“Inteligência, e um cruzado de direita / Será temido, e também respeitado / Um preto digno, e não um negro limitado.” (Racionais MCs)
Semana passada uma daquelas cenas virais correu a internet: o vídeo de um homem negro que, num posto de gasolina em Mogi das Cruzes (SP), ao ser chamado de “macaco”, partiu para cima de seu ofensor e deu-lhe umas bordoadas. Ao ver a cena, lembrei-me de todas as vezes que fui chamado desse nome e da vez em que meu filho, aos 8 anos, foi xingado por um coleguinha de sala de aula e chegou em casa contando o ocorrido. Senti-me vingado e, compartilhando a cena em meu Twitter, escrevi: “lei antirracismo aplicada com sucesso”.
A piada é dupla: primeiro, porque a Lei 7.716/89, sancionada há mais de 30 anos, rarissimamente condenou alguém – e quero dizer que entendo a dificuldade de classificação e que rejeito a tentativa forçada de fazer cumprir essa lei com base na hipótese muito mal formulada de racismo estrutural. Como condenar, por exemplo, os assassinos de Alberto Freitas, morto no supermercado Carrefour de Porto Alegre, em 2020, sem uma evidência concreta de que os seguranças agiram por racismo? Mas entendo, por exemplo, que a condenação do réu no caso ocorrido na FGV foi absolutamente correta. Segundo, porque, ainda assim, considero a existência de uma lei específica sobre racismo uma excrescência – enquadre-se no que já existe, calúnia ou injúria, e exija-se, se for o caso, indenização –, e sempre disse que, se alguém hoje, na minha cara, me xingar assim não espere que eu chame a polícia – se é que o leitor me entende.
Não há um modo mais ofensivo de xingar um negro que chamá-lo de “macaco” – é a única ofensa darwinista por excelência. Não há sequer equivalente para ofender uma pessoa não negra
No entanto, para minha surpresa, surgiram não poucos comentários criticando minha atitude, como se eu estivesse fazendo “apologia à violência” por comemorar que um racista tivesse levado uma surra. O curioso é que o perfil das pessoas que me acusaram de tal absurdo não me pareceu de pessoas de esquerda – mais adeptas da frase “djonguiana”, que eu mesmo considero perigosa, “fogo nos racistas”. Esquerdistas costumam ter compaixão de outro tipo de criminoso, não do que ofende as chamadas minorias. Por isso estranhei, pois muita gente da direita internauta costuma celebrar quando criminosos se dão mal; amam compartilhar assaltantes tomando invertidas e sendo assassinados no ato do crime, com frases como “CPF cancelado” ou “bandido bom é bandido morto”. Que espécie de duplo padrão é esse? O que o homem negro fez não foi exatamente assumir os riscos de sua liberdade individual e reagir a uma agressão, a uma violência – ainda que verbal? Será que revidar uma agressão só é aceitável quando o revide não vem de quem, geralmente, vemos apanhar? E se o homem branco fosse, sei lá, um notório esquerdista?
E veja bem, atento leitor: em nenhum momento eu disse que todos devem fazer o mesmo – apesar de não achar ruim se racistas declarados forem enquadrados na “lei da rua”. Mas devo chamar-lhe a atenção para o fato de que considero o xingamento de “macaco” – que, ao mesmo tempo, é um dos mais corriqueiros – de uma vileza absoluta. Corriqueiro porque é usado desde os tempos imemoriais; mas é vil porque remete exatamente ao racismo eugênico do fim do século 19, o mesmo que ainda alimenta o racismo atualmente. É um xingamento de desumanização, de menosprezo, pautado no evolucionismo materialista, como quem diz: “você nem é gente, não evoluiu para tanto”. É a ofensa racista por definição, paradigmática. Está no cerce das ideias de branqueamento da sociedade brasileira que fizeram sucesso no início da República. Foi a razão do sucesso das famigeradas teses de Nina Rodrigues e o Conde de Gobineau. Teorias que alimentaram, inclusive, o imaginário cristão e permitiram que padres jesuítas como Jorge Benci, em sua obra infame Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, dissesse absurdos dessa ordem: “como os Pretos são sem comparação mais hábeis para todo o gênero de maldades que os Brancos [...], eles, com menos tempo de estudo, saem grandes licenciados do vício na classe do ócio”.
Isso não é exagero, não é mimimi, é um pensamento que ainda cala profundamente na imaginação moral do brasileiro. Por isso Joaquim Nabuco disse, no seu Abolicionismo, que seria preciso “adaptar à liberdade cada um dos aparelhos [da sociedade brasileira] de que a escravidão se apropriou”, caso contrário “a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”.
Óbvio que as pessoas, atualmente, não pensam nisso quando usam o termo “macaco” para ofender um negro; elas simplesmente sabem que ofende, pois, como eu disse, tornou-se corriqueiro e, em certo sentido, normalizado. Mas, quando pensamos bem, notamos que, primeiro, não há um modo mais ofensivo de xingar um negro – é a única ofensa darwinista por excelência. Não há sequer equivalente para ofender uma pessoa não negra. Por essa razão, não que eu defenda que todos os negros, ao serem chamados desse nome, revidem – cada um sabe de si –, mas compreendo as razões de quem o faz, pois eu mesmo faria o mesmo; considero inadmissível, em pleno século 21, as pessoas quererem passar incólumes a esse tipo de atrocidade que evoca um passado para o qual, penso eu, nenhuma pessoa sensata deseja voltar, nem mesmo de brincadeira ou por impulso inconsequente. Como argumenta o grande abolicionista americano Frederick Douglass:
“Em que o homem branco difere do negro? Ora, um é branco, e o outro é negro. Bem, e daí? Acaso o sol brilha mais sobre um do que sobre o outro? A natureza despende mais suntuosamente seus dons para um do que para o outro? A terra, o mar e os ares concedem seus tesouros mais rapidamente para o branco que para o negro? Numa palavra, ʻnão temos todos o mesmo Pai?ʼ. Por que, então, te revoltas perante a igualdade que Deus e a natureza instituíram? […] Acreditamos na igualdade humana; acreditamos que o caráter, não a cor, deve ser o critério pelo qual se escolhem os companheiros, e lamentamos o orgulho da pobre poeira pálida e das cinzas que desejariam erguer qualquer outro critério de associação.”
Precisamos admitir que parte considerável da direita brasileira se constituiu, sobretudo nos últimos anos, na negação do racismo – já falei sobre isso aqui, nesta Gazeta do Povo –, que reforça a ideia, criada pelos críticos de Gilberto Freyre, à respeito de uma suposta “democracia racial” brasileira que ele jamais propôs. Entretanto, compreender a complexidade das “relações raciais” no Brasil não nos deve levar a diminuir o problema, que é real e profundo. Criticar os movimentos racialistas e identitários não é achar que o problema não existe ou é (somente) social. O problema social é agravado — não raro, muito! — pela cor da pele num país acostumado a subalternizar os negros, numa cultura que permite, por exemplo, um policial agir com truculência contra um jovem negro em circunstância que não representava qualquer perigo, mas tratar um homem branco, numa situação crítica, com respeito simplesmente por medo de possíveis consequências. No país do “você sabe com quem está falando?”, da carteirada e do sobrenome, tanto as instituições quanto a sociedade civil precisam reconhecer e enfrentar esse problema.
Insisto: ser contra a sanha identitária da esquerda não é negar o problema, tampouco morganfreemanizar a discussão. Isso é covardia e elitismo. Dizer que o problema é tão somente social – alias, esse é o argumento marxista clássico –, é se negar a lutar para mitigá-lo e contribuir para que ele perdure. Eduquem seus filhos, mostrem que as circunstâncias históricas que relegaram os negros à subalternidade não são fixas; que negros também foram e são intelectuais, médicos, engenheiros, escritores, empresários etc.. Que a menor quantidade em posições de destaque é um dado a ser desafiado, não uma situação a ser definida. Isso é lutar por mais liberdade e por um país onde negros não são forçados a lembrar, o tempo todo, que um dia foram considerados menos humanos.
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