“Eu tenho um sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.” (Martin Luther King Jr.)
Semana passada alguém, numa rede social, me fez um pedido: “professor, comente sobre a insistência em apontar a cor de nossas atletas medalhistas de ouro nas Olimpíadas”. Ele falava, obviamente, de nossas campeãs Beatriz Souza (judô) e Rebeca Andrade (ginástica), cuja cor da pele parece ter sido tão ou mais evidenciada do que seus feitos extraordinários na competição. O incômodo do rapaz é justificado, julgo eu, por dois motivos principais: primeiro, porque não é comum que isso ocorra quando os atletas são brancos – aliás, isso seria considerado racismo; segundo, porque todo esse alvoroço tem um tom de militância, de discurso político, que, de fato, irrita um pouco.
Rebeca e Beatriz não conseguiram seus ouros porque são negras, mas porque são excepcionais, porque treinaram duramente, porque levaram seu corpo e sua mente para além do limite da excelência, e porque se destacaram das demais competidoras. Para que isso tenha ocorrido, uma série de fatores, uns mais evidentes, outros não, concorreram para isso. E, uma vez que treinam desde muito pequenas – Rebeca começou aos 5 anos, Beatriz aos 7 –, sua cor, muito provavelmente, só passou a ser relevante na vida adulta – se é que é relevante, de fato, hoje, para além do discurso que elas são obrigadas a reproduzir. Não digo que sua cor é irrelevante, pois pode ter sido exatamente a consciência dos desafios a serem enfrentados por serem mulheres negras no Brasil que as tenha levado a um esforço acima da média, a fim de superarem prováveis preconceitos.
A ênfase na cor de nossas campeãs serve para nos lembrar daquilo que durante muito tempo foi negado às pessoas negras no Brasil: a igualdade essencial. A certeza de que negros e brancos são, de fato, iguais em capacidade e inteligência
Sempre me lembro que, quando criança, meu saudoso pai não se cansava de nos alertar: “para você ser considerado igual, precisa ser melhor”. Sim, caro leitor, estamos no Brasil, um país construído sobre quase 350 anos de escravidão, que deixou marcas em nosso imaginário que, em grande medida, ainda persistem mesmo que não percebamos. Um imaginário cultural que – como já disse aqui, nesta Gazeta do Povo – normalizou os negros em posições de subalternidade. Ignorar isso é dar espaço a discursos de ressentimento que só nos prejudicam. Como nos aponta tão bem Alberto Guerreiro Ramos em seu ensaio O problema do negro na sociologia brasileira:
“O que parece justificar a insistência com que se considera como problemática a situação do negro no Brasil é o fato de que ele é portador de uma pele escura. A cor da pele do negro parece constituir o obstáculo, a anormalidade a sanar. Dir-se-ia que na cultura brasileira o branco é o ideal, a norma, o valor, por excelência. E, de fato, a cultura brasileira tem uma conotação clara. Este aspecto só é insignificante aparentemente. Na verdade, merece um apreço especial para o entendimento do que tem sido chamado, pelos sociólogos, de ʻproblema do negroʼ.”
O “problema do negro”, nesse sentido, é justamente aquele que não foi causado por ele. É ter de lidar com o racismo que não foi criado por ele, com a afirmação de sua autoimagem, considerada fora do padrão (para não dizer feia) num país em que todo mundo parece querer buscar uma ascendência europeia para chamar de sua, a fim de fugir da obviedade acachapante de que somos, todos, fundamentalmente, brasileiros – mestiços, tupinambás – e que o branco puro é a exceção.
Óbvio que a abordagem divisionista do identitarismo é prejudicial a qualquer conciliação; que sua ênfase, como diria Aristóteles, nos acidentes e não na essência dos seres humanos causa mais confusão do que solução. No entanto, a ênfase na cor de nossas campeãs serve para nos lembrar exatamente daquilo que durante muito tempo foi negado às pessoas negras no Brasil: a igualdade essencial. A certeza de que negros e brancos são, de fato, iguais em capacidade e inteligência. De que as mulheres negras, que tanto sofreram e sofrem por sua aparência, pela hiperssexualização a que foram submetidas (quem não lembra, por exemplo, das “mulatas do Sargentelli”?), podem se destacar – e se destacam – em outras áreas.
Pensa que exagero, caro leitor? Pois veja: no Brasil, no fim do século 19, Nina Rodrigues afirmava, em As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil, com a anuência de praticamente toda a elite do país, que negros “pertencem a uma outra fase do desenvolvimento intelectual e moral”, e que, por isso, “pretender impor a um povo negro a civilização europeia é uma pura aberração”. E o médico paulista Renato Khel, presidente da Sociedade Eugênica de São Paulo, dizia, em Lições de Eugenia: “Ninguém poderá negar, que no correr dos anos, desaparecerão os negros e os índios das nossas plagas e do mesmo modo os produtos provenientes desta mestiçagem. A nacionalidade embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano!” Vale lembrar que as ideias de Khel sobre “educação eugênica” constaram na Constituição de 1934.
Ou seja, tudo isso nos obriga a admitir que, se o projeto eugenista do Estado brasileiro falhou, deixou marcas quase indeléveis em nossa imaginação moral. Portanto, enfatizar a cor de nossas campeãs, retirando disso toda maquiavelia ideológica dos movimentos identitários, não deixa de ser algo não só louvável, mas necessário.
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