso coração, e aguarda que abramos e o convidemos a entrar. Se o fizermos, Ele entrará, ceará conosco e, como fez aos discípulos que encontrou no caminho de Emaús (Lc 24:13-35), mudará a nossa vida; então seremos sal da terra e luz do mundo (Mt 5:13-14) para além das transformações político-sociais que desejamos. Que neste Natal convidemos o Cristo para sentar-se à nossa mesa e aprendamos Dele, que é manso e humilde de coração (Mt 11:29); e que nossa fé não seja apenas nominal, política, ou uma máscara para cobrir nossas pretensões imprudentes, mas “o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem” (Hb 11:1).
Feliz Natal!
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