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“Porque quando um negro grita contra uma discriminação, o que ele está gritando? Está gritando que aquele branco não o está tratando em pé de igualdade. O negro está querendo um espaço de igualdade social. De modo que, se um branco vem, a gente sempre tem de ter cuidado, porque ele sempre vem atrás de qualquer coisa.” (José Correia Leite)
Muita gente não sabe que minha relativa notoriedade no debate público brasileiro se deu completamente à revelia de minhas intenções. Quando deixei a carreira na área de tecnologia, meus objetivos eram muito claros para mim, e não iam além de lecionar para jovens em alguma escola de ensino básico. Para quem pesquisou Platão, Aristóteles e Eric Voegelin na graduação em Filosofia, e C.S. Lewis no mestrado, não tinha assunto mais distante que racismo, um tema que ocupou minha mente por um longo período, mas para o qual já não dava tanta atenção. Até que algo aconteceu.
A invasão de uma aula na USP, em 2015, por um grupo de ativistas negros a fim de reivindicar cotas raciais na universidade me causou espécie. Não exatamente pelo protesto, pois estes são legítimos, mas pela virulência de sua abordagem. Um comentário no Facebook, uma entrevista num podcast, uma palestra no Rio de Janeiro, e o resto é história.
Minha crítica aos movimentos negros hodiernos sempre foi a de que eles haviam renunciado à sua integridade e perdido a sua independência em troca de apoio político de uma esquerda revolucionária que se desenvolvera no Brasil ainda na primeira metade do século 20. Tal aliança seria responsável pela substituição de todos os símbolos da luta negra que se formaram desde os tempos do movimento abolicionista, de toda a ética de superação que havia alimentado a consciência e a imaginação moral de nossos antepassados, para dar lugar a narrativas de revolta e reparação histórica baseadas em pressupostos retirados das teorias de poder marxistas e foucaultianas.
Quando as esquerdas reivindicaram para si a tutela de todos os movimentos sociais, dizendo que delas se originaram tais lutas, elas o fizeram não necessariamente no interesse de ajudar os grupos discriminados, mas por interesse próprio
E veja, caro leitor, essa crítica não é original nem nova, ela já havia sido feita por muitos expoentes célebres dos movimentos negros (não só brasileiros, mas mundo afora), como José Correia Leite, fundador da Frente Negra Brasileira e do jornal O Clarim dʼAlvorada, já trazido muitas vezes a essa coluna, quando disse, na mesma entrevista da qual retirei a contundente citação em epígrafe, que os movimentos negros haviam se tornado uma “correria atrás de política” e que estavam dispersos em “grupos partidários”. E completou: “as pessoas podem participar de partido político, mas não dizendo que, com isso, vão resolver o problema do negro quando, na verdade, estão divididos dentro da ideologia de um partido do branco”.
Isso pode soar identitário ao atento leitor, e é. Mas não no sentido de uma reivindicação reparatória específica, mas simplesmente na união e no fortalecimento de um grupo que passou e passa por discriminações históricas desde os tristes tempos da escravidão; ou seja, apoio e estratégias baseadas em vivências na luta histórica da população negra do país. Não se trata de criar um espírito de revanchismo, mas de apoio pelo reconhecimento; não por separação, mas por segurança; não por alienação, mas por discernimento; não por diatribes ideológicas, mas por uma tradição. Outros grupos, ao longo da história, fizeram isso e é totalmente legítimo.
Quando as esquerdas reivindicaram para si a tutela de todos os movimentos sociais, dizendo que delas se originaram tais lutas – o que já demonstrei, pelo menos em relação aos movimentos negros, ser mentira –, elas o fizeram não necessariamente no interesse de ajudar os grupos discriminados, mas por interesse próprio. A luta política, a luta por poder e influência necessita de apoio, e nada mais prático do que ser a voz de grupos que sofrem, do que usar a dor e a indignação coletiva em benefício próprio. Não estou dizendo com isso que todas as pessoas ligadas a movimentos de esquerda pensam assim, mas que isso é parte da lógica de tais movimentos. Agrupar todas as injustiças em torno de si – as massas – é estratégia política.
O problema disso é que cada grupo tem suas demandas próprias, suas necessidades baseadas em sua história. Nem toda discriminação tem a mesma origem, nem toda opressão tem a mesma causa. Nem todos os objetivos por inclusão e direitos devem ter a mesma estratégia de luta. Cada grupo tem suas especificidades: a discriminação contra negros não tem a mesma origem da discriminação contra mulheres ou homossexuais, e suas reivindicações, muitas vezes, têm aspectos específicos. Dizer que tudo é fruto do capitalismo ou da opressão de gênero é reducionismo ideológico. Os avanços de cada grupo ao longo da história também mostram quais os melhores resultados e as maneiras mais afetivas de agir. Os negros lutam há séculos por liberdade, as mulheres lutam há séculos por direitos; desde antes do capitalismo ou da interpretação materialista da história.
Os exemplos de luta histórica dos negros no Brasil – tais como, por exemplo, o abolicionismo, as irmandades religiosas, ou mesmo o Teatro Experimental do Negro – mostram que a esquerda nem sempre foi porta-voz e condutora de tais iniciativas. A esquerda e os movimentos negros se uniram, profunda e definitivamente, sobretudo a partir dos anos 1960. Antes disso, o enfrentamento era diverso e, é bom que se diga, muito mais criativo. Baseava-se, como afirmei acima, muito mais numa ética de superação do que numa sanha por reparação.
O resultado dessa apropriação é, obviamente, o enfraquecimento das reivindicações específicas de cada grupo em favor da agenda e dos objetivos partidários e ideológicos das esquerdas. Como bem o disse Abdias Nascimento: “A esquerda é cega, surda e muda no que se refere aos problemas específicos do negro, e despreza sua tradição cultural. (...) Para eles também, ‘todos são iguais perante a lei’... do proletariado. Pobre de quem quiser ser diferente”! Mesmo que, ao longo do tempo, movimentos negros de esquerda, em reação às críticas, tenham tentado contemporizar suas demandas às ideologias socialistas e comunistas, isso não é feito sem o sacrifício de sua autonomia e sem o risco de sucumbir a utopias (ou seja, a perda do senso prático).
Quando a luta negra se aliou aos (e se alienou nos) movimentos de esquerda revolucionários e anticapitalistas, viu diluídas suas demandas específicas numa massa agrupada pelos interesses dos movimentos marxistas, socialistas e comunistas
Os movimentos revolucionários negros, como os Panteras Negras, o feminismo negro de Angela Davis e outras iniciativas, são todos, por definição, anticapitalistas. Aí fica a pergunta: qual a chance de esses movimentos prosperarem no ocidente capitalista? Qual a chance de uma superação do capitalismo ser levada a cabo sem os prejuízos históricos que os grupos mais vulneráveis sofrem nesse processo? O professor Carlos Moore, por exemplo, fala disso, em seu O marxismo e a questão racial, em relação à Revolução Cubana; os presos políticos eram, em sua grande maioria, negros, e os altos escalões do governo revolucionário eram todos formados por brancos. Lutar por inclusão não significa que esta só é possível em regimes baseados em utopias igualitárias.
Mas esse não é meu ponto aqui. Na verdade, meu questionamento central está baseado numa pesquisa recente que apontou o nível de percepção de desigualdade nas sociedades. A pesquisa, realizada pelo Instituto Ipsos, aponta que os grupos LGBT são os que mais sofrem discriminação no Brasil e no mundo, seguidos pelas mulheres e pelas pessoas com deficiência. Em quarto lugar, tecnicamente empatadas com o quinto (pessoas trans), aparecem as minorias étnicas. No Brasil, especificamente, 40% da população considera que os grupos LGBT são mais discriminados que os negros (30%).
Aí, nobre leitor, minha pergunta é: como um país que viveu e sustentou um regime escravista por quase 350 anos, que adotou em larga escala teorias eugenistas como política de Estado, e que criou uma profunda cultura de subalternização dos negros que é, ainda hoje, em grande medida, responsável pela permanência de pessoas negras nos extratos socioeconômicos mais baixos, percebe mais a discriminação de grupos LGBT que a discriminação racial? Minha hipótese é: os grupos LGBT sempre foram política e economicamente mais poderosos que os movimentos negros, sempre tiveram apoio midiático e são estrategicamente mais coesos. Recentemente, inclusive, conseguiram emplacar uma lei anti-homofobia embutida na Lei Antirracismo – o que considero um erro brutal, não porque pense que a homofobia não deva ser criminalizada, mas porque, como eu disse, tais discriminações têm naturezas específicas e devem ser tratadas especificamente. Mas esse caminho seria óbvio, uma vez que, sob a tutela da esquerda, todas as discriminações se equivalem, e se, num primeiro momento, só se importavam com o conceito de classe, mais recentemente, em reação às críticas, emplacaram a ideia de que raça e gênero também são importantes, mas não podem ser analisadas separadamente – a tal da interseccionalidade, oriunda do feminismo negro, declaradamente de esquerda e anticapitalista.
O leitor crítico pode perguntar: “OK, mas o que a direita fez pelos negros durante todos esses anos?” Bem, aí teríamos de pensar, conceitualmente, o que é a direita; quando ela, de fato, ocupou o poder; e se, quando estava nele, contribuiu ou obstruiu o avanço da pauta antirracista no Brasil (falei um pouco disso no epísódio de meu podcast, o Noir, nessa sermana). Mas posso lhe assegurar que a posição conservadora quase nunca é partidária, é mais uma disposição cultural, uma tradição que anima (de dar alma) aqueles por ela conduzida.
Entretanto, é correto dizer que a luta abolicionista pode ser considerada, se não um movimento de direita, um movimento antirrevolucionário. Todas as leis abolicionistas foram sancionadas por gabinetes conservadores: a Lei Eusébio de Queiroz (1850), homônima ao ministro da Justiça, do Partido Conservador, que a conduziu; a Lei do Ventre Livre (1871), capitaneada por José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, também do Partido Conservador; a Lei dos Sexagenários (1885), aprovada por João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, igualmente do Partido Conservador; e, por fim, a Lei Áurea, assinada pela católica dona Isabel, a princesa imperial, teve como responsável pela aprovação o ministro Rodrigo Augusto da Silva – e já não preciso dizer a qual partido ele pertencia. Sem contar que as mais expressivas iniciativas dos movimentos negros organizados, na primeira metade do século 20, foram conservadoras e animadas por um senso de tradição e religiosidade que sempre fez parte da imaginação moral da população negra brasileira. Só a falsificação histórica pode negar tais fatos.
Ou seja, quando a luta negra se aliou aos (e se alienou nos) movimentos de esquerda revolucionários e anticapitalistas, viu diluídas suas demandas específicas numa massa agrupada pelos interesses dos movimentos marxistas, socialistas e comunistas. Com isso, nesse imbróglio, os movimentos politicamente mais poderosos têm mais capacidade de serem percebidos e fazerem suas pautas avançarem, inclusive usando como hospedeiro os movimentos negros, que já não conseguem falar em antirracismo sem falar em LGBTfobia. Mas, apesar de terem perdido espaço e relevância na percepção da sociedade, provavelmente vão culpar o racismo por isso e permanecerem na mesma. Estão satisfeitos?
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos