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Todo o nosso conhecimento nos aproxima da ignorância,
Toda a nossa ignorância nos avizinha da morte,
Mas a iminência da morte não nos acerca de DEUS.
Onde a vida que perdemos quando vivos?
Onde a sabedoria que perdemos no saber?
Onde o conhecimento que perdemos na informação?
Os ciclos do Céu em vinte séculos
Afastaram-nos de DEUS e do Pó nos acercaram.
(T. S. Eliot, Coros de “A Rocha”)
No artigo da última semana obriguei-me a uma pequena digressão de nosso tema principal – a complexa relação entre religião e política – a fim de mapear o espírito de nosso tempo e nos permitir uma observação mais acurada das intenções que concorrem para a simbiose entre os poderes divino e terreno. A pluralização, a privatização e a secularização são características marcantes e indisfarçáveis da mente contemporânea, e é muito difícil, em tal situação, não se deixar seduzir por si mesmo ou por outros. Como diz Dostoiévski na parábola do Grande Inquisidor, em Os Irmãos Karamázov: “não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se”.
Pois, caríssimo leitor, não se trata de outra coisa senão do pecado mais grosseiro e cometido de todos: a idolatria. No contexto a que me propus tratar deste complexo tema – o cristão, pois não me permitiria julgar a religião alheia – a idolatria é o primeiro pecado repudiado nas Dez Palavras (ou Dez Mandamentos) – “Não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20,3) –, e que acompanha a tradição judaico-cristã ao longo da História sem nunca ter sido devidamente afastado de nosso meio; é aquele sob o qual mais vezes nos colocamos, pois “o coração é falso como ninguém, ele é incorrigível; quem poderá conhecê-lo?” (Jeremias 17,9).
Há idolatria desde o momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus
O Catecismo da Igreja Católica não tergiversa: “A idolatria não diz respeito apenas aos falsos cultos do paganismo. Continua a ser uma tentação constante para a fé. Ela consiste em divinizar o que não é Deus. Há idolatria desde o momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus, quer se trate de deuses ou de demônios (por exemplo, o satanismo), do poder, do prazer, da raça, dos antepassados, do Estado, do dinheiro, etc.”. E Martinho Lutero, em seu Catecismo Maior, não é menos enfático:
Pois ela [a idolatria] não consiste apenas em erigir uma imagem e adorá-la, mas, principalmente, num coração que pasma a vista em outras coisas e busca auxílio e consolo junto às criaturas, santos ou diabos, e não faz caso de Deus, nem espera dele este tanto de bem: que ele queira ajudar. Também não crê que procede de Deus o que de bem lhe sucede. Existe, além disso, outro culto falso. Trata-se da maior idolatria que até agora praticamos, e ela ainda impera no mundo […] Diz respeito apenas à consciência, quando essa procura ajuda, consolo e salvação em suas próprias obras e presume de forçar a Deus a lhe abrir as portas do céu; e calcula quantas doações fez, o número de vezes que jejuou, rezou a missa etc. Nessas coisas põe sua confiança e delas se abona, como se nada quisesse receber gratuitamente de Deus, mas obtê-lo por esforço próprio ou merecê-lo de modo supererrogatório, exatamente como se Deus tivesse de estar a nosso serviço e ser nosso devedor, nós, porém, os seus senhores feudais.
Curiosamente, a filosofia grega também apregoa a busca incessante pelo amor incorruptível – uma vez que o terreno é transitório, imperfeito e nos leva à idolatria. Por exemplo, Platão, em O Banquete, na figura da sacerdotisa Diotima, ensina Sócrates a buscar aquilo que é perfeito em si mesmo, dizendo: “Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo”. Ou seja, a ideia de que pecam aqueles que “jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos 1,22-23), não está só na Bíblia.
Voltando, devo alertar-te, perspicaz leitor, que não pretendo discutir o porquê das coisas serem assim; livre-arbítrio e predestinação, bem como a teodiceia são preocupações que atravessam a história da teologia, e há volumes e volumes de obras sobre o tema; não serei maluco de tentar solucionar um problema sobre o qual gênios como Agostinho, Tomás de Aquino, Leibniz e C. S. Lewis se debruçaram. A mim cumpre somente constatar um fato: com uma recorrência impressionante investimos contra ordem de nossa alma e contra a ordem da sociedade; e não é necessário que ninguém nos acuse, pois nossa consciência é excelente juíza.
Mas, assim como no mundo antigo a relação entre religião e política era exercida em esferas superiores, com a própria divinização do governante por um sacerdote ou profeta, a modernidade inaugura um componente novo na equação, aquilo que Eric Voegelin chama de “o espírito do povo” (Volksgeist), que foi elemento fundamental de regimes como o fascismo e do nazismo. Diz Voegelin em As religiões políticas:
Mussolini fala do fascismo como de uma ideia religiosa, e da política do regime como de uma política religiosa, uma vez que o fascismo parte do pressuposto que o homem está ligado a uma Volontà obiettiva, e que, através deste laço, adquire a personalidade num reino espiritual, no reino do seu povo […] “O Führer é penetrado pela ideia; ela age através dele. Mas é igualmente ele quem pode dar a forma viva a esta ideia. É nele que se realiza o espírito do povo e se forma a vontade do povo; é nele que o povo, englobando todos os indivíduos, e por isso nunca completamente reunido concretamente na sua totalidade, adquire a sua forma visível. Ele é o representante do povo”, escreve um teórico alemão atual . O Führer é o lugar onde o Volksgeist penetra na realidade histórica; o Deus intramundano fala ao Führer como o Deus supramundano falava a Abraão, e o Führer transforma as palavras divinas em ordens aos seus partidários e ao povo.
Na política, o poder é o objeto desejado por todos, e é disputado mimeticamente por políticos e seus asseclas
Dessa forma, a chancela de um Estado autoritário vem diretamente do povo; mas não do povo como um todo, pois, como diz Voegelin, “para certos homens, um pequeno número, o Volksgeist vive mais fortemente, enquanto para outros, a multidão, vive mais debilmente, mas é somente num único que se exprime plenamente, no Führer”. A imensa maioria da massa de apoiadores de um Estado autoritário é composta por pessoas enfeitiçadas pelo desejo mimético de que fala René Girard, que é o desejo manifesto por um objeto que é desejado por um modelo. Como diz Girard em Evolução e conversão: “se o desejo é mimético, isto é, imitativo, então o sujeito desejará o mesmo objeto possuído ou desejado por seu modelo”. Na política, o poder é o objeto desejado por todos, e é disputado mimeticamente por políticos e seus asseclas; tal disputa desencadeia os quatro estágios do insight girardiano que, somados ao desejo mimético, são: a rivalidade mimética, a crise mimética e, por fim, o bode expiatório, que deverá ser sacrificado a fim de restabelecer a paz. Para Girard, o mecanismo do bode expiatório é o inaugurador da Cultura, e está presente no fundamento das religiões e da ordem social.
Nesse sentido, a religião é um componente absurdamente agregador, pois se o objeto desejado – o poder – está sendo disputado por um escolhido ou enviado de Deus, sobre o qual repousam expectativas messiânicas, o pecado da idolatria se instaura e resulta no que Voegelin chama de apocalipse metastático, a tentativa ideológica de alterar a realidade numa imanentização do eschaton e o estabelecimento de um paraíso na Terra – reflexão que Voegelin desenvolve detalhadamente em A nova ciência da política. O Estado, então, na figura de seu governante, passa a ser o portador da Boa Nova imanente, e Deus passa a ser o seu mero fiador.
É óbvio que um Cristianismo bíblico, fundamentado no conhecimento e na piedade cristãs milenares, jamais sucumbiria a essa sedução demoníaca. No entanto, o que vemos, não só no período do nacional-socialismo e do fascismo como em todos os movimentos políticos de caráter messiânicos da História, é que não só indivíduos cristãos sucumbem, mas pastores conduzem suas igrejas em direção a esse ideal egofânico, que faz, nas palavras de Voegelin em Reflexões autobiográficas, “da epifania do ego a experiência fundamental, eclipsando a epifania de Deus na estrutura da consciência clássica e cristã”. Nesse sentido, a advertência de C. S. Lewis, no artigo O progresso é possível, são certeiras:
Não gosto que as pretensões do governo – as razões pelas quais ele exige minha obediência – sejam muito elevadas. Eu não gosto das pretensões mágicas da medicina nem do direito divino de Bourbon. Isso não é apenas porque não acredito em mágica nem na Politique de Bossuet. Eu creio em Deus, mas detesto a teocracia. Afinal, cada governo é composto por meros homens e é, a rigor, um substituto do verdadeiro poder; caso acrescente a expressão ‘Assim diz o Senhor’ aos mandamentos, estará mentindo – e mentindo de forma perigosa.
Meros homens, adotando aquilo que o filósofo Michael Oakeshott chama de a Política da Fé, atitude que, fatalmente, termina – a História nos mostra – em caos e violência. Mas disso trataremos na terceira e última parte de nossa reflexão sobre religião e política.