Não basta que os negros afirmem que o preconceito de cor é a causa única de sua condição social, nem que o Sul branco responda que que tal condição social é a causa principal do preconceito. Ambos são causa e efeito recíprocos, e uma mudança em apenas um dos lados não trará o efeito desejado. Ambos precisam mudar, ou nenhum dos dois poderá melhorar. (W.E.B. Du Bois)
Semana passada tive a honra de ser um dos entrevistadores do prof. Dr. Sílvio Almeida no lendário programa Roda Vida, da TV Cultura. Almeida é advogado, professor na Universidade Mackenzie e na Fundação Getúlio Vargas e autor do livro Racismo Estrutural, que visa a discutir o racismo para além da concepção individual, como um “ato isolado de um indivíduo ou de um grupo”.
Para Almeida, “o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade […] é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade […] ”. Ou seja: “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea. De tal sorte, todas as outras classificações são apenas modos parciais – e, portanto, incompletos – de conceber o racismo”.
O fio condutor do programa era as manifestações que se iniciaram com a morte de George Floyd, nos EUA – assunto tratado por mim aqui, nesta Gazeta do Povo –, e espalharam pelo mundo um sentimento de indignação e um fervor revolucionário de consequências ainda não contabilizadas.
Porém, parte considerável do programa foi uma tentativa de compreender o conceito de racismo estrutural – que, apesar de curiosamente aceito pela maioria das pessoas que tem alguma ligação com a militância antirracista e/ou não querem ser acusadas de racistas por ousarem negar tal hipótese, ainda não me parece, de fato, compreensível sem certo esforço de aceitar suas premissas como dados irrefutáveis da própria realidade – e seus desdobramentos. Isso fica bastante evidente quando se procura uma solução para o problema, como mostrarei adiante. O livro de Almeida não oferece uma resposta objetiva, antes faz um diagnóstico complexo, tentando abarcar os aspectos individuais, políticos, jurídicos e econômicos do racismo, ainda que recusando-se a definir e discutir com profundidade alguns conceitos fundamentais, como instituição e estrutura, por exemplo.
Obviamente que o livro tem uma abordagem, digamos, estruturalista-marxista (apesar de não declarada), com base em autores como Jean-Paul Sartre – autor que Almeida estudou no doutorado –, Foucault e no próprio Marx (curiosamente, três pensadores europeus). Nem preciso dizer que qualquer pessoa que não tenha apreço por esses autores e suas ideias certamente questionará os argumentos de Almeida já nas primeiras páginas; mesmo porque há, em praticamente todo o livro, aquilo que Eric Voegelin tão bem diagnosticou nas obras desses pensadores: a “proibição de fazer perguntas”; ou seja, deve-se aceitar as premissas sem questionamentos. Por exemplo, quando Almeida está definindo o que são instituições – concepção que, associada à individual e estrutural, formam as três maneiras pelas quais, para ele, o racismo se manifesta –, diz:
Se é correta a afirmação de que as instituições são a materialização das determinações formais da vida social, pode-se tirar duas conclusões: a) instituições, enquanto o somatório de normas, padrões e técnicas de controle que condicionam o comportamento dos indivíduos, resultam dos conflitos e das lutas pelo monopólio do poder social; b) as instituições, como parte da sociedade, também carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as instituições também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e grupos que querem assumir o controle da instituição.
Aí eu pergunto: e se a afirmação não é correta e instituições não são (somente) isso? Essa resposta não temos. A obra é eivada por essas condicionais que não oferecem contrapontos a fim de estabelecerem, seguramente, conceitos fundamentais. Isso torna o racismo estrutural uma espécie de petição de princípio, pois só é possível concordar com a abordagem de modo satisfatório se aceitarmos sua existência como um fato incontestável.
No entanto devo ser justo e afirmar que o livro é um esforço notório e meritório de Almeida, e merece todo o respeito; e que mesmo discordando de grande parte de seus pressupostos, há momentos de inegável convergência entre nós. Por exemplo, quando ele diz que:
O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações. E a escola reforça todas essas percepções ao apresentar um mundo em que negros e negras não têm muitas contribuições importantes para a história, literatura, ciência e afins, resumindo-se a comemorar a própria libertação graças à bondade de brancos conscientes.
A isso chamo de cultura de subalternização do negro, pois, como já disse em outras ocasiões – inclusive aqui, aqui e aqui, nesta Gazeta do Povo –, para mim o racismo é sempre um processo consciente, praticado por alguém que, mesmo representando uma instituição, age e toma decisões, racionalmente, como indivíduo, seja discriminando negros no sistema de justiça ou concebendo pessoas negras como moral e/ou intelectualmente inferiores. Ou seja, a concepção individualista, para mim, é a única que pode ser chamada, em sentido estrito, de racismo.
Se não são as leis que, objetivamente, discriminam – como as leis de segregação americanas e sul-africanas, por exemplo –, indivíduos racistas que têm o poder de, com suas decisões, prejudicar pessoas negras, não podem ser diluídas nas instituições e nos cargos que ocupam, precisam ser responsabilizadas e punidas individualmente. Por outro lado, se as leis permitem, subjetivamente, esse tipo de influência, que sejam analisadas e corrigidas.
Não que Almeida diga o contrário disso; ele somente enfatiza que “ainda que os indivíduos que cometam atos racistas sejam responsabilizados, o olhar estrutural sobre as relações raciais nos leva a concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial”. Disso discordo, pois me levaria a concluir que toda a estrutura – seja ela qual for – precisa ser refeita, e nada me garante que será para melhor.
Voltando ao Roda Viva. Participar de um programa ao vivo é sempre um desafio, pois não sabemos muito bem como as coisas se desenrolarão. Ainda mais num programa cuja dinâmica se dá de maneira um tanto aleatória: ao fazermos uma pergunta, não temos a garantia de uma resposta satisfatória; e até que a palavra volte a nós, a entrevista pode ter mudado completamente de rumo. Em meu caso, por exemplo, preparei oito questões previamente, mas tive de adaptá-las de acordo com o assunto do momento em que a palavra chegou a mim, que fui o último a perguntar, antes do intervalo, em duas das minhas três perguntas.
Desse modo, meus questionamentos podem não ter saído como eu realmente queria, mas fiz o que pude dentro das condições estabelecidas. Outro fato que merece ser levado em consideração é que, ao que parece, todos os demais entrevistadores concordavam com o teoria do racismo estrutural, cabendo a mim a tentativa de, isoladamente, fazer um saudável contraponto.
Minha primeira pergunta foi sobre como fazer uma distinção entre o problema racial e o problema social, pois, ao que me parece, os negros são subalternizados na sociedade brasileira mais por serem pobres do que por serem negros. Tendo o Brasil republicano se constituído com base no patrimonialismo e no estatismo – já tratei disso também – que privilegia quem é rico e mantém na marginalidade e na dependência quem é pobre, sendo os negros são os mais pobres, fatalmente são os mais prejudicados, ainda que não haja leis que, diretamente, os prejudiquem. A cor pode ser – e quase sempre é – um agravante da discriminação, mas não é determinante; outros dados compõem o estereótipo da marginalização.
Liberdade e ascensão econômica dariam ao negro autonomia para buscar melhores oportunidades de formação e capacitação, bem como de empreender e competir – e, consequentemente, se integrar.
Esse era o projeto, por exemplo, de André Rebouças e de Booker T. Washington. E mesmo Almeida dizendo que “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”, me parece que com ampla liberdade individual e espírito de associação (para usar os termos empregados por Rebouças), o racismo pode ser, se não superado, equalizado pela própria alteração do status do negro brasileiro.
Porém, Sílvio insiste, e mesmo assumindo que a economia é um elemento “importantíssimo e fundamental”, diz que um sistema de desigualdade ainda produz no branco o que Du Bois chama de “salário psicológico”, que é, mesmo na pobreza, não sofrer com as desvantagens do racismo. Mas não sei, sinceramente, se isso responde à minha questão, mesmo porque ele importou uma observação específica de Du Bois, retirada de sua obra The Black Reconstruction in America, que aborda o período de 1860 a 1880. Na atualidade, se a economia é um elemento fundamental, solucioná-la seria um passo importantíssimo para a superação das outras dificuldades.
Em seu livro, ao afirmar que – e esse é praticamente o único momento em que oferece um caminho para a “solução” do problema:
É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade; b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero.
Ele está falando das chamadas ações afirmativas. No entanto, nada disso garante que o racismo individual diminuirá; muito pelo contrário, forçar uma integração pode aumentar a tensão. Sem contar que isso pode mudar a realidade de uma ou outra instituição de maneira específica. E sem levar em consideração, também, que se os negros não têm acesso à educação e capacitação de qualidade, não serão competitivos no mercado de trabalho e isso dificultará medidas de inclusão baseadas unicamente no critério de cor, ao menos para posições de importância institucional.
Nem as cotas resolvem isso bem, pois um diploma universitário não consegue, sozinho, suprir uma vida toda de ensino deficiente. Por isso, a mim parece que, quando Almeida afirma que “além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas”, tais mudanças profundas só podem ser alcançadas com liberdade econômica e espírito de associação, como desejava o sábio Rebouças.
Minha segunda pergunta (que tive de repetir na terceira, pois a resposta a desvirtuou) foi sobre a complexidade do livro de Almeida – que meus alunos do ensino público teriam dificuldade de compreendê-lo –, e como seria possível equacionar a ideia de racismo estrutural – prolixa, de difícil definição e vaga solução – com as necessidades urgentes de jovens da periferia como os meus alunos.
Veja, paciente leitor, em termos práticos, eu dizer a um jovem negro que o racismo é estrutural não lhe dará vantagem ou ferramental algum na hora de lutar por melhorar a sua vida; o efeito psicológico prático, ainda que indesejado, é fazê-lo ver o problema como insolúvel ou a solução como inalcançável, e que ele mesmo nada pode fazer. Ou seja, eu não sei como ser efetivo ao dizer a um/a aluno/a meu/minha, negro/a, que ele/a precisa estudar, buscar uma formação exemplar, um bom emprego e progredir, pois se o racismo permeia todas as estruturas, em algum momento ele/a será prejudicado/a por isso. Muitos que tiveram contato com essa teoria parecem já pensar assim – algo que pude confirmar pela pergunta complementar de meu companheiro de bancada (como convencer aqueles que já dizem que é inútil lutar?).
Sílvio Almeida respondeu que quem teve contato com o conceito e se sentiu impotente, não compreendeu nada; e que era obrigação dos professores ajudar os alunos a compreenderem conceitos complexos. E completou: “Por que eu trago o conceito de racismo estrutural? Para que as pessoas pensem assim: ‘bom, se o racismo é estrutural, não há o que fazer’? É justamente o contrário. Se a pessoa sabe que o racismo é estrutural, ela ficará mais responsável do ponto de vista individual, porque agora ela terá de ficar olhando para si, inclusive para o que ela faz em relação aos outros, para saber se ela não está reproduzindo essas atitudes, mesmo que de forma inconsciente […] Então a pergunta é: agora que eu sei que o racismo é estrutural, o que eu posso fazer para não ser levado por essa onda?’”. Ou seja – tentando encaixar essa resposta na minha pergunta –, se eu digo a um aluno meu que o racismo é estrutural, ele terá que tomar cuidado para não reproduzir o racismo? É isso? Não entendi.
Para teres uma ideia, prezado leitor, de como é tudo extremamente confuso, pedi, numa de minhas redes sociais, para que pessoas que concordam com a teoria do racismo estrutural manifestassem suas ideias para a solução do problema. As respostas parecem confirmar o que penso; abaixo, cito algumas.
Um listou quatro ações: “1) o Estado dar apoio aos pequenos empreendedores, que são, em sua maioria, negros; 2) Fazer uma super reformulação do ensino básico; 3) Dar posse de terra a quem estiver construindo ou morando; e 4) Descriminalizar as drogas, pois muitos negros deixariam de ser presos”. Outro disse: “reconhecendo que ele existe e que é fruto ativo do conservadorismo clássico”. Outro: “continuar a unir as minorias: negros, mulheres, indígenas, LGBTQIA+, pobres etc., numa só voz contra o nosso verdadeiro opressor, deixando de lado, assim, nosso sofrimento singular e abraçando uma Força Coletiva. E fundamental: focar na educação”. Outro, ainda: “Tem que iniciar pela valorização e divulgação da cultura negra […] Fortalecer negócios criados por negros; reforçar as ações afirmativas e melhorar a educação”.
Dois grandes amigos meus, Alê Santos e Eric Balbinus, também responderam. Alê disse: “Reorganizando as estruturas, garantindo acesso à educação, saúde e segurança pública de qualidade; acabando com dinâmicas herdadas em instituições e leis que, apesar de não declararem, promovem uma desigualdade para o povo negro, e aumentando a participação na economia”. E Eric: “Acho que passa pela promoção da cidadania, políticas públicas e reconciliação entre as partes, sem poupar quem, de forma racional, defende a exclusão. Mas o processo está sedimentado, nosso lugar é contribuir para que, em 100 ou 200 anos, seja só passado”.
Ou seja, as respostas são tão genéricas quanto institucionais e extremamente complexas do ponto de visa de sua realização efetiva; quase não há espaço para a ação individual. Muitos falaram em educação, que também considero fundamental; agora, é preciso definir que tipo de educação ou mesmo o que seria uma educação de qualidade. Gosto da sugestão de Du Bois em As almas da gente negra: “Por sobre o nosso socialismo moderno e fora do culto das massas, é necessário que persista aquele individualismo mais elevado que os centros de cultura protegem; é preciso que surja um respeito maior pela soberana alma humana que busca conhecer a si mesma e ao mundo à sua volta; que busca a liberdade de expansão e de autoconhecimento; que amará, odiará e trabalhará à sua própria maneira, sem peias, tanto diante do velho quanto do novo. Tais almas, em tempos passados, inspiraram e conduziram mundos e, se não formos completamente enfeitiçados pelo Rhinegold, tornarão a fazê-lo”.
E para terminar, em minha terceira e última pergunta do programa – que foi a mesma, reformulada e complementada com a afirmação de que os movimentos negros se fecharam em teorizações e diagnósticos e se esqueceram do aspecto prático da vida dos negros, coisa que entidades como a Frente Negra Brasileira (FNB) tinham como preocupação fundamental, Almeida disse que era preciso compreender as demandas como fruto do processo histórico, querendo dizer que a preocupação da FNB, que atuou na década de 1930, era com as chamadas “políticas de respeitabilidade” por conta da inserção do negro no processo de industrialização. Ou seja, alfabetização, formação técnica e retidão moral a fim de vencer o preconceito e a discriminação.
O que mudou de lá para cá? Bem, muita coisa, mas o problema, fundamentalmente, é o mesmo. A educação continua sendo um dos maiores (senão o maior) obstáculos para a transformação social, e o negro continua em estado de vulnerabilidade, marginalidade e suspeição. A carteirinha da FNB, por exemplo, dava respeitabilidade na hora de procurar um emprego; hoje nem isso temos. A FNB também tinha uma comissão para ensinar educação financeira e dar orientações para quem quisesse adquirir uma casa própria. As demandas mudaram? Não.
O fato é que o debate identitário e as teorizações abstratas europeias e afroeuropeias, adquiridas no ambiente acadêmico nos últimos 40 anos – somados ao ambiente barulhento das redes sociais –, aprisionaram a militância negra em ideologias, criaram uma dependência político-partidária – Sílvio Almeida é não só fruto como propagador disso –, e não dizem mais aos negros o que eles realmente precisam ouvir: que o racismo é um obstáculo, não um impeditivo, e que deve ser enfrentado com altivez e autoestima, e que o verdadeiro empoderamento reside na liberdade ampla e irrestrita e no fortalecimento de nossos laços comunitários e familiares. O resto, as teorizações e complexidades conceituais, deixamos para os acadêmicos.
Fica aqui o meu agradecimento à Vera Magalhães, à TV Cultura, aos demais participantes e, sobretudo, ao prof. Sílvio Almeida, pela conversa produtiva e que me fez refletir.
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