A comunidade cristã está embasada no conhecimento do Deus uno e eterno que, como tal, se tornou ser humano e, assim , se tornou próximo do ser humano a fim de nele praticar a misericórdia (Lc 10,36s). Isto peremptoriamente implica que, na área política, a comunidade cristã sempre e sob todas as circunstâncias abraçará o ser humano, e não uma causa qualquer; tanto faz se essa causa é o capital anônimo, o Estado como tal (o funcionamento de suas repartições!), a glória da nação, o progresso cultural ou da civilização ou sequer a ideia do desenvolvimento histórico da humanidade seja de que feitio for. (Karl Barth)
No primeiro artigo desta brevíssima reflexão sobre as relações entre religião e política, uma digressão se fez necessária para que compreendêssemos as motivações contemporâneas dessa simbiose. No segundo artigo, a partir da constatação das três características da mente contemporânea – a pluralização, a privatização e a secularização – procurei demonstrar a natureza idolátrica da aproximação entre religião e política, uma vez que visa a interesses alheios à propagação do Reino de Deus por aquela e à ordem da sociedade por essa. O que resulta desse encontro é tão somente o tráfico de influências, a manipulação e o pecado.
Ademais, gostaria de, por fim, com a ajuda do filósofo britânico Michael Oakeshott, apresentar-te, caríssimo leitor, ainda alguns aspectos e resultados dessa perigosíssima união. Como dito anteriormente, é o poder que, geralmente, via desejo mimético girardiano, no nível institucional une religião e política; mas, na esfera popular, além do desejo mimético como origem de suas aspirações, há outro componente que permeia o senso político brasileiro, fruto de um sebastianismo que se estabeleceu e persiste, muito provavelmente, desde o início da República – cujos entusiastas e golpistas, inspirados na Revolução Francesa e no positivismo de Auguste Comte, viam como o regime perfeito. Rui Barbosa, em 1880, em franca campanha republicana, disse: “A base do nosso regime, a sua única base é a democracia. Na administração dos nossos interesses políticos, a soberania do povo é o alfa e o ômega, o princípio e o fim […]. Nas nossas instituições orgânicas, portanto, só o elemento popular é eterno, substancial, imutável”. Para depois, em 1915, arrependido, dizer:
No outro regimen, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre – as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade gerais. Na República os tarados são os tarudos. Na República todos os grupos se alhearam do movimento dos partidos, da ação dos Governos, da prática das instituições. Contentamo-nos hoje com as fórmulas e aparência, porque estas mesmo vão se dissipando pouco a pouco, delas quase nada nos restando.
Pois é, a consolidação do regime onde os tarados são os tarudos [pessoas de grandes posses]: das oligarquias, do coronelismo e, sobretudo, do patrimonialismo, que acirraram a pobreza ao mesmo tempo em que criavam as circunstâncias para redentores seculares em série. Uma nação cristã, como gostam de ostentar, que se dobra, de tempos em tempos, agudamente, a governantes que lhes prometem o Céu na Terra. O regime que cantou “Liberdade! Liberdade! / Abre as asas sobre nós!”, para a dependência crônica do Estado, para a corrupção sistêmica e para o enriquecimento ilícito de alguns às custas do empobrecimento de quase todos. Tudo isso fundamentado, de um lado, no desejo de poder, e do outro, na necessidade constante – que beira o desespero em muitas regiões do país. Tal cenário abriu espaço para o reinado praticamente absoluto daquilo que Oakeshott chama de política da fé, em contraposição à política do ceticismo.
Numa era de secularismo, o problema começa, como nos diz Oakeshott, quando criamos expectativa em relação a uma instituição política, pensando que ela está destinada a cumprir um propósito específico. Ele nos alerta: “Uma instituição política, pouco importa quão heterogênea seja sua origem, pode, em algum momento, ser usada para a realização de um objetivo específico e útil, permitindo-nos fazer algo que desejamos ou impedir que aconteça algo que queremos evitar. Todavia, atribuir-lhe essa função como o propósito a que se destina é, no melhor dos casos, uma maneira informal de falar: seu propósito, se é possível dizer que tenha algum, é seu lugar no sistema, e quase não há limite para os desdobramentos que se seguem à eliminação de qualquer instituição política importante”.
Instituições políticas são composições históricas transitórias e não podem assumir destinos a não ser de acordo com a própria transitoriedade das circunstâncias. Tal equilíbrio concorre para a capacidade de governar sem que se flerte com os extremos. No entanto, sempre haverá forças de oposição que tendem a empurrar a atividade política para os extremos que, não mediados pela prudência, tornam a atividade política uma disputa ideológica perigosa. Os efeitos disso podem ou não ser sentidos, num primeiro momento, pela população em geral, que costuma adaptar-se; porém, como diz Oakeshott:
Com o decurso do tempo, nossa compreensão acerca da função do governo se coaduna com a nossa prática da atividade, nossas expectativas se conformam com nossas experiências e nossas crenças se assemelham à nossa situação. Viver em um extremo é um esforço insidioso; talvez escapemos da prisão do extremo que chegamos a habitar, mas nos vemos rapidamente privados do poder de reconhecer qualquer coisa que não seja algum tipo de extremo. Assim como aqueles que perseguem o cálido verão pensando somente que estão escapando do inverno, e esquecem que também estão perdendo as outras estações, quem abraça o extremo na política acaba compreendendo apenas a política de extremos. E mais, quando nos estabelecemos em um dos extremos da atividade política e perdemos contato com a região intermediária, não apenas deixamos de reconhecer qualquer coisa que não seja um extremo, como passamos a confundir os próprios extremos. Os polos, que até agora foram mantidos separados, começam a se entrelaçar. E nossa linguagem escorrega debaixo de nossos pés, tornando-se ambígua, tal como o inglês que busca o sol falando em invernar nas Bermudas.
A ambiguidade descrita por Oakeshott produz aquelas confusões linguísticas que transformam conceitos políticos em caixinhas vazias que são preenchidas de acordo com a ideologia preferida – como a palavra democracia, usada como máscara para todo tipo de autoritarismo que se julgue a encarnação do bem. O problema é que tal “ambiguidade do nosso vocabulário político decorre do fato de ter sido compelida, por quase cinco séculos, a servir a dois senhores”: a política da fé e a política do ceticismo.
Na política da fé, diz Oakeshott, “a atividade de governar está a serviço da perfeição da humanidade”. Nesse sentido, a perfeição humana é buscada porque não está presente, e “acredita-se que não devemos, nem podemos, depender da providência divina para a salvação da humanidade. A perfeição humana deve ser alcançada pelo esforço humano, e, nesse caso, a confiança na efemeridade da imperfeição provém da fé no poder do homem e não na providência divina”. Um estilo de governar, como diz ele, pelagiano – que crê na redenção terrena.
Pode parecer curioso falar isso a respeito de governos que se constituem à base de discursos claramente religiosos – o atual, de Jair Bolsonaro, é um exemplo paradigmático –, mas qualquer governo que se apresente sob a égide da religião instrumentaliza a fé a seu favor e se coloca, fatal e pecaminosamente, como aquele que governa pela vontade de Deus; um governo escolhido ou de escolhidos, fundamentado numa promessa que, ao fim e ao cabo, é a imanentização do eschaton. Um governo constituído de tal forma, que não se submeta às contingências da vida social, política e econômica, e que tente qualificar-se não pelo resultado de seu trabalho, mas pela promessa de um futuro glorioso, tem o grande poder de atrair uma massa de necessitados e crentes cuja fé já não mais se satisfaz com a garantia de um reino que “não é deste mundo”. A manipulação, nesse sentido, levada a cabo por religiosos e políticos, torna-se uma necessidade primordial.
Na política da fé, diz Oakeshott, “dada sua aliança com a busca da perfeição humana, a cada palavra e expressão será atribuído o seu significado mais amplo e abrangente, mirando sempre o limite e (por meio de adjetivos) às vezes além daquilo que o vocabulário pode tolerar sem perder seu sentido”. Desse modo, é fácil compreender a ligação quase simbiótica e específica dos neopentecostais – cuja fé vacila em busca de realizações terrenas permeadas de discursos espirituais – e seus pastores – cujo desejo de poder se caracteriza pela manipulação do rebanho e pelas vantagens que o poder político pode fornecer – com os governos de turno. No caso atual, há ainda um componente ideológico que tem atraído outros segmentos religiosos: o moralismo (contra o aborto, a ideologia de gênero etc.) e a suposta perseguição política sofrida por governos de esquerda. No fim das contas, desde o bezerro de ouro bíblico até hoje o processo de idolatria é o mesmo.
Voltando a Oakeshott, enquanto para o estilo cético “governar não é impor de uma única moral ou outra direção, tônica ou maneira às atividades de seus governados”, na política do fé “a função do governo é dirigir e integrar todas as atividades de seus governados; idealmente, nenhum movimento é feito sem a inspiração ou pelo menos aprovação da autoridade governante”. E isso não implica, necessariamente, numa autocracia, pois, com uma boa base desse “apoio popular”, tudo pode ser conseguido sob a narrativa democrática. De modo mais direto e minucioso, Oakeshott diz:
A política do ceticismo compreendeu que sua tarefa contemporânea deve ser: em primeiro lugar, detectar o que está acontecendo; em segundo, compreender de que maneira o governo pode realizar de forma mais econômica sua função, perene, de preservar a ordem e o equilíbrio pertinentes para a condição e as atividades correntes da sociedade; e, em terceiro lugar, garantir que a atividade política se oriente para esse propósito e aplique sua criatividade nessa direção. A influência da fé conduziu ao surgimento de acumulações massivas de poder. O próprio governo moderno se destaca entre elas; e, onde isso não se sustenta simplesmente com base no “bem” que poderia se esperar de tal acumulação, justifica-se com o argumento pseudocético de que, dado um aumento geral do poder, o governo deve apropriar-se de grande parte a fim de controlar o resto. Além disso, a atividade política foi forçada a se conduzir por canais estreitos, de modo que sua atenção se fixou apenas sobre o projeto atual, enquanto os grandes desdobramentos que resultam da concentração de propósito foram ignorados ou considerados de maneira insuficiente. O futuro distante atraiu uma atenção desproporcional, e, posto que a atividade tem se expandido sempre até o limite, não é deixada nenhuma reserva para enfrentar as emergências inevitáveis.
Desse modo, tal governo avança, sempre e sem parar, em direção a seu “destino” – ainda que abstrato –, sustentado por um círculo íntimo que chancela suas determinações, seus embates, suas lutas em favor do “povo”. A busca pela perfeição vem carregada de obstinação, e:
Os inimigos do regime serão identificados não como meros dissidentes a serem inibidos, mas como incrédulos a serem convertidos. A simples obediência não é suficiente; deve ser acompanhada de fervor. Se o governado não é entusiástico com o governo, não terá um objeto legítimo para sua devoção; se ele é devoto da ‘perfeição’, ele deve ser devoto do governo. Toda vez que nossa política se voltou decisivamente na direção do horizonte da fé, o governo sempre demandou amor e devoção, não aquiescência.
A força empenhada nesse sentido busca, ao fim e ao cabo, a abolição da política. Nesse momento ocorre uma nêmesis da política da fé, pois “o empenho para impor um único padrão de atividade a uma comunidade é uma atividade contraproducente”, e o “truque” é que perfeição buscada passa a ser associada à segurança como garantia de bem-estar. Tal processo, caríssimo leitor, posso dizer sem medo, experimentamos em nossa política de maneira intensa há, pelo menos, 20 anos:
Quando o governo possui um poder imenso, a atividade de governar não atrai para si homens moderados e temperados, preocupados em evitar os defeitos da iniciativa na qual estão envolvidos, mas os neuróticos e frustrados que não conhecem limites ou o parvenu que se embriaga facilmente com a oportunidade de fazer coisas grandes e brilhantes. Quando esse poder é gerado pela submissão “das massas” que buscam uma “segurança” abrangente, acaba caindo nas mãos de protetores que prometem mais do que podem realizar e, fingindo liderar, impõem a seus seguidores a responsabilidade por suas próprias ações. Na verdade, é apenas a reminiscência da moderação que corresponde ao significado mínimo de “segurança” o que faz com que a política do significado máximo pareça, alias, plausível. Ou, de maneira alternativa, o fracasso é somente evitado quando o influxo do ceticismo é exercido sobre essa versão da fé.
A única coisa capaz de nos salvar dessa constante armadilha da política da fé, é voltarmos a dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nenhum sistema de governo deve ser confundido com o evangelho e nenhum político com o messias, ainda que este seja o seu nome. Como nos declara o teólogo Karl Barth, na continuação da epígrafe deste artigo: “a comunidade cristã é sempre e sob todas as circunstâncias, o adversário do ídolo Tchaggernat. Depois que o próprio Deus se tornou pessoa humana, a pessoa humana é a medida de todas as coisas, a pessoa humana só pode ser empenhada e eventualmente sacrificada em prol da pessoas humana; ela mesma, o mais miserável, precisa ser resolutamente preservada (naturalmente não seu egoísmo, mas sua humanidade) contra a autocracia de toda mera causa. A pessoa não deve servir a causas, mas as causas devem servir à pessoa humana”.
Que deixemos a idolatria das causas de lado e sigamos em direção a uma vida política mais saudável e prudente.
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