“Há dois pulmões da vida política universal: a esquerda e a direita. Mesmo se em formas que evoluem, que são difíceis de definir. […] não gostaria que resultasse do que eu digo que para mim há um único jeito de fazer política, ou seja, ser de direita.” (Andrei Pleşu, filósofo romeno)
Não é novidade para ninguém que a internet se alimenta de radicalismo. Também não é novidade para ninguém que a maioria das pessoas, sobretudo quando o assunto é política – ou melhor, ideologia –, gosta de ver suas posições confirmadas por pessoas influentes no debate público; ou seja, não seguem alguém porque gostam do modo como a pessoa pensa ou admiram sua visão de mundo e a consideram relevante, mas única e exclusivamente porque gostam de ver reverberar nelas suas próprias convicções e, numa relação quase obsessiva, passam a tentar controlar o que a pessoa pensa, diz e faz. Dessa maneira, qualquer atitude que contrarie essa expectativa é tratada como traição.
Por outro lado, essa é uma fórmula excelente para quem deseja aumentar o seu engajamento na internet, para quem deseja crescer – e lucrar – com as ideias que compartilha. Ser o arauto de uma causa, o porta-voz de uma ideia que tenha apelo popular, ou mesmo ser inserido no círculo íntimo de um grupo de influência, aumenta e muito a possibilidade de transformar isso num negócio extremamente rentável. Como eu disse num artigo de 21 de janeiro de 2019 – aqui, nesta Gazeta do Povo –, analisando um instigante ensaio de C.S. Lewis, “as panelinhas, quando ligadas a instituições de poder, são ainda mais desejadas, pois, caso façamos parte delas, também passamos a ser agentes de sua influência; nossa voz terá um ʻpesoʼ; o que dissermos será endossado pelo grupo e valerá muito mais do que uma opinião isolada”. Isso é extremamente sedutor no contexto da internet, onde o alcance é global e sua voz pode alcançar milhares – se não milhões – de pessoas.
Eis o calcanhar de Aquiles do influencer – de política, especialmente – e de todo aquele que passa a depender da internet para que suas ideias e seu negócio sejam lucrativos. Na medida em que a profusão de cliques, likes e cifrões aumenta, a liberdade e a independência diminuem. É como, fazendo uma correspondência com o mundo off-line, de uma realidade que conheço bem, aquelas igrejas evangélicas que, para manter a frequência dos fiéis e o volume de doações – das quais dependem não somente a manutenção da comunidade, mas também da vida do pastor –, os sermões tornam-se extremamente apelativos e passam a dizer somente o que os fiéis querem ouvir, não o que deve ser dito.
Na medida em que a profusão de cliques, likes e cifrões aumenta, a liberdade e a independência diminuem
Fórmulas de lançamento, títulos apelativos, palavras de ordem, promessas messiânicas e um crescendo de polêmicas e sinalizações de virtude... tudo para que, na hora que a gente – e nisso me incluo, como um professor que comercializa cursos on-line – abre o carrinho, as pessoas sintam que a salvação de suas almas dependesse daquilo, como se ela não estivesse comprando, na maior parte das vezes, somente um conjunto de opiniões mal-pesquisadas que apelam ao coração, mas o Santo Graal que irá salvar a civilização. Não importa o que você vende, mas como vende. Nesse caso, a regra é clara: quem lacra lucra.
Entretanto, como eu disse, isso tem um custo: a total submissão ao seu público. E tal prisão mostra suas grades nas redes sociais, nos perfis de influenciadores e empresas que fizeram do monopólio da virtude o seu nicho, da manipulação de emoções intestinas sua fonte de renda, da ignorância o sustento de sua esperteza. Dou um exemplo: recentemente, a empresa de mídia de direita Brasil Paralelo começou a divulgar o seu novo produto, uma série de entrevistas com o intuito de refletir a respeito da direita no Brasil. Para isso, reuniu uma série de pessoas e políticos – não que políticos não sejam pessoas, mas... –, dentre os quais alguns que julgo, inclusive, terem sido os principais responsáveis pela morte da nova direita ainda no ventre; algo como fazer um documentário sobre galinhas e convidar os lobos para dar opinião. Enfim...
O problema é que convidaram um anátema para uma das entrevistas: Joel Pinheiro da Fonseca. Para o público que a Brasil Paralelo fidelizou nos últimos anos, o convite significou um verdadeiro absurdo, quando não uma traição. Vejam alguns comentários (sem edição ou correções) que este escriba coletou no perfil da empresa no Instagram: “Sério o Joel Pinheiro?? Ele fazia ginástica mental defendendo a esquerda na JP, ofendia minha inteligência. Perdeu minha audiência, nem na BP estamos livres da esquerda. Não vou assistir e espero que outros sigam o exemplo”; “Joel Pinheiro nem direita é”; “Infelizmente a BP está descendo o nível hein”; “Não sei o que o Joel Pinheiro faz aí, só para desqualificar o elenco”; “Joel? Piada né?”; “Joel Pinheiro? Ele é esquerdista roxo, fez o L... não entendi”; “Joel Pinheiro????? Que merda é essa? PQP! A direita brasileira não é levada a sério, pq não se leva a sério!” Esses são só alguns dos muitos comentários nos quais o público da Brasil Paralelo fez questão de manifestar o seu descontentamento por verem como convidado alguém que eles consideram indigno de fazer parte do elenco de uma produção da empresa. Ou seja, não podem sequer ouvir alguém cujas ideias não se alinham totalmente com que consideram a verdade absoluta. Só aceitam conteúdos de direita “puro sangue” – seja lá o que isso signifique.
Óbvio que esse é o resultado do que a própria Brasil Paralelo – e muitos influenciadores, à direita e à esquerda – fomentou para ter um público fiel. Óbvio que, quando o assunto é política – ou melhor, ideologia –, só é possível manter o engajamento na internet à base do monopólio da virtude e da demonização absoluta de seu adversário. Não por outra razão que, à direita, o bolsonarismo é (pelo menos ainda) a fonte do lucro de muita gente – inclusive da Brasil Paralelo. Por isso, para a Brasil Paralelo – e para muita gente – é praticamente impossível ter uma postura independente, democrática, que compreenda que a existência do outro é, inclusive, um elemento fundamental na manutenção de nossas convicções e na construção de uma posição firme, mas humilde, não totalitária, de nossa visão de mundo.
Quando Russell Kirk, em seu indispensável A política da prudência, citando um jornalista conservador, diz que “o ʻmovimentoʼ conservador parece ter criado uma nova geração de inflexíveis ideólogos”, e que o conservadorismo poderia ser considerado uma ideologia “somente se, junto com Humpty Dumpty, arrogarmo-nos a prerrogativa de forçar as palavras a significar o que quer que desejemos que signifiquem, de modo que a questão ʻé saber quem é que vai mandar – só issoʼ”, o que ele quer dizer é que, sim, é possível que o conservadorismo se torne uma ideologia, e que para escaparmos disso é necessário ter consciência de que “o que precisamos transmitir é prudência política, não beligerância política. A ideologia é a doença, não a cura. Todas as ideologias, incluindo a ideologia da vox populi vox Dei, são hostis à permanência da ordem, da liberdade e da justiça. A ideologia é a política da irracionalidade apaixonada”.
Mas isso não dá view, não dá like e não dá lucro. Pensar, como o filósofo conservador Andrei Pleşu, em complemento à frase que está em epígrafe, que “a esquerda é uma posição política honrada”, ou que “[…] a ideia do conflito irredutível, creio que não seja útil. Tanto eles quanto nós precisamos fazer uma dieta de desintoxicação. Há homens intoxicados, envenenados pelo ressentimento anticomunista deles, de outro modo legítimo”, não é algo popular onde a polarização é regra – de negócio, inclusive. Mas só pode assumir essa postura quem estiver disposto a sacrificar sua “relevância” – e sua conta bancária – em nome da verdade.
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