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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Religião e política: brevíssima reflexão (parte 1)

Condor supermercado gourmet. Foto: Marcelo Miranda/divulgação.

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O traço característico do poder governamental que excede seus limites próprios e ser, geralmente, considerado a mais tangível materialização do poder satânico [...] Todo Estado totalitário precisa de uma ideologia que se torne uma verdadeira paródia da fé. (Oscar Cullmann, Cristo e Política)

A ligação entre religião e política é antiquíssima; do mítico envolvimento dos deuses na Guerra de Troia aos projetos de governo imperial dos khans mongóis – analisados brilhantemente por Eric Voegelin em Anamnese; da corrupção dos reis e sacerdotes nos tempos bíblicos à conversão do imperador Constantino e à universalização política do Cristianismo; do envolvimento de Martinho Lutero com os príncipes alemães ao apoio incondicional de pastores e padres a governos autoritários e/ou totalitários contemporâneos – para citar alguns poucos exemplos –, os poderes políticos e religiosos sempre seduziram um ao outro – e algumas vezes mantiveram uma relação absolutamente simbiótica.

Curiosamente, falando da tradição que conheço melhor, a tradição bíblica, a função dos profetas sempre foi de confronto com os poderes estabelecidos, e me parece que grande parte do Antigo Testamento é, na verdade, o registro da infidelidade do povo e suas consequências. No livro do profeta Miqueias há um bom exemplo da corrupção moral dos governantes e sacerdotes: “Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó e magistrados da casa de Israel, vós que detestais o direito, que torceis o que é reto, vós que edificais Sião com o sangue e Jerusalém com injustiça! Seus chefes julgam por suborno, seus sacerdotes ensinam por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro. E eles se apoiam em Iahweh, dizendo: ‘Não está Iahweh em nosso meio? Não virá sobre nós a desgraça!’. Por isso, por culpa vossa, Sião será arada como um campo, Jerusalém se tornará um lugar de ruínas, e a montanha do Templo, um cerro de brenhas!” (Miqueias 3,9-12). Os inúmeros vaticínios, descaminhos e condenações desse tipo de conduta deveriam – pelo menos para quem é cristão – nos servir de alerta e submeter nossas expectativas à prudência. Mesmo as recomendações neotestamentárias do apóstolo Paulo em relação aos governantes – sobre as quais já tratei em artigo recente aqui, nesta Gazeta do Povo – deveriam ser colocadas sob escrutínio do contexto e do ceticismo em relação a todo projeto humano.

A Lei de Deus não é mais um absoluto inquestionável e a posição dos profetas, se não desapareceu, passou a disputar espaço com a ciência e com o próprio ceticismo cientificista

Porém, na modernidade, outros elementos se somaram ao horror metafísico – arrefecido pelo Iluminismo – na manipulação do povo diante da relação corrupta entre o sagrado e o profano. A Lei de Deus não é mais um absoluto inquestionável e a posição dos profetas, se não desapareceu, passou a disputar espaço com a ciência e com o próprio ceticismo cientificista. Mas há mais. A modernidade igualmente fez surgir uma série de pressupostos que, ao mesmo tempo que nos trouxeram progresso tecnológico e facilidades sem fim, também provocou uma mudança em nossas relações pessoais e institucionais. Peguei-me pensando nisso esses dias e me lembrei de um livro que li há mais de 15 anos e cuja análise ainda permanece atualíssima: Icabode, de Rubem Amorese.

Amorese, que é escritor e colunista da Revista Ultimato, escreveu Icabode após, no fim dos anos 1980, assistir a uma série de palestras do dr. Os Guinness, arguto crítico social inglês, e dar-se conta da total pertinência de suas reflexões. “Icabode” é um termo retirado da Bíblia. Em 1 Samuel 4, após uma série de confrontos, os filisteus levaram a Arca da Aliança; Fineias e Hofni, filhos de Eli que estavam em batalha, morrem, bem como seu pai ao saber de sua morte. A esposa de Fineias – que era um sacerdote corrupto – estava grávida e, ao saber da morte de seu marido, do cunhado e do sogro, bem como da derrota do povo de Israel, entrou em trabalho de parto. Ao dar à luz pediu, à beira de morte, que nomeassem o filho de Ey-kabôd, que significa “onde está a glória [de Israel]?”. O livro parte da premissa de que o mundo moderno – segundo sua acepção, é o que “reflete a última moda, a última invenção, a ideologia do momento” – tem um “tripé estruturador”: a pluralização, a privatização e a secularização.

A pluralização, que, segundo Amorese, é “um fenômeno tanto da realidade sensível quanto da consciência correspondente”, mostra que “os portadores da modernidade produzem um feito inescapável de mostra, como num supermercado, uma enorme quantidade de opções para um mesmo produto”. Ainda que essa pluralidade sempre tenha existido, “nunca antes com a intensidade tal que pudesse produzir tal consciência de eleição: um processo inconsciente pelo qual entendemos que sempre podemos escolher, eleger, manifestar preferência como se passássemos a viver numa sociedade-supermercado, repleta de variedades”. O problema é que “no mundo da pluralidade não há absolutos” e tudo passa a ser uma questão de escolha, inclusive os valores morais. A religião, que já não ocupa mais o centro moral da sociedade, torna-se uma questão daquilo que te faz bem. Não há mais um compromisso dogmático estabelecido há séculos – quando não milênios –, mas uma variedade de religiões que podem se encaixar perfeitamente num código pessoal particular, privado; e isso nos leva à segunda parte do tripé, a privatização, sem o qual este primeiro não seria possível.

A privatização, diz Os Guinness, citado por Amorese, “pode ser definida como a ruptura produzida entre as esferas do privado e do público na vida moderna, havendo uma cristalização da importância do privado como a única esfera da liberdade e da realização individual”. É muito comum, entre meus alunos, quando estou lhes propondo uma reflexão sobre a Verdade, eles me dizerem: “mas não existe verdade absoluta; o que é verdade para você pode não ser para mim”. Eis aqui a reprodução exata da privatização; a adoção de um conceito de verdade pluralizado, do qual cada pessoa pode escolher a “verdade” que mais lhe agrada, transforma a vida social num verdadeira Babel moral; não há nem sequer um valor hierárquico a partir do qual possamos graduar a verdade e estabelecer que, de fato, algumas verdades podem ser relativas (como o gosto pessoal), mas outras são – e devem ser – absolutas (como a realidade de nossa existência, que Descartes ousou contestar). Como diz Amorese:

O mundo privado é um mundo instável, frágil e precário. Ao contrário da esfera pública, esta esfera da vida está ao sabor de diversas influências, sem dispor de lastro adequado para resistir. A fratura entre os dois mundos produz uma fragilidade crescente na esfera do privado, tornando-o especialmente vulnerável. No entanto, isso é pouco percebido, uma vez que ele aparece como o verdadeiro mundo dos homens. O mundo das realizações, o mundo das possibilidades.

E complementa que, para que um cidadão possa “conviver com a pluralidade, para que as opções feitas por cada um possam ser respeitadas e aceitas como culturalmente válidas, como um estilo moderno de vida, é necessário que elas sejam privatizadas [...] Toda vez que uma ‘opção’ for-lhe contestada, nosso cidadão lançará mão desse refúgio com a expressão – dá licença? A expressão não tem nada de mágica, nem de sinal secreto, mas simboliza o mecanismo de retirada para o privado [...] Talvez por isso, o mundo privado, à medida que se desenvolve e hipertrofia com a modernização da sociedade, se torna um mundo de desolação e solidão [...] O filho dirá a seus pais: ‘dá licença?’; os pais dirão aos filhos: ‘dá licença?’; os amigos dirão aos outros: ‘dá licença?’; os irmãos afastarão outros com um delicado ‘dá licença?’; o pastor ouvirá de suas ovelhas: ‘dá licença?’ E estaremos então vivendo num mundo de extrema vulnerabilidade”.

Na prateleira de opções morais, as pessoas preferem seguir aquilo que elas próprias decidem, ainda que isso resulte na perpetuação de seus problemas

A terceira parte do tripé é a secularização, que, segundo Os Guinness, novamente citado por Amorese, “pode ser definida como o processo por meio do qual as ideias e as instituições religiosas estão perdendo seu significado social”. Os preceitos religiosos retirados de suas doutrinas não mais fazem sentido para as pessoas, presas em suas vidas privadas. É comum os padres e pastores reclamarem, por exemplo, que as confissões e as reuniões de aconselhamento não surtem efeito, pois as pessoas simplesmente não acatam aquilo que são orientadas a fazer. Na prateleira de opções morais, as pessoas preferem seguir aquilo que elas próprias decidem, ainda que isso resulte na perpetuação de seus problemas. Algumas simplesmente mudam de religião, escolhendo uma que lhes exija menos compromissos morais e lhes traga algum conforto nas horas de crise existencial. O mundo secularizado é um mundo onde Deus passa a ser uma mercadoria a ser consumida e, pior, um ente espiritual pronto a satisfazer os meus desejos.

É sobre esse tripé que se sustenta a consciência moderna, um tripé que nos torna vulneráveis à influência dos mais variados processos de convencimento, da retórica utilitarista dos aproveitadores e da armadilha dos corruptos, tudo isso impulsionado pela pluralização, que nos confunde, e pela privatização, que nos aprisiona em nós mesmos, insatisfeitos. O resultado é a constante comparação com o outro privado; e, na exigência mimética de nossa felicidade individual a qualquer custo, caímos no ressentimento e no desejo de vingança – o combustível da tentação pelo poder.

Sobre isso falaremos na próxima semana.

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