Ouça este conteúdo
“E, se você chegasse para o negro da casa e dissesse ʻVamos fugir, vamos escapar, vamos nos separar delesʼ, o negro da casa olharia para você e diria: ʻCara, seu louco. O que você quer dizer com nos separar? Onde é que tem uma casa melhor do que esta? Onde vou poder usar roupas melhores do que estas? Onde vou comer comida melhor do que esta?ʼ. Assim era o negro da casa.” (Malcolm X, Mensagem às bases)
Demorei um pouco para me pronunciar quando as notícias sobre as denúncias contra Sílvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, e autor do sofismático Racismo Estrutural – espécie de livro-fundador do antirracismo pós-moderno brasileiro, cujas falaciosas bases teóricas já foram discutidas à exaustão por mim nesta Gazeta do Povo, sobretudo aqui –, começaram a aparecer. Não porque eu tenha me surpreendido com um ser humano sendo, bem, humano, ou por esse tipo de denúncia não ser lá muito incomum no contexto em que ocorreu. Mas porque sinto um verdadeiro enfado por todos os envolvidos.
Entretanto, o momento “hold my beer!” ocorreu quando o tom de perplexidade, que foi num crescendo até explodir numa verdadeira catarse de sentimentalismo infantilizado, tomou conta das redes sociais e da tevê, com jornalistas, influenciadores e militantes, sobretudo ligados à militância negra, tentando elaborar o ocorrido, aguardando (e pressionando) Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial e uma das denunciantes, se pronunciar e, obviamente, buscando o seu momento de autopiedade e engajamento em meio à tragédia alheia. O ator Lázaro Ramos foi o primeiro a me irritar de fato, com uma postagem no Instagram em que perorou longa e enfadonhamente, dramático:
“Vivemos um capítulo triste e devastador na luta pelo direito das mulheres, na luta antirracista, no campo político e na luta pelos direitos humanos. De todas as formas, perdemos. Precisamos de rigorosa apuração e justiça. Em primeiro lugar, quero deixar meu apoio total e irrestrito à ministra Anielle Franco e a todas as mulheres que tiveram a coragem de expor uma denúncia de assédio sexual. Reforçar a luta pelo direito das mulheres é uma luta de todos nós. Especialmente nós, homens. É vergonhoso ter de reconhecer que a combinação de machismo estrutural somado à cultura de violência contra as mulheres está intrínseca em nós. É devastador constatar, mais uma vez, que todas as mulheres estão sujeitas a sofrer violência simplesmente por serem... mulheres! Mas e agora...? Essa é a pergunta que me fiz o dia inteiro como um preto diante dessa situação. Foi a pergunta que vi meus irmãos e irmãs se fazendo na linha tênue entre defender o que precisa ser defendido e não reforçar o que o sistema já faz com pessoas pretas. É preciso estarmos vigilantes para não nos igualarmos a um sistema que massacra nossa existência e diante de uma situação que também é política, tudo isso sem esquecer da exposição a qual uma mulher e ativista negra foi colocada diante de uma situação como estas (sic). A pergunta segue... E agora? Infelizmente, para além desse apoio irrestrito às mulheres, não tenho uma resposta pronta. A única certeza que tenho é que hoje, independente do desfecho, uma comunidade inteira caminha para trás.”
A luta antirracista se tornou mero exibicionismo moral e sinalização de virtudes. Não há pauta, não há objetivos, não há nada. Há só uma meia dúzia de celebridades (e subcelebridades) que alcançaram destaque e estão ganhando dinheiro com essa ilusão
Não aguentei e comentei, mais singelo:
“Não há como retroceder quem NUNCA avançou. É só olhar as estatísticas. Não foi uma comunidade que avançou para retroceder, vocês avançaram, porque alguém abriu uma portinhola por onde vocês entraram e, com algum dinheiro, ficarem se autocongratulando e fingindo indignação enquanto nada se altera de fato. Essa tal luta de vocês é só sobre vocês, e não sobre os pretos que vão continuar morrendo, sem emprego, com fome, vulneráveis. O que precisa retroceder é a hipocrisia.”
Pois bem. O que eu disse serve para 95% dos comentários sobre o caso que vi na internet. Uns mais, outros menos dramáticos, mas todos com esse senso de perplexidade que beira o patético.
Sim, o caso é grave, e Sílvio Almeida era (ou é, eles ainda não se decidiram) alguém considerado por essa turma. No entanto, sua queda representa pouco para um movimento e uma luta que são centenários e têm inúmeros protagonistas, conhecidos e desconhecidos, mas todos importantes para, como dizia o grande José Correia Leite, o “levantamento da condição social, econômica e cultural” dos negros do Brasil, após a abolição e o malfadado golpe militar-republicano de 1889. Almeida é, digamos, neófito nessa luta, chegou agora e foi, na verdade, alçado a essa posição não tanto por seus resultados efetivos, mas por ter se tornado um token no qual a elite progressista podia depositar sua autoindulgência.
Tampouco Almeida diz alguma coisa ao negro-vida, aquele que, como eu mesmo disse, “não cabe em fabulações e não se encerra em análises acadêmicas; ele segue vivendo, construindo sua própria trajetória e lutando com as armas que tem”. Sua pseudoteoria só tem destaque por se tratar de um fetiche acadêmico e por ter sido aceita sem o devido refinamento crítico por todos que a divulgam sem ao menos compreendê-la. Porque, se a compreendessem, veriam que não faz sentido. É só a adaptação das diatribes do sociólogo americano Eduardo Bonilla-Silva.
A real é que a luta antirracista se tornou mero exibicionismo moral e sinalização de virtudes. Não há pauta, não há objetivos, não há nada. Há só uma meia dúzia de celebridades (e subcelebridades) que alcançaram destaque e estão ganhando dinheiro com essa ilusão. Venderam-se por um prato de lentilhas. É uma pseudoluta, que está a serviço da elite branca progressista, que, por se sentir culpada, abriu uma fresta em seus cofres para satisfazer gente ávida por posição de poder. É tudo uma grande farsa, e as manifestações de pesar, em tom de desolação total, de catástrofe absoluta, de todo esse pessoal pela queda de Almeida são só fingimento e tentativa de se limpar na sujeira de seu ídolo de barro. No privado estão todos disputando entre si e triturando uns aos outros.
E a dura verdade – pelo menos para eles –, é que Sílvio Almeida já está no passado. Acabou. Será esquecido antes que possa provar qualquer coisa em sua defesa. Aliás, já foi substituído pelo símbolo máximo do progressismo atual, uma mulher preta. Mulher essa que, inclusive, é ré em processo de superfaturamento no governo de MG, mas isso é melhor deixar para lá. E Lula, que, com seu partido, há décadas usa os negros como instrumento retórico de seus projetos de poder, não se fez de rogado para, rapidamente, lançar o ex-célebre ex-ministro na fogueira das vaidades, dizendo, em entrevista concedida pouco tempo antes de demitir Almeida, que “alguém que pratica assédio não vai ficar no governo”.
Para piorar, outras denúncias, cada vez mais escabrosas, vêm surgindo e tratarão de minar completamente a capacidade de o ex-ministro levantar a cabeça do mar de lama em que se enfiou. O colunista Guilherme Amado, do jornal Metrópoles, vem publicando matérias com denúncias gravíssimas relatadas por ex-funcionários do ministério. Numa delas, o ex-diretor de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua do Ministério dos Direitos Humanos, Leonardo Pinho, disse que “chorou e teve problemas de saúde em razão de uma ocasião em que Almeida o ameaçou, depois de uma série de casos de assédio moral”; que Almeida “pediu para gravar reuniões com a minha equipe, que tinha se recusado a assinar documentos fora do fluxo do ministério”, e que, ao se recusar, “ele se levantou da mesa, xingou e deu socos na mesa. Me disse que os meus dias estavam contados”. E, para botar o último prego no caixão de Almeida, disse: “No governo Bolsonaro, tive reuniões com a Damares Alves, então ministra de Direitos Humanos, e com o general Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde. Nunca fizeram algo parecido comigo”.
Sílvio Almeida já está no passado. Acabou. Será esquecido antes que possa provar qualquer coisa em sua defesa. Aliás, outras denúncias, cada vez mais escabrosas, vêm surgindo
Ou seja, nem o desespero sentimentalista e infantil de adultos aduladores conseguirá aplacar a realidade. Nem a feminista Milly Lacombe, com seu artigo no UOL, intitulado “Como acreditar em Anielle Franco sem cancelar Sílvio Almeida”, em que tenta contemporizar as coisas dizendo: “o caso envolvendo Sílvio Almeida é complexo e mobiliza muitos sentimentos. Tristeza, desespero, agonia, angústia, raiva, aflição, ansiedade, solidão. Sílvio é um dos nossos. É genial. É luz na escuridão capitalista. É norte. E, é possível, também um abusador”, será capaz de salvar o acadêmico (ou ex). Nem o Grupo Prerrogativas (o afetado Prerrô), e seus próceres do progressismo judiciário, e sua “passada de pano” no caso de seu aliado, pedindo cautela e presunção de inocência – algo que não pediria a qualquer pessoa de direita –, e finalizando sua nota de modo patético: “É muito triste envolverem o Prerrogativas nisso. Muito mesmo. Como se tivéssemos de ser juízes de um caso sem autos. Não somos, não precisamos ser. E estamos do mesmo lado que sempre estivemos”, ajudará Almeida. Ele está só, e só permanecerá.
Por isso, nós, sociedade brasileira – e, mais especificamente, os negros brasileiros –, só avançaremos de fato quando largarmos esse discurso vazio pronto, academicamente construído por brancos europeus com complexo de culpa, e pensarmos o Brasil em sua especificidade. O negro brasileiro não é americano, tampouco a projeção de maníacos como Michel Foucault. Precisamos nos compreender e compreender os nossos problemas sociais de modo concreto, sem fantasias, sem teorizações importadas a esmo, sem submissão ideológica a teorias revolucionárias de gabinete. E sem falsos deuses – pois nos bastam os grandes exemplos, muitos que essa coluna tem, insistentemente, divulgado.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos