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“[...] Porque nós, os abolicionistas, animados de uma só crença, dirigidos por uma só ideia, formamos uma só família, visamos um sacrifício único, cumprimos um só dever.” (Luiz Gama)
Saber usar bem a internet, sobretudo as redes sociais, pode ser algo muito produtivo e nos trazer bênçãos inesperadas; uma delas são as amizades que temos a possibilidade de construir à distância. Amizade é algo valiosíssimo para mim, e não é exagero dizer que tenho sempre pautado minha concepção de quem são meus amigos na deliciosa construção da amizade entre a Raposa e o Pequeno Príncipe, no clássico de Antoine de Saint-Exupéry. O principezinho, empolgado por ter encontrado o gracioso animal, o convida para brincar, mas ouve uma resposta que o confunde: “Eu não posso brincar contigo – disse a raposa. – Não me cativaram ainda”. E, indagada pelo príncipe sobre o que seria “cativar”, ela completa: “Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu também não tens necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...”
No último fim de semana tive a oportunidade de experimentar essa sensação ao encontrar um grande amigo, com quem converso virtualmente há alguns anos – e cuja amizade se construiu exatamente à maneira exupéryana –, mas que nunca tinha encontrado pessoalmente: Bruno Antunes de Cerqueira. Bruno é presidente do Instituto Cultural Dona Isabel I, a Redentora – entidade que visa a “valorização da civilização brasileira e preservação da memória dos grandes vultos da transição entre o Oitocentos e o Novecentos, em especial de D. Isabel e dos Abolicionistas” – e também autor, em parceria com a historiadora Fátima Argon, do mais completo e monumental estudo sobre D. Isabel e o período do Segundo Reinado, Alegrias e Tristezas – estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil, com quase 900 páginas de pesquisas, análises e preciosidades biográficas.
O domínio historiográfico da esquerda transformou a família imperial nos grandes responsáveis pela escravidão e lhe subtraiu qualquer participação no movimento pela extinção do “elemento servil”
Entusiasta do meu trabalho de resgate das grandes figuras negras de nossa história – muitas delas presentes em artigos meus, aqui, nesta Gazeta do Povo –, Bruno, historiador nato, tem feito um igual esforço para manter viva a chama daquele que foi o movimento social mais importante da história brasileira, o abolicionismo. A pedra fundamental de nossa civilização foi um evento grandioso, uma construção de décadas que envolveu das classes mais altas à população mais pobre e os próprios escravizados, e que se intensificou nos últimos oito anos (de 1880 a 1888), culminando na assinatura da Lei Áurea. Seguiram-se vários dias da mais absoluta catarse. Osvaldo Orico, biógrafo de José do Patrocínio, relata que “os paladinos da abolição não podiam aparecer sem que se improvisasse logo um comício, uma passeata, uma procissão de louvor. Nabuco, ao atravessar distraidamente uma rua, foi carregado em triunfo”. E André Rebouças chamará a Missa Campal, realizada em 17 de maio de 1888, de “um dos mais grandiosos espetáculos que tem visto a humanidade; antevisão do Vale de Josaphat [referência ao local bíblico citado no livro do profeta Joel, 3,2 e 3,12]”.
Considerando-se – e também a mim – um neoabolicionista, Bruno tem procurado, como eu, reconstruir essa época e esse movimento no sentido da produção de um “resgate histórico-cultural enquanto auxiliar dos debates nacionais e ferramenta de cidadania”, ou, como ele diz: “a psicanálise da nação brasileira”. Há muita mistificação e, mais do que isso, mentiras e demonizações em relação a esse período, sobretudo por conta da escravidão e de termos sido o último país das Américas a abolir tal sistema. O domínio historiográfico da esquerda tem, ao longo das últimas décadas, recontado nossa história sob o diapasão da crítica e do ressentimento, ignorando completamente que nossa história (na verdade qualquer história civilizacional), como disse bem Gilberto Freyre, foi construída “sob antagonismos”. Transformaram a família imperial nos grandes responsáveis pela escravidão e lhe subtraíram qualquer participação no movimento pela extinção do “elemento servil”.
Já os abolicionistas – tais como André Rebouças, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Visconde de Taunay – foram relegados a meros coadjuvantes da assinatura da Lei Áurea, e ainda acusados de displicência em relação à situação dos negros no pós-abolição. Mas Joaquim Nabuco mesmo já havia previsto, em seu clássico O Abolicionismo, de 1883: “O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”.
A preocupação dos abolicionistas com o dia seguinte era profunda e real; todos sabiam que era preciso dar encaminhamento à libertação no sentido de inserir aquele grande contingente de pessoas (cerca de 800 mil à época) na sociedade; e André Rebouças, ao construir o seu projeto de Democracia Rural, previa a indenização de ex-escravos mediante a divisão das grandes propriedades (Fazendas Centrais) em pequenas propriedades (Engenhos Centrais), arrendadas pelos ex-escravos e colonos europeus, fomentando a produção em cadeia baseada na liberdade individual e no espírito de associação. E também, como diz Nabuco na citação acima, era fundamental realizar todo um trabalho de reeducação da imaginação moral do brasileiro, a fim de romper com a fossilização da “exuberante vitalidade do nosso povo”. Rebouças, logo após a assinatura da Lei Áurea, não descansou. Em 17 de junho de 1888, registrou em seu Diário que estava “redigindo um projeto de lei para educação, instrução e elevação do nível moral dos libertos”.
No entanto, o golpe republicano de 15 de novembro de 1889 sepultou todo o trabalho da abolição e, pior, iniciou um processo de perseguição e marginalização das pessoas negras, inclusive promovendo iniciativas eugênicas (trato brevemente disso nesse artigo), que fomentou um racismo nunca antes visto no país. Não foi à toa que Joaquim Nabuco, numa carta de 1.º de janeiro de 1893 a seu amigo Rebouças – no exílio desde o golpe –, reclama dos descaminhos da malfadada República:
“Com que gente andamos metidos! Hoje estou convencido de que não havia uma parcela de amor do escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartas partes dos que se diziam abolicionistas. […] A prova é que fizeram esta República e depois dela só advogaram a causa dos bolsistas, dos ladrões da finança, piorando infinitamente a condição dos pobres. É certo que os negros estão morrendo e, pelo alcoolismo, se degradando ainda mais do que quando escravos, porque são hoje livres, isto é, responsáveis, e antes eram puras máquinas, cuja sorte Deus tinha posto em outras mãos (se Deus consentiu na escravidão)”.
O golpe republicano de 15 de novembro de 1889 sepultou todo o trabalho da abolição e, pior, iniciou um processo de perseguição e marginalização das pessoas negras que fomentou um racismo nunca antes visto no país
Em resposta, de 6 de março de 1893, Rebouças rememorou aquele trágico período a seu confrade:
“A 13 de maio de 1889 eu tive uma tristeza inexplicável. Lembra-se que foi necessário telegrama para tirar-me de meu isolamento em Petrópolis... Na tarde de 22 de agosto de 1888, quando voltávamos da faustosa e hipócrita recepção ao imperador [em sua volta da Europa], eu lhe disse ao ouvido: ̔Agora posso dormir tranquilo̕… Pareciam-me que, a todo momento, os escravocratas assassinavam a princesa redentora e cobriam de sangue a página santa que havíamos escrito durante longos oito anos... A 22 de agosto de 1888, ainda esperavam os celerados indenização e Chins [chineses]”.
Por esses e outros motivos, o Segundo Império brasileiro, que os republicanos trataram de difamar de forma absoluta e sistemática, foi completamente demonizado e quase esquecido, e, com ele, toda a imensa e fundamental obra do abolicionismo. No entanto, o neoabolicionismo visa a resgatar essa obra. Como bem diz Bruno de Cerqueira, no site do IDII:
“Rememorar os Trezes de Maio imediatamente posteriores ao de 1888 tem uma função pedagógica, além de historiográfica. Quer significar que o abolicionismo foi muito mais do que um movimento civil de cunho advocatício-parlamentar e ações revolucionárias. Quer significar que ele era um partido, um movimento político que visava tomar o poder no Brasil, para que se pudessem efetivar as mudanças profundas, de base, e se alcançasse aquilo que o próprio movimento chamava de ʻRedenção do Brasilʼ e/ou ʻemancipação dos libertosʼ. Aquilo que o Brasil não conheceu com o III Reinado feminino, de uma princesa devota e consciente, uma mulher voluntariosa, ainda que aparentemente dócil e pouco sagaz, não se pode deixar de lastimar. Não foi pequeno o sentimento de culpa dos chefes maiores do abolicionismo – mormente Rebouças e Nabuco – nos Trezes de Maio seguintes, por se conscientizarem do quanto o movimento, em seu frenesi, não previu com argúcia as artimanhas e ciladas dos diversos inimigos não somente da Coroa, mas dos negros”.
Apesar da escravidão e de todos os problemas dela decorrentes, o século 19, no Brasil, foi extremamente frutífero tanto política – tendo produzido homens de estatura política e intelectual insuperável como José Bonifácio, Antônio Pereira Rebouças, Visconde de Jequitinhonha, Nabuco de Araújo (e seu filho já citado), Rui Barbosa, Visconde de Uruguai e Visconde de Cairu – quanto culturalmente, com grandes intelectuais da estirpe de Francisco de Paula Brito, André Rebouças, Machado de Assis, Tobias Barreto, Sílvio Romero (cujas contradições em relação à raça e à eugenia não superam sua imensa contribuição à filosofia e à literatura), Nísia Floresta, Amália dos Passos Figueiroa e Maria Firmina dos Reis.
Bruno, por meio do IDII, vem lutando para incluir grandes brasileiros negros, como José do Patrocínio e André Rebouças, no panteão dos Heróis e Heroínas da Pátria. Passo importantíssimo para a preservação da memória desses luminares de nossa brasilidade.
Foi também no jantar com Bruno que conheci pessoalmente a professora Teresa Malatian, a maior autoridade na vida e na obra do grande Arlindo Veiga dos Santos (sobre quem já falei aqui), fundador da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista. Arlindo foi um dos mais ativos militantes negros brasileiros de todos os tempos, além de jornalista – responsável pelo jornal A Voz da Raça, da Frente Negra – e um intelectual diferenciado, tendo sido professor de Latim, Inglês, Português, História, Sociologia e Filosofia. Lecionou na Faculdade São Bento e na PUC-SP; foi tradutor de São Tomás de Aquino e escritor de várias obras de filosofia, panfletos políticos e poesia. Malatian escreveu uma excelente introdução a Arlindo Veiga, O Cavaleiro Negro, e a editora Resistência Cultural acaba de republicar uma de suas mais importantes obras políticas, Ideias que marcham no silêncio. Arlindo Veiga, para além de toda difamação que o movimento negro marxista lhe impingiu, foi um dos mais aguerridos neoabolicionistas.
Pois é, caríssimo leitor, a internet pode ser, realmente, fonte de amizades não só profundas, mas gratificantes, instrutivas e propositivas. Viva o neoabolicionismo!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos