“A obra de Verdi baseia-se em firmes convicções morais e religiosas, embora não sejam as da tradição cristã, mas as do romantismo político e humanitário do Risorgimento. Os polos dialéticos desse mundo são, conforme a expressão feliz de Stoessinger, o prazer e a fidelidade, o gozo e o sofrimento, a obcecação e a revelação da verdade, o sacrifício e a vitória.” (Otto Maria Carpeaux, A História da Música)
Como o leitor já sabe, sou um diletante curioso e dedicado quando o assunto é música. Não tenho formação musical; estudei pouquíssimo de teoria musical, toquei corneta e trompete na pré-adolescência (época áurea das fanfarras e bandas), dedilhei um pouco de violão, cantei na igreja e em alguns casamentos e karaokês. E foi isso. Mas, como disse num artigo sobre minha relação com a música – aqui, nesta Gazeta do Povo –, “sou uma pessoa musical. Não sei precisar quando a música, digamos, me atingiu, mas provavelmente foi desde que nasci, pois minha família é igualmente musical – apesar de nenhum de nós ser músico”.
Por isso não me canso de compartilhar nesta coluna minhas mais significativas experiências musicais, pois creio que sejam norteadoras de quem eu sou e de como penso, são referências culturais civilizatórias para, que julgo serem inspiradoras para quem me lê. Seja com a música popular (aqui, aqui e aqui), com o rap (aqui e aqui), com a música clássica (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) ou a ópera (aqui e aqui), a música, que é um modo imediato de conhecimento, tem capacidade de nos preencher daquela admiração, daquele espanto que é próprio da filosofia. E no último fim de semana não foi diferente, pois fui assistir, no Theatro Municipal de São Paulo, pela primeira vez ao vivo, a uma obra que sei quase de cor de tanto que já ouvi e assisti em vídeo: o Réquiem de Giuseppe Verdi.
Verdi teve a ousadia de fazer a estreia usando mulheres como solistas; à época, mulheres não podiam cantar na igreja e os compositores costumavam usar vozes de crianças.
Tendo sua estreia em 1874, é a mais operística das missas de réquiem (e inclusive foi criticada por isso), cuja composição teve um caminho curioso para vir à existência. Famosíssimo por suas óperas – dentre elas, Simon Boccanegra, Otello, Falstaff e a estupenda Aída –, Verdi foi, como diz Otto Maria Carpeaux em seu A História da Música, “uma das personalidades mais simpáticas em toda a história da música. Homem áspero e intratável, da maior intolerância quando se tratava da realização dos seus superiores objetivos artísticos, foi natureza generosa, ótimo amigo, livre de invejas e ciúmes, de grande retidão de caráter e de natural sabedoria da vida”; ou seja, um homem comprometido com a sua vocação e com seus ideais de vida.
Filho do dono de uma taberna e da filha de um estalajadeiro, nasceu em Le Roncole, no município de Busseto, na Itália, em 10 de outubro de 1813; não foi tão pobre quanto alguns biógrafos costumam apontar, mas não teve vida abastada. Era precoce e talentoso; o biógrafo Julian Budden diz que “seus contemporâneos lembravam-se dele como um menino solene e reservado para quem a música significava tudo, mesmo que fosse apenas o toque de um realejo itinerante. Certa vez, quando servia na igreja de San Michele, ele estava tão absorto no canto que se esqueceu de cumprir seus deveres e recebeu uma bofetada do padre enfurecido. ‘Que Deus te dê um corretivo!’ O menino gritou enquanto se levantava”. E continua, em seguida:
“O organista de S. Michele foi Don Baistrocchi, que também lecionou na escola primária. Foi ele, dizem, quem primeiro descobriu a inclinação musical de Giuseppe e convenceu Carlo [seu pai] a comprar-lhe a ʻmaldita espinetaʼ que pertencera a um padre do bairro; e existe uma relíquia mais tangível na forma de um cartão assinado por um tal Stefano Cavalletti, reparador de instrumentos, recusando o pagamento por ter reparado o mecanismo do teclado e acrescentado pedais, ʻvendo a boa disposição que o jovem Giuseppe Verdi tem para aprender a tocar seu instrumentoʼ. A data é 1821.”
No entanto, segundo os padrões da época, demorou um pouco para conseguir uma oportunidade. Aos 20 anos mudou-se para Milão com o propósito de continuar seus estudos. Depois de um tempo, voltou a Busseto e, com ajuda financeira de Antonio Barezzi, um rico mercador, voltou a Milão e iniciou suas apresentações na casa de Barezzi. Casou-se com a filha do mecenas, Margherita Barezzi, de quem foi professor. Mas uma sequência de tragédias quase encurtou a carreira do compositor. Margherita teve dois filhos, um casal – Virginia Maria Luigia (1837-1838) e Icilio Romano (1838-1839) –, que morreram com um ano de vida, enquanto Verdi compunha sua primeira ópera. A esposa morreu logo depois, em 1840, aos 27 anos. Verdi prometeu nunca mais compor; ainda bem que desistiu desse propósito.
Seu Réquiem é uma obra de maturidade. Com a morte do grande compositor Gioacchino Rossini, em 13 de novembro de 1868, Verdi tem uma ideia, e a expõe numa carta a seu editor, Tito Ricordi, dizendo – de acordo com o Cambridge Music Handbook, escrito por David Rosen, sobre ele:
“Para honrar a memória de Rossini, gostaria que os mais ilustres compositores italianos (Mercadante à frente, mesmo que apenas por alguns compassos) compusessem uma Missa de Réquiem a ser celebrada no aniversário da sua morte. Gostaria que não só os compositores, mas todos os artistas intérpretes, além de prestarem os seus serviços, oferecessem também uma contribuição para pagar as despesas. Não gostaria que nenhuma mão estrangeira, nenhuma mão estranha à arte, por mais poderosa que fosse, prestasse a sua ajuda. Neste caso eu me retiraria imediatamente da associação. A missa deveria ser celebrada em San Petronio, na cidade de Bolonha, verdadeira casa musical de Rossini.”
Verdi compôs um Réquiem suntuoso, absurdamente romântico, que, diferentemente das obras de Mozart, Berlioz e Fauré, que têm um tom esperançoso, é uma obra que remete ao terror da morte
Reuniu 13 compositores – ele era o único conhecido – para a tarefa e ficou responsável pelo último movimento, o Libera me. Uma série de contratempos e burocracias impediu que o projeto prosperasse. Então, Verdi, quando da morte do escritor Alessandro Manzoni, autor do clássico Os Noivos, em 22 de maio de 1873, retomou os trabalhos e completou a missa em homenagem ao escritor e poeta, de quem era fã. Escreveu a Ricordi:
“Eu também gostaria de demonstrar o carinho e a veneração que tenho por esse Grande Homem, que já não existe, e a quem Milão tão dignamente honrou. Gostaria de musicar uma Missa pelos Mortos, a celebrar no próximo ano, por ocasião do aniversário da sua morte. A Missa teria dimensões bastante vastas e, além de uma grande orquestra e de um grande coro, também exigiria – não posso ser específico agora – quatro ou cinco cantores principais. Você acha que a cidade assumiria as despesas da apresentação? Eu mandaria fazer a cópia da música às minhas custas e eu mesmo conduziria a apresentação tanto nos ensaios quanto na igreja. Se você acredita que isso é possível, fale com o prefeito sobre isso.”
A Missa estreou em maio do ano seguinte, na igreja de São Marcos, e, apesar do grande sucesso de público, recebeu uma série de críticas não só de outros compositores – como Hans Von Büllow, que considerou uma ópera com roupa eclesial –, mas também da Igreja, pois, para começar, Verdi não era propriamente um religioso (muito pelo contrário) e as missas de réquiem fazem parte da tradição cristã, sendo consideradas obras fundamentalmente religiosas, que utilizam o texto da própria missa dos mortos e um tipo de canto monofônico que visa à contrição. Óbvio que outros compositores, como Hector Berlioz – cujo Réquiem é o de que mais gosto – já haviam traído a estrutura formal da missa, o que gerou uma reação de compositores católicos, os chamados cecilianos. Mas Verdi foi além: teve a ousadia de fazer a estreia usando mulheres como solistas; à época, mulheres não podiam cantar na igreja e os compositores costumavam usar vozes de crianças. A permissão para utilizar mulheres foi concedida a pedido de um padre culto e liberal, mas não sem entreveros, como afirma David Rosen: “Coube a [Dom Michele] Mongeri obter permissão do Arcebispo para permitir que mulheres participassem da apresentação. Isto acabou por ser concedido, desde que ʻ[sejam tomadas] todas as precauções possíveis para que as mulheres sejam escondidas por uma grade, [colocadas] de lado, ou algo semelhanteʼ. Na verdade, na apresentação de San Marco – mas não nas apresentações subsequentes – as coristas usaram ʻum vestido preto completo com a cabeça coberta por um amplo véu de lutoʼ”.
Verdi compôs um Réquiem suntuoso, absurdamente romântico, que, diferentemente das versões de Mozart (a mais famosa delas), Berlioz e Fauré, que têm um tom esperançoso, é uma obra que remete ao terror da morte. Seus Dies Irae é uma paulada sonora arrebatadora, com metais, tímpanos, flautas e frenéticos violinos que nos fazem ter a sensação de que o chão está se abrindo e vamos cair todos no inferno. Entre trechos sussurrados e explosões de agudos estridentes, a ideia de condenação eterna torna-se contundente, real, palpável, irretorquível. Sim, o ateu (ou agnóstico) conseguiu imprimir um verdadeiro choque apocalíptico com sua missa.
A apresentação no Municipal foi espetacular. A Orquestra Sinfônica Municipal (OSMSP) e o Coro Lírico Municipal estavam soberbos. Os solos ficaram por conta da italiana Isabel de Paoli (mezzo-soprano) e os brasileiros Tatiana Carlos (soprano), Paulo Mandarino (tenor) e Luiz-Ottavio Faria (baixo). A regência ficou nas mãos de um maestro que eu não conhecia, mas do qual gostei muito, Alessandro Sangiorgi, regente assistente da OSMSP. Meu destaque vai para Tatiana Carlos. Formada pela UFRJ, com mestrado em Vocal Performance na Brigham Young University, é premiada nacional e internacionalmente e é uma estrela em ascensão no universo lírico mundial. Tem um timbre firme e superafinado, que roubou a cena todas as vezes em que soltou a voz. É uma obra exigente, cheia de nuances, que privilegia o canto operístico (com Verdi não poderia ser diferente) e a capacidade da orquestra e o coro reproduzirem todas variações que os movimentos têm.
O Réquiem de Giuseppe Verdi é um daqueles monumentos musicais que nos lembram não só de nossa finitude, mas da grandiosidade divina da arte, capaz de nos transportar, imaginativamente – nesse caso, quase literalmente –, a outros mundos, líricos, trágicos, dramáticos, e nos transformar por completo.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS