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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Música e política

A arrogância elitista do rapper brasileiro

Djonga, em foto de 2022, é um dos rappers alinhados à esquerda.
O rapper Djonga, em foto de 2022. (Foto: Annelize Tozetto/Fora do Eixo/Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0 Generic license)

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“Quem irá nos proteger de nós mesmos? / Quando o pior sentimento nos atingir, estaremos pegos / O ódio ainda vem sendo a arma / De conquista pros manos, mantenham a calma / Ensinem seus filhos, eduquem seus filhos / Revelem a eles a verdadeira história / Diferente daquela que nos ensinam nas escolas”. (Sistema Negro, Livro da Vida)

Épocas de eleições são períodos particularmente interessantes para percebermos não só como as pessoas pensam em termos políticos, mas, também, como fazem suas escolhas eleitorais. Para além de interesses imediatos e de toda empolgação com as intempéries de nossas disputas e seus candidatos cada vez mais, digamos, peculiares, há aquelas pessoas que preservam uma certa coerência ideológica, ainda que carregada de incoerência lógica. É o caso de nossos rappers atuais (ou parte considerável deles).

O hip hop, como todos sabem – já escrevi algumas vezes sobre isso aqui, nesta Gazeta do Povo – é uma cultura periférica que nasceu no fim dos anos 1970, no bairro novaiorquino do Bronx, como consequência do apaziguamento da violência entre gangues e a canalização dessa energia destruidora para a criatividade e a arte, com o break, o grafitti, o MC e o DJ (os chamados Quatro Elementos do Hip Hop). Uma cultura que surge como entretenimento e vai, aos poucos, ganhando conotações mais políticas e de crítica social. De Rappers Delight, do grupo Sugarhill Gang, o primeiro rap a fazer sucesso e uma música que exala diversão, até The Message, de Grandmaster Flash and the Furious Five, o primeiro rap com crítica social a atingir a prestigiada lista “Billboard Hot 100”, foram três anos.

Sempre houve imensa diversidade no hip hop, e o compromisso político-partidário não parecia ser a tônica do movimento até que ele começasse a ser educado por militantes de esquerda

No Brasil não foi muito diferente, pois a cultura surgiu, primeiro, com o break – que, inclusive, aparece na abertura da novela Partido Alto, da Globo, em 1984 – e com músicas como Mas que linda estás, do grupo Black Júniors, de 1984, e a irreverente Nomes de meninas, de Pepeu, de 1989. Quem impulsionou o rap com crítica social (às vezes chamado de rap de mensagem ou protesto) foram os grupos Thaíde e DJ Hum e, claro, o Racionais MCʼs, que com seu álbum Holocausto Urbano definiu os rumos do rap por aqui.

Ou seja, sempre houve imensa diversidade no hip hop, e o compromisso político-partidário não parecia ser a tônica do movimento até que ele começasse a ser educado por militantes de esquerda, como Milton Sales (o ideólogo do Racionais) e as famosas reuniões no Projeto Rappers, do Geledés – Instituto da Mulher Negra, de Sueli Carneiro. Imagine, caro leitor: jovens de periferia, pouquíssimo instruídos, cheios de questões complexas envolvendo suas vidas e sua arte, totalmente vulneráveis ao discurso revolucionário que a esquerda lhes oferecerá em contraposição a tudo o que estava aí – sobretudo aos governos de Orestes Quércia (PMDB), Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB) e Mário Covas (PSDB), que comandaram o estado de São Paulo de 1987 a 2001, e à presidência de Fernando Henrique Cardoso, políticos que nessa geleia geral da política brasileira são considerados “de direita”.

Curiosamente, o discurso do rap, apesar de revolucionário em seu tom e incisivo contra as injustiças e o racismo, não era tão marcadamente de esquerda no sentido ideológico – anticapitalista ou de promoção do socialismo ou comunismo – a não ser em casos específicos, como o de GOG, um rapper do Distrito Federal. Mesmo o forte tom antissistema não tinha um direcionamento partidário declarado. Não que os artistas não tivessem seu posicionamento político pessoal alinhado à esquerda, mas suas letras ainda eram predominantemente orientadas pela imaginação moral e pelo senso comum da periferia, em que a crítica se equilibrava com mensagens de autoafirmação, direcionamento e celebração da autoestima. A malandragem (ou sagacidade periférica, se o leitor prefere um termo rebuscado), muitas vezes exaltada, é obviamente uma descrição da realidade em que viviam, sem tergiversações.

Em letras como Negro Limitado, Voz Ativa ou mesmo a lúgubre Diário de um detento, do Racionais; Corpo Fechado e Nada pode me parar, de Thaíde e DJ Hum; Mova-se e H. Aço, do DMN; Cada um por si e O livro da vida, do Sistema Negro; O trem e Paz interior, do RZO; Um bom lugar e Rap é compromisso, do Sabotage; ou mesmo Periferia segue sangrando, do politizado GOG, não há discurso ideológico definido nem mesmo mensagem de ruptura institucional revolucionária. Em geral transitam entre crônicas da realidade sofrida e controversa das periferias, e mensagens de motivação àqueles com quem compartilhavam as dores e experiências. São exemplos de um senso comum pautado pela arguta intuição artística de jovens periféricos. Sem contar as (não raras) contundentes críticas à criminalidade e às drogas. Nem mesmo as politizadíssimas Não parem o scratch e Política, de Athalyba e a Firma, fazem menções específicas sobre partidos, políticos ou posições definidas.

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Com o advento da internet e a exposição nas redes sociais, bem como o apoio declarado de artistas importantes do gênero a políticos de esquerda – como o apoio de Mano Brown, do Racionais, a Lula –, houve, indiretamente, uma associação da cultura a uma posição político-partidária específica, e frases do tipo “o rap é de esquerda”, como disse recentemente num podcast o motoboy JR Freitas, candidato a vereador pelo PSol, começaram a ser ditas como se fossem uma regra e todo mundo que tem alguma relação com o hip hop, seja como artista ou mero admirador, tivesse de ser de esquerda. Freitas ainda afirmou:

“O rap é de esquerda, e se você é de direita, você que lute; você é de direita, mas o rap é de esquerda. ʽAh, mas o rap é antissistemaʼ. O rap veio dos anos 80. E quem era o sistema nos anos 80? E quem é o sistema hoje? O sistema é a burguesia, quem manda no nosso país é a burguesia. Então, quando a gente fala que o rap é antissistema, a gente é contra os bilionários que acumulam o patrimônio deles enquanto a população passa fome [...] Quando a gente falava que o rap era antissistema, quem é que tava no sistema político, quem sempre dominou o sistema político e domina até hoje, é a esquerda ou a direita? É a direita [...]. E a gente sempre foi antissistema, e o sistema é a direita. A direita que tá lá dentro do poder, tá trabalhando pro Agro. Quem é o sistema? É o Agro.”

Tamanha quantidade de simplificações tolas como essas não dão conta sequer de arranhar o problema do estamento burocrático brasileiro, do arranjo patrimonialista secular ou mesmo das posições políticas pessoais da maioria de nossos governantes diretos e indiretos, muito menos de nossa pseudodemocracia. A ignorância de Freitas está em tomar, irrefletidamente, “direita” e “esquerda” pela ótica maniqueísta criada pela própria esquerda. Mas penso que ele nem sequer seja capaz de articular essas distinções.

Não há, em muitos rappers, a preocupação de entender por que as pessoas que eles dizem conhecer (às vezes até parentes e amigos) estão fazendo escolhas que para eles são absurdas, e que isso pode não ser alienação, mas escolhas conscientes

Já o rapper Djonga, da novíssima geração, diante do apoio de muitos artistas do trap e do funk a um candidato como Pablo Marçal, fez afirmações cheias de um elitismo complicado para alguém que se diz periférico:

“Triste ver que grande parte de quem consome nosso trabalho apoia o retrocesso, seja nas urnas, seja no dia a dia, seja nos comentários atuais das páginas de rap, seja nos comentários sobre as vítimas em Gaza, Líbano, nos comentários sobre as situações que rolam no mundo do entretenimento que a gente vive. O pior é que eu vejo que, muitas vezes, o objetivo maior com esses comentários e falas não são nem resolver o problema de fato e aí eu penso: problema muito mais coletivo do que individual, doença muito mais coletiva do que individual. Mas o que você tá fazendo individualmente também? Eu mudei e mudo de opinião sobre várias coisas desde que comecei a cantar, a vida tem dessas, mas sobre isso que muitos querem fazer com o pouco de liberdade que foi construída com tanta luta, luta que eu fui dos últimos a chegar, eu nunca vou mudar.”

Ou seja, para Djonga, que acabou de fazer 30 anos, gostar de rap é também apoiar o grupo terrorista Hamas e votar na esquerda é avanço (a realidade, aqui). Mais uma demonstração de reducionismo, com a mesma agravante cometida por Freitas: para eles, as escolhas das pessoas que são contrárias à sua miopia ideológica são fruto de ignorância, de alienação. Em outra diatribe no mesmo podcast, Freitas disse que “a direita já entendeu como se comunicar melhor com a quebrada do que nós”, como se fosse só uma questão de comunicação e não de identificação, de visão de mundo.

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Para Djonga, Freitas e grande parte das pessoas ligadas ao hip hop, a possibilidade de eles terem se desconectado da realidade em que foram criados é nula, pois se julgam muito esclarecidos. Não há neles a preocupação de entender por que as pessoas que eles dizem conhecer (às vezes até parentes e amigos) estão fazendo escolhas que para eles são absurdas, e que isso pode não ser alienação, mas escolhas conscientes, baseadas em demandas que ideologias ou utopias não têm condições de responder. As pessoas têm problemas reais, urgentes, que exigem respostas reais e urgentes. O problema de segurança pública e do crime organizado, por exemplo, gravíssimo nas periferias, não pode ser respondido com o abolicionismo penal das teorias produzidas por acadêmicos esquerdistas, ou com condescendência para com o (ou lógica no) assalto, como disse uma expoente de nosso esquerdismo de elite. Para as mães crentes, que vivem nas periferias e vão à igreja pedir para Deus proteger os seus filhos do mal, as drogas não devem ser liberadas. Sem contar toda a destruição que as teorias identitárias e de gênero vêm provocando em adolescentes periféricos. As opções à esquerda são sinal de destruição de valores profundos que sustentaram por gerações pessoas que não têm a fortuna como aliada.

É legítimo discordar das opiniões e escolhas das pessoas e até concordo que políticos como Pablo Marçal e Bolsonaro, que também ignoram complexidades, são incapazes de responder aos anseios das periferias. No entanto, tampouco penso que políticos de esquerda ofereçam respostas melhores. São todos igualmente ineptos, pois as motivações estão erradas. A política brasileira como um todo deve ser revista, as motivações devem ser repensadas e as causas dos problemas devem ser aprofundadas. Há um processo de educação da população (e dos políticos) sem o qual será difícil nortear as opiniões e escolhas para algo realmente promissor. O trabalho é longo e não permite atalhos ideológicos; e os conceitos e visões de “direita” e “esquerda” não respondem tudo – na verdade respondem muito pouco.

Mas enquanto esses metidos a sabichões – que foram colonizados culturalmente por teóricos americanos e europeus de esquerda, delirantes e complexados – não “voltarem para a base”, como disse Mano Brown no fatídico discurso no comício do PT, em 2018, seguirão, arrogantemente, afirmando que o rap é de esquerda, enquanto aqueles que eles abandonaram, ao mesmo tempo que escutam suas músicas, seguem no esforço de preservar a única coisa que ninguém pode lhes tomar: a dignidade.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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