“[…] podemos subestimar o preconceito de cor […], e, no entanto, este continua a ser um fato ponderável. Tais desvios curiosos da mente humana existem e devem ser encarados com sobriedade. Eles não podem ser destruídos pela zombaria, não são sempre fáceis de atacar nem são simplesmente abolidos por decretos judiciais. E, contudo, não devem ser estimulados pela inércia”. (W. E. B. Du Bois)
Trabalhei por vinte anos na área de tecnologia numa função das mais complicadas: suporte técnico. O suporte é acionado sempre que algo não está funcionando, e desde o computador pessoal de um funcionário até os mainframes responsáveis por transações financeiras bilionárias, tudo tem prioridade zero para quem necessita do equipamento em perfeito estado para realizar o seu trabalho. Por isso, não só a capacidade de solucionar a falha no menor tempo possível é imprescindível, mas também a proatividade, a prevenção e a criação de mecanismos de segurança e eficiência, capazes de evitar reincidências, são extremamente importantes – o custo do retrabalho é sempre alto. Confrontar cada nova evidência com experiências anteriores também é um excelente método para a solução de problemas complexos.
Outra competência fundamental que um analista de suporte deve ter é saber diferenciar problemas de funcionamento dos problemas de operação; muitas vezes é o usuário que não tem habilidade para operar o equipamento ou, mesmo, lhe falta treinamento. Os usuários mais afoitos, sentimentais, costumam dramatizar, aumentar o problema e generalizá-lo, atrapalhando a análise e a solução. Esses, dependendo de sua influência no ambiente de trabalho ou até seu pretenso conhecimento em tecnologia, podem, inclusive, prejudicar o analista.
Gostaria de ilustrar isso, caro leitor, com um caso real: eu trabalhava numa empresa de tecnologia para telefonia celular, cuja criticidade dos serviços era altíssima; um minuto de falha causava a perda de alguns milhares de reais. Certo dia – ou melhor, noite – de sexta-feira, um problema de comunicação de dados numa região específica do Brasil causou a paralisação total de um serviço. A equipe que eu coordenava, analisando o problema, percebeu que a falha não era em nossos equipamentos e acionou a equipe de nosso parceiro de negócio. Começou um “jogo de empurra” que se arrastou por toda a madrugada e todo o dia de sábado. Fui acionado pelo plantão, entrei em contato com o coordenador de nosso parceiro, expliquei onde, muito provavelmente, estaria o problema, mas não adiantou; às 7 horas da noite me incluíram numa conference call que só foi terminar às 8 horas da manhã do dia seguinte!
Sim, estimado leitor, por conta da teimosia e falta de comunicação entre os analistas, fiquei por treze horas, sem desligar o telefone, com indivíduos sem o mínimo de comprometimento com a atividade que exerciam ou mesmo respeito pela experiência alheia, “batendo cabeça” para resolver uma falha gravíssima de um serviço essencial. A cada troca de turno (eu fui o único que permaneceu durante toda a call), o analista que assumia repetia, ignorando meus protestos veementes, todos os testes que outros já tinham realizado, desprezando o histórico e as informações existentes, teimando em ser ele o portador da pedra filosofal. Às 5 horas da manhã acionei o meu gerente, que escalonou o problema e fez com que os analistas verificassem, finalmente, aquilo que eu vinha apontando desde o dia anterior. Resultado: o problema foi resolvido em quinze minutos.
É isso o que acontece quando ignoramos a experiência passada, o histórico, e tentamos, sempre, reiniciar a solução de um problema que há muito vem sendo discutido. Nas ciências humanas isso também ocorre. Pensadores contemporâneos costumam não só ignorar, mas rejeitar a tradição que lhes precede, apostando sempre na última novidade surgida em alguma universidade de renome. C. S. Lewis chama isso de “esnobismo cronológico”. Esse positivismo vulgar, aliado a um progressismo pueril, que nasce da ignorância e/ou da maledicência pura e simples, leva muitos a se julgarem privilegiados por não terem vivido durante a “Idade das Trevas” (na qual viveram, por exemplo, Boécio, Chrétien de Troyes e Hildegarda de Bingen) ou debaixo do patriarcalismo “radical” dos israelitas (que nos legaram Moisés e Ester). Consideram Platão e Aristóteles ultrapassados sem nunca terem lido uma linha sequer de seus escritos. Pior: alguns mal dialogam com a geração imediatamente anterior. Assim nascem as ideologias.
Tenho notado isso em relação às discussões sobre o racismo no Brasil. A nova safra de militantes, animada por sociólogos acadêmicos mergulhados em teorias europeias das últimas décadas, continua incorrendo naquele erro já denunciado por Alberto Guerreiro Ramos na década de 1950: tratar o negro como tema. Mesmo ostentando um pseudo-protagonismo, o militante negro brasileiro assumiu uma postura caricata em relação aos problemas específicos do racismo brasileiro. Mais do que isso: quando a militância e os intelectuais assumem que, no Brasil, o tipo de racismo praticado é aquele dissimulado, cordial, eles simplesmente transformam todos em racistas potenciais, impossibilitando qualquer encaminhamento para a solução do problema.
Criou-se, assim, como diz o antropólogo Hermano Vianna, o mito do mito da democracia racial. Explico: a democracia racial, conceito do qual já tratei em outro artigo, é a ideia de que, no Brasil, a ampla miscigenação proporcionou uma convivência pacífica entre as diferentes “raças”, não obstante nosso passado escravista. E aquilo que chamam de “mito da democracia racial” é um termo que visa a contestar a ideia da convivência pacífica afirmando que, no Brasil, o racismo é velado, e se manifesta sorrateiramente no tratamento que negros recebem da sociedade em geral. O problema é que 1) o conceito de democracia racial foi criado com o intuito de negá-lo – pois foi associado a Gilberto Freyre sem ter sido criado por ele. Ou seja, o conceito foi atrelado à sua negação; 2) Freyre, mesmo assumindo o termo, não nega sua relatividade; 3) a realidade, a experiência brasileira, é favorável ao conceito. Como disse o próprio Freyre, em entrevista à revista Veja, em 1970, ao ser questionado se o Brasil era uma democracia racial perfeita: “Perfeita, de modo algum. Agora, que o Brasil é, creio que se pode dizer sem dúvida, a mais avançada democracia racial do mundo de hoje, isto é. A mais avançada neste caminho de uma democracia racial. Ainda há, não digo que haja racismo no Brasil, mas ainda há preconceito de raça e de cor entre grupos de brasileiros e entre certos brasileiros individualmente”.
O problema é que está ocorrendo um recrudescimento do que se convencionou chamar de “relações raciais” no Brasil. Muito porque, voltando à ilustração do início, qualquer jovenzinho de hoje, sem ter lido uma linha do histórico dessa discussão, ignorando toda a tradição que há em torno do assunto e se baseando única e exclusivamente em exemplos disseminados por intelectuais militantes de sua geração e pela mídia (incluindo youtubers, filmes e músicas), saem propagando ódio racial nas redes sociais sem qualquer responsabilidade pelo que estão fazendo. Desse modo, é impossível haver solução para o verdadeiro problema se ele sequer é endereçado corretamente. Voltando a Guerreiro Ramos, que denunciava as incongruências do debate em torno do “problema do negro”, ainda em 1950, em O problema do negro na sociologia brasileira:
“À luz da sociologia científica, a sociologia do negro no Brasil é, ela mesma, um problema, um engano a desfazer — o que só poderá ser conseguido através de um trabalho de critica e de autocrítica. Sem crítica e autocrítica, aliás, não pode haver ciência. […] A nossa sociologia do negro é, em larga margem, uma pseudomorfose, isto é, uma visão carecente de suportes existenciais genuínos, que oprime e dificulta mesmo a emergência ou a indução da teoria objetiva dos fatos da vida nacional”.
Portanto, ou aprendemos a distinguir a realidade das ideologias, a fim de tratarmos de maneira efetiva do racismo no Brasil ou, enquanto perseguimos idiotas na internet como se fossem membros da Ku Klux Klan, os verdadeiros racistas da atualidade – aqueles que, verdadeiramente, podem prejudicar os mais vulneráveis – circulam livremente. Ou a militância rompe os grilhões da senzala ideológica – criada por intelectuais cujo único compromisso é com a desordem que divide para dominar politicamente –, assumindo uma verdadeira autonomia de pensamento e dialogando com aqueles estavam, realmente, dispostos a buscar uma solução para os problemas, ou será sempre presa fácil de sua própria ignorância.
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