“Não é de sabedoria livresca que a juventude precisa, nem instrução sobre isto ou aquilo. Precisa, sim, de um endurecimento das vértebras, para poder mostrar-se altivo no exercício de um cargo; para atuar com diligência, para dar conta do recado; para, em suma, levar uma mensagem a Garcia.” (Elbert Hubbard, Uma Mensagem a Garcia)
Quando eu ainda cursava o Ensino Fundamental II (antigo Ginásio), trabalhei ajudando meu saudosíssimo pai em seu modesto, mas muito organizado escritório de advocacia – bons tempos em que os adolescentes tinham autonomia para trabalhar sem a tutela do Estado. Na época, eu chegava da escola, almoçava e ia para seu escritório pegar o envelope com o serviço do dia: protocolar petições no fórum, tirar certidões em prefeituras, levar documentos aos clientes etc.. Tudo aquilo que um bom office boy fazia. Foi uma época muito boa, de muito aprendizado ainda em tenra idade.
Um dos maiores ganhos desse período foi a possibilidade aprender a ir para todo canto e conhecer muito bem a cidade de São Paulo nos bancos do transporte coletivo; e o fiz de uma maneira um tanto peculiar para os tempos atuais – em que o Google e o Waze resolvem quase todos os nossos problemas de trajeto e de tráfego –, mas muito comum à época: Meu pai dizia: “tem de ir ao fórum da Lapa”. Eu perguntava: “como faz pra ir?”. E ele: “não sei, só sei ir de carro”; e emendava: “Tem de ser igual o Mensagem a Garcia”, lembrando-me da história que sempre me contava desde pequeno. Então eu me imbuía da determinação necessária para cumprir a tarefa a mim atribuída e saía à caça do destino, perguntando nos pontos e nos ônibus ao melhor estilo “quem tem boca vai a Roma”; e sempre chegava ao destino.
Uma mensagem a Garcia é uma história sobre assumir compromissos e cumpri-los no matter what
Uma mensagem a Garcia é um artigo escrito e publicado pelo filósofo e jornalista Elbert Green Hubbard, inicialmente em seu jornal The Phillistine, em 1899, dramatizando (e fantasiando) um evento real: a missão dada ao tenente Andrew S. Rowan, durante a Guerra Hispano-Americana, para que este levasse uma mensagem ao general Calixto Garcia, líder das forças rebeldes cubanas. O mote da história é dado pelo próprio autor na introdução: “A ideia original, entretanto, veio-me de um pequeno argumento ventilado pelo meu filho Bert, ao tomarmos café, quando ele procurou sustentar ter sido Rowan o verdadeiro herói da Guerra de Cuba. Rowan pôs-se a caminho só e deu conta do recado – levou a mensagem a Garcia. Qual centelha luminosa, a ideia assenhoreou-se de minha mente. É verdade, disse comigo mesmo, o rapaz tem toda a razão, o herói é aquele que dá conta do recado – que leva a mensagem a Garcia”. Ou seja, é uma história sobre assumir compromissos e cumpri-los no matter what. Não importa quais desafios se irá enfrentar, quais dificuldades deverão ser superadas, é imperioso fazer o que lhe foi designado para fazer; é preciso entregar a mensagem a Garcia. O autor, já no decorrer da história, diz:
“A nenhum homem que se tenha empenhado em levar avante uma empresa, em que a ajuda de muitos se torne precisa, têm sido poupados momentos de verdadeiro desespero ante a imbecilidade de grande número de homens, ante a inabilidade ou falta de disposição de concentrar a mente numa determinada coisa e fazê-la. Assistência irregular, desatenção tola, indiferença irritante e trabalho mal feito parecem ser a regra geral. Nenhum homem pode ser verdadeiramente bem sucedido, salvo se lançar mão de todos os meios ao seu alcance, quer da forma, quer do suborno, para obrigar outros homens a ajudá-lo, a não ser que Deus Onipotente, na sua grande misericórdia, faça um milagre enviando-lhe como auxiliar um anjo de luz.”
Quando meu pai me entregava o envelope com os documentos e pedia para eu agir como o tenente Rowan – nome que vim a descobrir muitos anos depois, já adulto, ao receber dele o livreto da história, datado, com sua assinatura, de 1953 –, eu sabia exatamente o que deveria fazer. Uma curiosidade: meu pai nasceu em 1940; isso significa que aos 13 anos ele já conhecia a história, cujo livreto recebera no Sesc, seu primeiro emprego. O livreto permanece comigo, como uma relíquia, uma herança incalculável e uma doce lembrança do meu velho, falecido em 2012.
A história fez um enorme sucesso no mundo corporativo; as empresas imprimiam-na e entregavam aos funcionários como um texto motivacional. Foi traduzido para vários idiomas e praticamente todo mundo da minha geração ou anterior já ouviu falar dela. E apesar de ser, em grande medida, uma invenção do autor baseada em fatos reais, seu apelo é mesmo inspirador:
“Todas as minhas simpatias pertencem ao homem que trabalha conscienciosamente, quer o patrão esteja, quer não. E o homem que, ao lhe ser confiada uma carta para Garcia, tranquilamente toma a missiva, sem fazer perguntas idiotas, e sem a intenção oculta de jogá-la na primeira sarjeta que encontrar, ou praticar qualquer outro feito que não seja entregá-la ao destinatário, esse homem nunca fica ‘encostado’ nem tem que se declarar em greve para forçar um aumento de ordenado. A civilização busca ansiosa, insistentemente, homens nestas condições. Tudo que um tal homem pedir, se-lhe-á de conceder. Precisa-se dele em cada cidade, em cada vila, em cada lugarejo, em cada escritório, em cada oficina, em cada loja, fábrica ou venda. O grito do mundo inteiro praticamente se resume nisso: Precisa-se, e precisa-se com urgência de um homem capaz de levar uma mensagem a Garcia.”
Atualmente, após o vento marxista ter soprado nos quatro cantos do mundo e penetrado no imaginário do senso comum, muitos se ressentem da historieta e sua mensagem perdeu o apelo. “Empenhar-me em trabalhar para aqueles me exploram, nem pensar!”, muitos dizem atualmente. Mas creio que, no aspecto da vida individual e social, a história permanece poderosa. O autor diz querer “lançar uma palavra de simpatia ao homem que imprime êxito a um empreendimento, ao homem que, a despeito de uma porção de empecilhos, sabe dirigir e coordenar os esforços de outros e que, após o triunfo, talvez verifique que nada ganhou; nada, salvo a sua mera subsistência”. Serviu ontem, serve hoje, afinal de contas, parafraseando a epígrafe deste artigo, citando o mesmo autor, pessoas que dão conta do recado, que fazem a diferença, são cada vez mais raras.
Não importa quais desafios se irá enfrentar, quais dificuldades deverão ser superadas, é imperioso fazer o que lhe foi designado para fazer
Agora, o leitor atento (e cinéfilo) deve ter percebido a relação entre a história do tenente Rowan e dos cabos Schofield e Blake, vividos, respectivamente, por George MacKay e Dean-Charles Chapman no filmaço 1917, que estreou recentemente no Netflix. Quando vi o filme pela primeira vez, em 2020, até fiz uma postagem no Twitter mencionando essa relação. Ao revê-lo recentemente, decidi compartilhar essa reflexão com meus leitores nesta Gazeta do Povo.
O filme se passa na Primeira Guerra Mundial e tem praticamente o mesmo argumento da historieta de Elbert Hubbard: um pelotão do exército britânico – o 2.º Batalhão do Regimento de Devonshire – se preparava para atacar o exército alemão, numa região do Norte da França, pensando que os alemães tivessem recuado. Porém, uma sondagem aérea verificou que o recuo do exército alemão era estratégico e este estava pronto para um ataque surpresa assim que os britânicos avançassem, o que causaria a morte de pelo menos 1,6 mil homens. Com a comunicação interrompida, os dois cabos são designados para atravessar a terra de ninguém, alcançar as trincheiras alemãs abandonadas até chegar ao pelotão britânico e entregar uma mensagem em mãos ao coronel Mackenzie (vivido por Benedict Cumberbatch), comandante do batalhão, cancelando o ataque.
O filme, magistralmente dirigido por Sam Mendes e engenhosamente filmado como se fossem dois grandes planos-sequência, acompanha os dois cabos em sua aventura de tirar o fôlego e vale cada segundo.
Agora, me peguei também a pensar: quem, na geração atual, está disposto a levar uma mensagem a Garcia?
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