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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

“Sentimental eu sou…”: a morte da lógica no debate público

Platão e Aristóteles no centro da "Escola de Atenas", de Rafael Sanzio. (Foto: Wikimedia Commons)

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– Lógica! – disse o professor para si mesmo. – Por que não ensinam mais lógica nas escolas? (Prof. Kirke em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de C.S. Lewis)

A pergunta estupefata do professor Kirke, em epígrafe, ao concluir seu diálogo com Pedro e Susana Pevensie, na primeira das sete Crônicas de Nárnia, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de C.S. Lewis, é a mesma que me faço quase todas as vezes em que me envolvo em alguma discussão de internet. Parece uma pergunta boba, mas Lewis não estava brincando. Em 1943, sete anos antes de publicar a primeira história do leão Aslan, Lewis publicara um livro fundamental – segundo ele próprio, seu livro mais importante: A abolição do homem. Nesta curta, mas profunda obra, Lewis analisa os problemas causados pelo relativismo moderno na educação, alertando que o objetivo da educação, segundo Aristóteles, “é fazer com que o aluno goste e desgoste do que é certo gostar e desgostar”, pois, “quando a idade do pensamento reflexivo chegar, o aluno assim treinado, nas ‘afeições ordenadas’ ou nos ‘justos sentimentos’, facilmente encontrará os primeiros princípios na Ética”. Isso porque “nenhuma emoção é, em si mesma, um julgamento; nesse sentido, todas as emoções e sentimentos são alógicos. Mas eles podem ser razoáveis ou irrazoáveis na medida em que se conformam à Razão ou não conseguem conformar-se. O coração nunca toma o lugar da cabeça, mas ele pode, e deve, obedecer-lhe”.

O argumento de Lewis era de que a educação moderna estava produzindo os chamados Homens sem peito, pois o peito – que é o trono da magnanimidade – é que ordena as emoções (vísceras) e as combina com o intelecto (cérebro). Nenhum dos dois pode agir sozinho. Os intelectuais de seu tempo, capturados pelo racionalismo materialista que desembocara no cientificismo, se recusavam a admitir o valor das emoções. Mas, se naquele momento Lewis percebeu uma recusa dos intelectuais à sensibilidade, o que ocorre atualmente é o seu oposto: tudo o que importa são os sentimentos.

Já tratei desse assunto, indiretamente, aqui, nesta Gazeta do Povo – inclusive falando das ideologias do ressentimento que resultam dessa mentalidade –, mas agora gostaria de tratar de um aspecto específico desse sentimentalismo tóxico que cada vez mais tem tomado conta do debate público: a total ausência de lógica nas argumentações. Some-se a isso as falácias lógicas e as ideológicas, usadas à exaustão como verdades absolutas pelos pretensos reformadores sociais.

Se C.S. Lewis percebeu, em sua época, uma recusa dos intelectuais à sensibilidade, o que ocorre atualmente é o seu oposto: tudo o que importa são os sentimentos

A lógica é a principal propedêutica da filosofia, e se caracteriza por ser, segundo Nicola Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia – parafraseando Aristóteles –, “a disciplina que se prepara para investigar como ciência da demonstração e do saber demonstrativo”. A lógica também é parte do sistema de educação medieval, que, junto com a retórica e a gramática, formavam o Trivium. De acordo com a irmã Miriam Joseph, freira e educadora responsável por recuperar o sistema medieval, em 1935, ao incorporá-lo ao Saint Mary’s College, “a lógica é a arte do pensamento; a gramática, a arte de inventar símbolos e combiná-los para expressar pensamento; e a retórica, a arte de comunicar pensamento de uma mente a outra, ou a adaptação da linguagem à circunstância”. Com isso, formavam o mais poderoso sistema de educação do intelecto, jamais superado. O Quadrivium, estudo da aritmética, da geometria, da astronomia e da música, completava o quadro das sete artes liberais da Idade Média.

Recorreremos ao grande teólogo e filósofo Hugo de São Vítor, em seu Didascalion – a arte de ler, para uma definição histórica da lógica:

Portanto, como os pensadores antigos caíam frequentemente em muitos erros, eles obtinham várias questões, durante as disputas, algumas delas falsas e outras contrárias a si, parecendo-lhes impossível de acontecer que, diante de duas conclusões contrárias referentes à mesma coisa, ambas fossem verdadeiras. Parecia-lhes ambíguo concluir de qual raciocínio deveria discordar e em qual seria possível crer. Diante desta dúvida, consideravam ser necessário, antes de qualquer disputa, levar em conta a natureza verdadeira e íntegra [de cada coisa em particular]. E, uma vez conhecida a natureza delas, é que se poderia realmente entender o que foi compreendido das disputas e, portanto, verdadeiramente obtido a partir delas. Aqui neste ponto é que se dá a perícia oriunda da disciplina lógica. Disciplina a ser disputada, por meio de diversos modos [de argumentação], deparando-se com várias vias de pensamento, a ser distinguidas pelos raciocínios, sendo possível de reconhecer alguns como verdadeiros, outros como falsos; bem como terceiros que nunca serão falsos, e outros que sempre o serão.

Ou seja, a lógica foi uma necessidade do desenvolvimento filosófico, para que os pensadores evitassem cair em contradições e perdessem o fruto de seu trabalho intelectual. Platão, no Górgias, demonstra apreço pela argumentação lógica quando diz: “Mas que tipo de homem sou eu? Aquele que se compraz em ser refutado quando não digo a verdade, e se compraz em refutar quando alguém não diz a verdade, e deveras aquele que não menos se compraz em ser refutado do que refutar; pois considero ser refutado precisamente um bem maior, tanto quanto se livrar do maior mal é um bem maior do que livrar alguém dele. Pois não há para o homem, julgo eu, tamanho mal quanto a opinião falsa sobre o assunto de nossa discussão”. Todo aquele que deseja buscar a verdade deve submeter suas investigações intelectuais ao escrutínio da lógica, a fim de não produzir erros ou, pior, induzir outros ao erro caso dependam de suas ideias. Para isso, é preciso que se produzam ou se evoquem conceitos, e desses conceitos derivem definições.

Um conceito, segundo irmã Miriam Joseph, é “uma ideia universal existente apenas na mente, mas que tem seu fundamento fora dela: na essência que existe no indivíduo e faz dele o tipo de coisa (ente, ser) que é. Portanto, um conceito não é algo arbitrário, ainda que a palavra o seja. A verdade tem uma norma objetiva no real”. Já uma definição “torna explícita a intenção ou significado de um termo, a essência que este representa. Uma definição é simbolizada por uma descrição geral, não por uma palavra só. Uma definição é uma descrição geral perfeita”. Se um conceito é, segundo Jacques Maritain em A ordem dos conceitos: lógica menor, “o que o espírito produz ou exprime, em si mesmo”, uma definição é “o termo complexo de um conceito”. E para que a definição seja perfeita, deve obedecer algumas regras. Deve ser, segundo o Trivium: 1. “Conversível em relação ao sujeito, à espécie e ao termo a ser definido”; 2. “Positiva, preferencialmente à negativa”; 3. “Clara, simbolizada por palavras que não sejam obscuras, vagas, ambíguas nem figurativas”; 4. “Livre de uma palavra derivada da mesma raiz da palavra a ser definida”; e 5. “Simbolizada por uma estrutura gramatical paralela e não misturada”.

Lembro-me, quando fiz faculdade de Filosofia, de ter um especial apreço pela lógica, mesmo porque ter estudado lógica elementar e lógica booleana na faculdade de Tecnologia em Processamento de Dados tornou as coisas mais fáceis para mim, e também me tornou muito consciente de que um sistema, seja de pensamento ou de informática, só funciona se estiver muito bem fundamentado dentro de padrões lógicos. Construir um argumento em termos silogísticos é o mínimo que se espera de alguém que esteja em busca da verdade.

Um silogismo, de acordo com irmã Miriam Joseph, “é o ato de raciocínio pelo qual a mente percebe que, de uma relação entre duas proposições (chamadas premissas) que têm um termo em comum, necessariamente emergirá uma nova e terceira proposição (chamada conclusão), na qual não aparece o termo comum, este chamado de termo médio (M)”. Um silogismo “é a fórmula de raciocínio por excelência”, e pode ser válido ou inválido. Sendo assim, “o que quer que se afirme de um todo lógico deve, necessariamente, ser afirmado das partes desse todo; o que quer que se negue de um todo lógico deve, necessariamente, ser negado das partes desse todo”.

Todo aquele que deseja buscar a verdade deve submeter suas investigações intelectuais ao escrutínio da lógica, a fim de não produzir erros ou, pior, induzir outros ao erro caso dependam de suas ideias

O rigor lógico é utilizado não só para defender ideias e conceitos, mas também para combater as chamadas falácias, que são violações de princípios lógicos disfarçados sob a aparência de validade. “Revelar uma falácia”, diz irmã Miriam Joseph, “é revelar a razão pela qual a mente foi enganada ao tomar o erro por verdade. Classificar falácias é tentar achar as causas comuns para tal engano. Mas um dado argumento pode ser falacioso por mais de uma razão e, portanto, pode exemplificar mais do que uma falácia. Consequentemente, a classificação de falácias não é nem exaustiva, nem mutuamente exclusiva”.

Há muitas falácias classificadas, algumas mais comuns, outras mais complexas e raras. Uma das falácias mais utilizadas é o argumentum ad hominem, que “confunde o ponto em questão com as pessoas interessadas. Ataques ao caráter e à conduta das pessoas e insultos ou elogios pessoais substituem o raciocínio sobre o ponto em questão”. Outra muito comum é a que confunde o relativo com o absoluto (Adictum secundum quid ad dictum simpliciter): “uma declaração qualificada pode ser verdadeira quanto a uma coisa ou pessoa em particular, ou no que diz respeito a um determinado lugar, tempo, ou a uma determinada maneira, relação (como parte de um todo), comparação etc. O que for verdadeiro num aspecto pode não ser verdadeiro em um outro aspecto”. Quantas vezes, numa discussão, alguém faz uma afirmação que em determinadas circunstâncias é verdadeira, mas não em todas, e ainda assim a pessoa prossegue com o argumento como se este servisse absolutamente?

A falácia da causa falsa, então, é utilizada em praticamente todas as pesquisas estatísticas que tratam de “minorias sociais”: Mulheres ganham menos que os homens por causa do machismo; negros ganham menos que brancos e morrem mais por causa do racismo etc. Há muitos fatores a serem observados em se tratando de indicadores socioeconômicos, e a escravidão colonial não pode ser uma espécie de Deus ex machina; estabelecer uma causa abstrata é a maneira mais fácil (e desonesta) de avançar agendas políticas obscuras. Por fim, outras duas que são muito utilizadas no debate sobre desigualdades e violência: o argumentum ad populum, que diz que uma proposição é verdadeira simplesmente porque muitas pessoas acreditam nela; e também a famigerada petição de princípio, que presuma “que já está nas premissas a proposição a ser provada, isto é, a conclusão – ou uma proposição ampla o suficiente para incluir aquela a ser provada”.

Entretanto, sabemos que todo esse rigor, para a mente moderna, é considerado bobagem, uma vez que o próprio conceito de verdade desapareceu em meio a todo o relativismo que a filosofia assumiu e que contagiou o senso comum nos últimos séculos. É muito curioso quando indago meus alunos sobre o que é a verdade, vê-los responder quase unanimemente: “depende, o que é verdade para mim pode não ser verdade para você”. E não é pelo fato de serem jovens, pois a maioria dos adultos, atualmente, pensa da mesma maneira. Desse modo, como chegar a um acordo? Impossível. Que debate pode haver entre duas pessoas que nem sequer concordam que existem premissas verdadeiras? Sem contar que, muitas vezes, a negação dos argumentos é somente, como diz Schopenhauer em seu curioso manual Como vencer um debate sem precisar ter razão, fruto “da perversidade natural do gênero humano”, e complementa dizendo que “na maioria das pessoas, à vaidade inata associa-se a verborragia e uma inata deslealdade”:

Falam antes de ter pensado, e quando, depois, se dão conta de que sua afirmativa era falsa e de que não tinham razão, pretendem que pareça como se fosse ao contrário. O interesse pela verdade, que na maior parte dos casos deveria ser o único motivo para sustentar o que foi afirmado como verdade, cede por completo o passo ao interesse da vaidade. O verdadeiro tem de parecer falso e o falso verdadeiro.

Ouço muitas pessoas suspeitarem de meus argumentos, com ar triunfal, sob a justificativa de que “a maioria dos seus [meus] seguidores são brancos”; como se isso provasse alguma coisa, ou, pior, como se elas os tivessem contado. Reconhecer que a escravidão colonial foi um flagelo não dá a ninguém o direito de oferecer argumentos emocionais ou abstrações generalizantes para provar a desigualdade atual. Crer que o racismo no Brasil é estrutural é somente aderir a uma hipótese indutiva, a uma intuição; sua comprovação requer uma discussão aprofundada dos aspectos sociais, econômicos, políticos e jurídicos de todo o país, de todas as estruturas existentes, para, com muita sorte, termos a certeza de que, como diz o professor Sílvio Almeida, que “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional”.

Todo esse rigor, para a mente moderna, é considerado bobagem, uma vez que o próprio conceito de verdade desapareceu em meio a todo o relativismo que a filosofia assumiu e que contagiou o senso comum nos últimos séculos

Se a discussão requerer conceituação filosófica, não basta partir desta ou daquela concepção, demonizando todas as outras para provarmos o nosso ponto. A realidade, após análise detalhada dos fatos, deve ser o ponto de partida, sempre. O anacronismo deve ser duramente combatido, compreendendo-se, obviamente, que manter uma “distância reverente” do passado, como diz Jacques Le Goff em História e Memória, é saber que “a historiografia surge como sequência de novas leituras do passado, plena de perdas e ressurreições, falhas de memória e revisões”.

Urge recuperarmos, pelo menos entre formadores de opinião, em alguma medida possível num mundo em que as redes sociais se tornaram a principal fonte de conhecimento e informação, ao mesmo tempo em que emburrecem e desinformam, a prudência e a lógica no debate público. Muitas pessoas leem e se identificam com o que dizemos, e é nossa responsabilidade não sermos levianos para com o nosso público e não nos deixarmos seduzir, como diz Julien Benda, por “uma tomada de posição no atual enquanto atual, com soberano desprezo por quem pretenda colocar-se acima de seu tempo”. As reações e os sentimentos exaltados, naturais e legítimos nas pessoas em geral diante de fatos desagradáveis ou controversos devem ser mediados pela racionalidade daqueles cuja opinião é importante para trazer não só tranquilidade, mas também para, se possível, propor soluções.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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