“Todo professor, seja qual for sua especialidade, é, antes de tudo, um mestre de humanidade, e, por mais medíocre que seja sua consciência profissional, ele é, queira o não, a testemunha e a garantia, para os que o ouvem, da mais alta exigência”. (Georges Gusdorf)
Por ocasião do Dia dos Professores, comemorado no último dia 15 de outubro, lembrei-me de um texto que escrevi, em 2012 (quando eu mesmo ainda nem era, formalmente, professor, pois isso só ocorreu em 2014), sobre a educação como formação intelectual. Escrevi o texto por ocasião de uma palestra que dei no projeto Ampliando Talentos – iniciativa criada por amigos, que dá oportunidade a jovens oriundos do ensino público, estudarem numa grande escola particular –, sobre a importância de vermos a educação como algo além da mera aquisição de conhecimentos, mas como um processo de formação intelectual e moral.
Para ilustrar minha exposição, fundamentada pela máxima aristotélica, presente na Metafísica, de que todos os seres humanos tendem, naturalmente, ao conhecimento – e que, portanto, recusar-se a conhecer seria negar nossa própria natureza –, assistimos ao filme O Grande Desafio (The Great Debaters), de 2007, dirigido e estrelado por Denzel Washington, que conta a história do professor Melvin B. Tolson, seus alunos do Wiley College e sua célebre equipe de debates – um esporte de guerra, cujas armas são as palavras, segundo Tolson, no filme.
A história se passa na década de 1930, quando um jovem professor de Língua Inglesa, numa pequena faculdade para negros (fundada em 1873, em Marshall, no Texas, por um pastor metodista), decide criar uma equipe de debates – na época, uma das atividades extracurriculares mais atrativas para os alunos. Tolson, um homem de inteligência singular, leva sua equipe não só a vencer a barreira racial da época – tornando-se a primeira a travar um debate “inter-racial” –, mas, em 1935, vence a campeã, a Universidade do Sul da Califórnia, permanecendo invicta por longos dez anos! Sem contar que, em 1933, venceram a equipe de debates da britânica Universidade de Oxford, que excursionava pelos Estados Unidos.
A receita era simples: 1) seus debatedores estudavam lógica com afinco – principalmente as falácias, e 2) debatiam com o próprio Tolson, por um ano, antes de encontrarem seu oponente. O filme transmite muito bem a atmosfera intelectual vivida pela equipe de Tolson e, apesar de limitar os temas dos debates a causas sociais – a fim de enfatizar a questão racial –, conseguimos perceber não só o imenso trabalho de pesquisa que era realizado por aqueles jovens, seu elevadíssimo nível intelectual, bem como a consciência moral que aquilo lhes dava num país em que os negros eram considerados inferiores e sequer podiam frequentar os mesmos espaços que os brancos. Tudo isso só foi possível porque um homem compreendeu a natureza sagrada de sua vocação e o papel transformador de sua atividade docente. Neste artigo, em homenagem a todos os professores que, igualmente, compreendem a importância vital de seu trabalho, quero destacar quem foi esse homem.
Melvin Barnabus Tolson nasceu em 6 de fevereiro de 1898, na cidade de Moberly, no Missouri, centro-oeste americano. Filho de Alonzo Tolson, um pastor metodista e membro ativo do Partido Republicano, e da costureira, descendente de indígenas, Lera Hurt Tolson. Reverendo Tolson era um homem cultíssimo, e apesar de não ter recebido educação formal, fez inúmeros cursos por correspondência e lia em grego, hebraico e latim. De acordo com Melvin, o mais velho de quatro irmãos, seu pai era um “rato de biblioteca” (bookworm) – como ele se tornaria posteriormente – e sua mãe era extremamente imaginativa e cantava muito bem; inclusive, a família tinha seu próprio grupo musical: Melvin tocava bandolim; Yutha, violino; Helen, piano; e Rupert, bateria. Todos cantavam.
Melvin e seu pai adoravam pescar, e o jovem ouvia, maravilhado, as reflexões do reverendo a respeito de Platão e Aristóteles – embora tenha frustrado suas expectativas quando decidiu não seguir a carreira ministerial que vinha desde seu bisavô. Seus pais, que tinham um casamento muito feliz e bem-sucedido, influenciaram profundamente sua vida intelectual. Desde pequeno era muito estudioso e sonhava em ser médico; mas também adorava pintar, e aos dez anos pintava quadros, os emoldurava e vendia. Com um amigo, tinha sua própria cabana de shows: ele pintava os cenários, o amigo construía bonecos articulados, versificava textos e eles apresentavam peças teatrais. Certa feita, seu talento foi reconhecido por um estranho, que prometeu o levar a Paris. Mas sua mãe tratou de dissuadi-lo da ideia, ao ver a figura pernóstica que aguardava à porta para convencê-la da aventura. Nunca mais pintou, mas recebeu o chamado das musas e passou a escrever versos, tornando-se, futuramente, um grande poeta – comparado a gênios como Ezra Pound e T. S. Eliot, dada a extrema inventividade de sua poesia. Também gozou da amizade e influência dos grandes W. H. Auden e Robert Frost.
Foi nessa época que a Tolson se aproximou da sra. George Markwell, uma mulher branca, amiga de sua família, que disponibilizou sua biblioteca para que ele lesse tudo o que quisesse. E foi lá que Tolson viveu sua primeira experiência de racismo. A filha da sra. Markwell disse-lhe, um dia, que o único negro digno era Booker T. Washington, mas isso porque ele era mestiço (half white); e seria ainda mais digno se fosse totalmente branco. Melvin correu à sra. Markwell e perguntou se aquilo era verdade. A mulher nada respondeu. Colocou em suas mãos o livro História da Revolução Francesa, de Thomas Carlyle, pediu que olhasse as ilustrações e descobrisse a resposta por si mesmo. Folheando o livro, o jovem Tolson se deparou com a figura imponente de Toussaint Louverture, o líder negro da Revolução Haitiana, napoleonicamente montado em seu cavalo branco. E essa foi uma lição que Melvin Tolson jamais esqueceu, e o “orgulho negro” contra o racismo (e a inferiorização dos negros) passou a ser tema recorrente de sua poesia e palestras durante toda sua vida. E foi esse orgulho que, ao longo de sua carreira na docência, Tolson transmitiu a seus alunos. É famosa a sua frase: “alguém menos inteligente que eu, não pode ofender-me; alguém mais inteligente, não quererá fazê-lo”. E as palavras de encorajamento que os debatedores de Tolson utilizam no filme, traduzem com precisão esse senso de capacidade e intrepidez tão necessária em momentos de adversidade:
– Quem é o juiz?
– O juiz é Deus.
– Por que é Deus?
– Porque é Ele quem decide quem ganha e quem perde, não meus adversários.
– E quem são seus adversários?
– Não existem.
– Por que não existem?
– Porque eles são apenas a voz dissidente da verdade que eu falo.
Quando o próprio Tolson chegou à Lincoln University, em 1920, como aluno, destacou-se em diversas atividades: ganhou prêmios em debates, concursos de comunicação oral, teatro, apresentações de literatura clássica e ainda foi capitão do time de futebol americano. Ao longo de sua vida profissional escreveu poesia, peças de teatro, artigos para jornais, romances, e tornou célebres alguns de seus melhores debatedores, como James Farmer Jr. – filho do famoso teólogo, professor e escritor James L. Farmer, intelectual virtuoso de sua época –, que viria a se tornar um dos principais ativistas pelos Direitos Civis, ao lado de Martin Luther King Jr; Frederick Douglass Weaver, neto do famoso abolicionista Frederick Douglass; e Thomas Cole, o primeiro negro a formar-se doutor na Universidade do Texas – e, posteriormente, se tornar reitor do Wiley College.
Vale lembrar, estimado leitor, que estou falando de um mundo em que cotas raciais não eram sequer um sonho (só passariam a existir 30 anos depois). As leis Jim Crow, que segregavam negros e brancos em praticamente todos os lugares, estavam em pleno vigor e rigor, e muitos negros eram sumariamente linchados e enforcados pela Ku Klux Klan. Eram tempos extremamente hostis para qualquer negro, pobre ou rico, intelectual ou não – e o filme retrata muito bem isso, e também a importância da fortaleza para toda uma população marginalizada. No entanto, curiosamente, estamos falando de negros intelectuais e universidades.
As preocupações com as injustiças sociais da época, levaram Tolson a se envolver com movimentos de trabalhadores e ouvir o canto da sereia do socialismo. Foi acusado de ser comunista e perseguido muitas vezes. No entanto, penso que seu grande apreço pelo mérito na questão intelectual e acadêmica, não nos deixa enquadrá-lo como um socialista em sentido estrito. Ou mesmo sua poesia, considerada bastante sofisticada para os padrões da arte engajada.
Melvin Tolson encarnou perfeitamente as características de um professor-educador, aquele que não só transmite conhecimentos, mas também virtudes a seus alunos. Seus cursos eram muito disputados, e era uma espécie de mandamento que todos os alunos deveriam fazer pelo menos uma de suas disciplinas. Ele os estimulava a serem cada vez melhores, e condenava veementemente a mediocridade. Dele disse o eminente poeta Langston Hughes, um dos principais nomes do movimento Harlem Renaissance – celebrado e estudado por Tolson em sua tese de mestrado (The Harlem Group of Negro Writers):
“Melvin Tolson é o mais famoso professor negro do sudeste. Estudantes de todo o mundo falam dele, o reverenciam, se lembram dele e o amam. Ele é um personagem. Certa vez, sua equipe de debates venceu a equipe da britânica Oxford. É um orador excepcional; ensina inglês na Wiley College, em Marshall, Texas, mas é conhecido em toda parte. É um poeta de habilidade inegável, e seu livro de poemas, “Rendezvous With America”, é uma contribuição recente para a literatura americana. Mas Melvin Tolson não é intelectual [no sentido pedante do termo]. Crianças dos campos de algodão gostam dele. Os boiadeiros o entendem. Ele é um grande professor, do tipo que qualquer faculdade pode se orgulhar… E não encontrei qualidades como as suas em nenhum outro lugar a não ser no grande estado do Texas – pois só há um Tolson!” (Here to Yonder, Chicago Defender, 1945)
Na verdade, o que Tolson fez por seus pupilos (eis o sentido da palavra latina alumnus), foi aquilo que outro grande educador – este, brasileiro mas também negro –, Dr. Ernesto Carneiro Ribeiro, fez e pregou: educou não só pela enorme capacidade intelectual e habilidade didática, mas pelo exemplo. É isso faz da docência a vocação das vocações.
Doutor Carneiro Ribeiro, sobre quem há uma aula inteira em meu curso “O Brasil é um país racista?”, foi um verdadeiro mestre de virtudes. Como Tolson, desejou na infância ser médico; ao contrário de Tolson, formou-se em medicina, mas a voz da docência também falou mais alto. Tornou-se um dos mais célebres professores do final do século 19 e início do século 20, na Bahia, tendo sido mestre de vultos como Rui Barbosa, Euclides da Cunha, Clóvis Beviláqua, Castro Alves, Hermes Lima, dentre muitos outros. Lecionou por 63 anos um número invejável de disciplinas – Latim, Língua Portuguesa, Língua Francesa, Língua Inglesa, Botânica, História Natural, História do Brasil, Literatura, Filosofia e Zoologia. Segundo ele a educação “[…] compreende tudo o que esclarece o entendimento, corrige e tempera, tonifica a vontade, ameniza e purifica os sentimentos, cultiva e aprimora o gosto e forma as maneiras e os hábitos”; e não há, nesse sentido, educação sem instrução [moral], pois a cultura moral é a “fonte límpida dos costumes, onde se avigora e consolida o caráter e se santificam os sentimentos”. Ainda segundo Carneiro Ribeiro:
“É preceito de sã pedagogia que o mestre ou educador, como representante do dever, incumbe envidar todos os esforços por se não mostrar a seus discípulos defeituoso modelo: se não tiver uma vida pura e ilibada, se todos os seus atos forem despidos daqueles predicados morais, únicos que podem atrair à sua pessoa a estima e o respeito; se como homem público e homem particular, como cidadão dum país livre, carecer daqueles quilates e primores que constituem o varão probo, vir probus; se como pai de família não for tido em conta de bom padrão de virtudes públicas e particulares, animando, em vez disso, a desordem no próprio lar, a incorreção, o desrespeito, o despudor e, muitas vezes, a dissolução, o desbragamento dos costumes e as mais flagrantes infrações da honestidade e do dever, como poderá ser mestre?” (Da educação em suas relações com a moral)
Ou seja, o professor é, antes de tudo, um exemplo de vida – assim como foram Melvin B. Tolson e Ernesto Carneiro Ribeiro.
Parabéns a todos aqueles que veem em sua atividade docente o verdadeiro sacerdócio da instrução e do saber!