Ouça este conteúdo
“Questões raciais no século 21 são parte de uma guerra moral e espiritual por recursos, poder, almas e sensibilidades.” (Cornel West)
O escritor, poeta, literato, filósofo e teólogo leigo Clive Staples Lewis – o genial C.S. Lewis –, autor de minha total predileção, não cansa de me ensinar. Recentemente, por uma ocasião totalmente aleatória, lembrei-me de uma de suas obras mais marcantes: A anatomia de um luto.
Nessa obra, Lewis, que já havia escrito um excelente tratado sobre o sofrimento, O problema da dor, mergulha em sua tragédia pessoal, a morte repentina, por um câncer nos ossos, de Joy Davidman, escritora americana com quem se casara havia pouco mais de três anos. O relacionamento com Joy começou por correspondência; ela, que havia acabado de deixar o ateísmo, se interessou pelas reflexões cristãs de Lewis e tomou a iniciativa de entrar em contato, viajando depois para a Inglaterra para conhecê-lo. Após uma segunda viagem e uma longa estadia de Joy, com seus filhos, Lewis – convencido de que, àquela altura, aos 57 anos, não mais se casaria – aceita casar-se com ela (que acabara de se divorciar) por mera formalidade, para que Joy pudesse permanecer no Reino Unido e trabalhar. O casamento ocorreu em 23 de abril de 1956. Porém, no mesmo ano, Joy descobriu o câncer que a levaria à morte em 13 de julho de 1960.
A doença de Joy “virou a cabeça” de Lewis, pois aquele que era um casamento de conveniência se transformou numa paixão profunda. Consequentemente, sua perda repentina levou Lewis a uma seríssima crise, da qual brotou uma das obras mais pungentes da literatura do século 20. A anatomia de um luto é uma reflexão sobre o sofrimento a partir de seu próprio luto; por isso, é visceral e amarga, em que estranhamos algumas coisas ditas por aquele que havia escrito que “Deus nos sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossas dores: esse é seu megafone para despertar um mundo surdo”.
Transformar tudo em racismo é transformar o racismo em nada
Lewis inicia dizendo: “Nunca me disseram que o luto se parecia tanto com o medo. Não estou com medo, mas a sensação é como estar com medo. A mesma agitação no estômago, a mesma inquietação, o bocejo. Eu continuo com a garganta seca”. E, num determinado momento, já está dizendo: “Sem dúvida, é muito fácil dizer que Deus parece ausente em nossas maiores necessidades porque ele está ausente – não existente. Mas por que, então, ele parece tão presente quando, para ser muito franco, não o chamamos?” E, mais à frente, afirma: “Que razão temos, exceto nossos próprios desejos desesperados, para acreditar que Deus é, por qualquer padrão que possamos conceber, ʻbomʼ? Todas as evidências prima facie não sugerem exatamente o oposto? O que devemos contrapor a isso?”
No entanto, após desfilar esse longo rosário de mágoas, no terceiro capítulo, ele escreve: “Sentimentos, e sentimentos, e sentimentos. Deixe-me tentar um pensamento em vez disso”. E dá uma verdadeira e genial guinada em suas reflexões, a fim de compreender não apenas o que ele estava sentindo – dizendo, por exemplo, “se minha casa desabou com um golpe, é porque era um castelo de cartas” –, como para compreender de que modo o luto deve ser enfrentado conscientemente, e como os sentimentos, que são enganosos, devem, aos poucos, ser substituídos pela razão, a fim de não sermos tentados a cometer injustiças em nome da autojustificação.
E é exatamente aqui que a história de Lewis se encontra com nosso tema principal, pois o caro leitor, provavelmente, já estava se perguntando o que C.S. Lewis tem a ver com o racismo. Em tese, nada, mas lembrei-me particularmente dessa obra ao me deparar com o último escândalo racial que viveu o nosso país: a apresentadora Talitha Morete, do programa É de Casa, da TV Globo, foi acusada de racismo estrutural por solicitar à Dona Silene – convidada do programa para ensinar a receita de suas deliciosas cocadas – que servisse a cocada aos outros convidados. Nessa hora, o outro apresentador do programa, Manoel Soares, que é negro, se levantou e assumiu o serviço – e deu margem à interpretação de racismo no caso.
A internet, caixa de ressonância da estupidez estrutural e sentimentalismo de todo um povo, não demorou não só para acusar a apresentadora de racismo, como para iniciar aquele famigerado processo de assassinato de reputação da moça. Notícias estapafúrdias como “Web vê racismo em apresentadora do É de Casa”, e a manifestação de subcelebridades do racismo no país, levaram o caso àquele tom característico de catástrofe e histeria que se tornou comum na internet brasileira. Ninguém ousou deixar o clima de opinião, os “sentimentos, e sentimentos, e sentimentos”, para pensar um pouco no que esse caso tem de pedagógico – e não é propriamente o racismo, pois transformar tudo em racismo é transformar o racismo em nada.
É evidente que a apresentadora não foi racista, isso todo mundo sabe; quem disse o contrário o fez ou porque o seu próprio sucesso depende disso ou porque já está tão convencido de que o racismo no Brasil é estrutural – ainda que não tenha parado um minuto para estudar seriamente o conceito – que não vê a possibilidade de ser outra coisa. E nessa situação, nem as desculpas humilhantes da apresentadora foram suficientes para botar as coisas de novo em seu curso normal, pois tal perspectiva só funciona na desconfiança absoluta – caso contrário, como denunciar e personalizar um racismo que é abstrato, impessoal e, sobretudo, inconsciente? O acusado deve ser julgado não pelo suposto crime que tenha cometido, mas pelo que “a web” e seus mais notórios disseminadores de ódio determinaram.
Mas creio que há uma reflexão importante a ser feita nesse caso. Ainda que Talitha Morete não tenha sido, de fato, racista por querer que a dona da cocada fizesse as “honras da casa” e servisse sua iguaria aos demais convidados, o que talvez esteja em jogo aqui é uma sensibilidade para o serviço que não é algo fácil para quem está em evidência, para quem se encontra numa posição de destaque. E aqui peço licença ao querido leitor para valer-me de minha religião – e da própria apresentadora, segundo ela mesma afirmou numa entrevista – para evidenciar o que digo.
Jesus Cristo, ainda que para muitos tenha sido somente um mestre moral, estabelece um padrão exemplar quando diz, no Evangelho de Mateus: “Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Pelo contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mateus 20,25-28, grifo meu). A ordem de valores é clara: a verdadeira grandeza está em servir, não em ser servido. Quem deseja ser grande deve submeter-se ao outro, ao próximo, pois essa grandeza não é material, nem mesmo emocional: é espiritual, assim como sua satisfação. E, óbvio, o exemplo educa e enobrece.
Ainda que a Talitha Morete não tenha sido, de fato, racista, o que talvez esteja em jogo aqui é uma sensibilidade para o serviço que não é algo fácil para quem está em evidência, para quem se encontra numa posição de destaque
Imagine se, naquela cena, a apresentadora simplesmente tivesse dito: “obrigado por suas maravilhosas cocadas, e quero aqui agradecê-la e servi-la por nos dedicar um pouco do seu precioso tempo e seu grande talento para nos presentear com essa deliciosa receita”. É evidente que isso não teria a repercussão que o revés teve, mas seria um exemplo superlativo de senso de serviço, de virtude cristã. E é curioso, pois ela se dizer católica e que está “sempre buscando essa conexão com ele [Deus] no meu dia a dia”, não significa que esteja buscando ser como Ele (1 Coríntios 11,1). Essa conexão me parece ser somente instrumental, não de vida, de consciência. Por isso Talitha nem sequer percebeu o que estava fazendo, ao perceber que “as honras da casa” quem faz é o anfitrião.
O teólogo e mártir Dietrich Bonhoeffer, um de meus mestres, diz, em seu excepcional Vida em comunhão: “Quem, alguma vez em sua vida, experimentou a misericórdia de Deus dali por diante só desejará servir. O soberbo trono de juiz já não o atrai. Prefere ficar embaixo, junto com os miseráveis e os pequenos, pois foi lá que Deus o encontrou”. Mas essa atitude não é tão simples quanto parece. O mundo de privatização, pluralização e secularização que vivemos praticamente não nos deixa espaço a não ser para a satisfação de nossas próprias necessidades, para sermos servidos a todo instante. Mas fica aqui o registro e a reflexão para que nós também não sejamos pegos em nossa própria soberba, como, certamente, os acusadores de Talitha Morete serão, pois “da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem também será usada para medir vocês.” (Mateus 7,2).
Não quero dizer que a atitude de Talitha não tenha um fundo de preconceito pela posição de subalternidade da Dona Silene – já tratei disso em outras ocasiões, inclusive aqui, nesta Gazeta do Povo –, mas que não há como objetivar essa atitude sem que a própria apresentadora tenha afirmado ou mesmo reincidido em atitude similar. Na ocasião, ela me pareceu muito grata pelo trabalho honrado e talentoso da doceira, o que, inclusive, a levou a convidá-la para o programa. Portanto, uma compreensão mais ampla, voltada para o atual e raríssimo senso de serviço, me parece mais honesta. Agora, que cada um examine e si mesmo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos