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“Ou será que, de acordo com certas benévolas conjecturas, [Sócrates] não queria, em absoluto, permitir que almas profanadas por todas as paixões da terra aspirassem às coisas divinas, ao conhecimento das causas primeiras, dependentes, segundo cria, da soberana vontade do único e verdadeiro Deus? Por isso pensava que somente a mente purificada poderia compreendê-las.” (Santo Agostinho, A Cidade de Deus)
Num mundo dominado por paixões, é muito difícil manter os olhos naquilo que os antigos filósofos chamavam de virtude. Aristóteles diz, na Ética a Nicômaco que a virtude é fruto do hábito, ou seja, “nem por natureza nem contrariamente à natureza a excelência moral [virtude] é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito”. De modo que só é possível ser virtuoso aquele que pratica a virtude, aquele que busca, para a sua alma, uma “disposição [...] relacionada com a escolha de ações e emoções; disposição esta consistente num meio termo [...] determinado pela razão”. Quer coisa mais difícil do que essa, caríssimo leitor, quando tudo o que temos diante de nós são interesses materiais dos mais variados competindo pela nossa atenção?
Conversando com meus alunos recentemente sobre o tema, eu lhes propus uma análise de uma frase conhecidíssima da política brasileira – muito ligada, por motivos óbvios, a Paulo Maluf, ex-prefeito e ex-governador de São Paulo: Rouba, mas faz. Minha questão era analisar nossa leniência para com desvios de conduta moral mediante vantagens materiais; era verificar o ônus e o bônus (se há) de determinado comportamento tão arraigado em nossa cultura. Um país de população muito pobre como o nosso – e de milhões de miseráveis – é terreno fértil para que as pessoas, que muito sofrem, aceitem de seus governantes um comportamento reprovável desde que alguma coisa seja feita para aplacar-lhes as extremas necessidades. Nesse sentido o rouba, mas faz seria um grito de socorro de um povo geralmente abandonado por seus governantes e por sua elite.
O comportamento dos governantes é tão somente o reflexo de nossa própria natureza notoriamente falha. Aceitamos isso deles porque aceitamos de nós mesmos
Mas não é só isso. Tal leniência penetra nossa vida e nosso comportamento pessoais de maneira muito acentuada também, e aceitar isso de nossos políticos é tão somente o reflexo de nossa própria deficiência moral – não disse Platão que o homem é a Cidade em miniatura? O comportamento dos governantes é tão somente o reflexo de nossa própria natureza notoriamente falha. Aceitamos isso deles porque aceitamos de nós mesmos; somos tolerantes com seus desvios de conduta moral porque correspondem aos nossos, caso contrário nossa vergonha seria igualmente notória. O esforço de não cedermos aos impulsos mais degradados de nossa natureza passa por uma profunda consciência de quem somos e de qual o nosso papel na sociedade. E, provavelmente, o maior modelo ocidental de virtude moral – e aqui excluo Jesus Cristo, pois, como cristão, julgo que seu “modelo” não foi propriamente de virtude moral, mas de remissão cósmica – foi Sócrates, que, apesar de não ter escrito nada, teve seu exemplo de inflexível virtude tão bem reconstruído e eternizado por Platão, seu dileto discípulo, não só n’A Apologia de Sócrates, mas no diálogo Críton.
As preocupações de Sócrates causaram uma verdadeira virada antropológica na filosofia de seu tempo, pois mudaram o foco das investigações do cosmos (céu) para o anthropos (homem), num avanço assumido e completado por Platão, que, posteriormente, reverteu a perspectiva novamente para o cosmos. No entanto, foi a ousadia moral do ateniense que lhe causou problemas com os poderosos, que, a partir de falsas acusações o julgaram e condenaram, aos 70 anos, a tomar cicuta e morrer diante da estupefação de seus discípulos.
A história, para quem não conhece, pode ser resumida assim: após receber de seu amigo de infância Querofonte a informação de que o Oráculo de Delfos afirmara ser ele, Sócrates, o homem mais sábio de toda a Grécia, perturbou-se, pois, como ele mesmo diz na Apologia, “tinha plena consciência de não ser nem muito sábio nem pouco”. Então, por que a Pítia – a sacerdotisa do templo de Delfos – diria aquilo? Tal questionamento levou Sócrates não a duvidar dos deuses, mas a interrogar aqueles que eram, na sociedade ateniense, considerados os mais sábios, começando – e isso não é uma coincidência, atento leitor – por um político, a fim de mostrar que algum engano havia na interpretação do oráculo. No entanto, ele se dá conta de algo surpreendente: “Pode bem dar-se que, em verdade, nenhum de nós conheça nada belo nem bom; mas este indivíduo, sem saber nada, imagina que sabe, ao passo que eu, sem saber, de fato, coisa alguma, não presumo saber algo. Parece, portanto, que nesse pouquinho eu o ultrapasso em sabedoria, pois, embora nada saiba, não imagino saber alguma coisa”.
E assim se repetiu quando indagou poetas e artesãos, que tinham algum domínio de sua arte particular, mas ignoravam todo o resto. Entretanto “julgavam-se também proficientes nas questões mais abstrusas, donde estragar esse defeito fundamental de todos a sabedoria de cada um”. Diante de tal constatação, Sócrates conclui:
Em cada caso concreto, sempre as pessoas presentes imaginavam que eu era entendido no assunto em que punha a nu a ignorância dos demais. Mas o que eu penso, senhores, é que em verdade só o deus é sábio, e que com esse oráculo queria ele significar que a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que não se referia particularmente a Sócrates e que se serviu do meu nome à guisa de exemplo, como se dissesse: Homens, o mais sábio dentre vós é como Sócrates, que reconhece não valer, realmente, nada no terreno da sabedoria.
Isso foi o suficiente para irritar os poderosos, que o acusaram de corromper a juventude, negar os deuses da Polis e adorar divindades estranhas. Nem mesmo sua argumentação profunda e sincera foi capaz de demovê-los. E aqui entram em cena sua heroica resignação ante as muitas possibilidades que tinha de escapar de tão absurdo veredito. Ainda na Apologia, ele diz: “Talvez alguém me objete: Não te envergonhas, Sócrates, de teres adotado um gênero de vida que hoje poderá acarretar-te a morte? Ao que eu daria esta resposta justa: Estás enganado, amigo, se imaginas que, por menos que valha uma pessoa, deve pensar em morrer ou viver, em vez de considerar apenas se procedeu com justiça ou injustamente em todos os seus atos e se se comportou como homem de bem ou como celerado”. Mas seu verdadeiro exemplo de superioridade moral vem de sua breve conversa com seu velho discípulo Críton, no diálogo platônico homônimo.
Críton vai visitar Sócrates na prisão e tentar convencê-lo a fugir, pois o momento de sua execução se aproxima e é de conhecimento de todos que as acusações não procedem. Seus discípulos estão dispostos a correr o risco de tirarem o mestre da cidade e levá-lo, com sua família, em segurança, despendendo de poucos recursos e usando alguns contatos que tinham, para um local onde as autoridades não o encontrassem. No entanto, Sócrates é firme em suas convicções e em sua certeza de que, caso fugisse, perderia a razão tornando-se um foragido. Nem mesmo o apelo de Críton mencionando seus filhos – Sócrates tinha três –, que seriam privados do pai e cresceriam sem sua influência e educação, consegue fazê-lo aceitar a fuga: “E valerá a pena viver, se vier a corromper-se o que em nós se deteriora com a injustiça e se aperfeiçoa com a justiça? Ou devemos considerar mais vil do que o corpo essa qualquer coisa que há em nós que se relaciona com a justiça e a injustiça?”
Melhor é manter os princípios, ainda que, com isso, não só deixemos de receber benefícios materiais, mas também nos prejudiquemos
Ou seja, Sócrates não está disposto a assumir o risco de corromper a sua alma em troca de benefícios materiais, mesmo sabendo que a condenação que sofre é injusta. Que ele questiona a falta de retidão moral dos governantes e poderosos fica bem explícito em sua defesa, pois aqueles que o acusam e condenam são comprovadamente deficientes em seus julgamentos; de sua parte, proceder de maneira diferente seria simplesmente “desobedecer à divindade” que o vocacionara. Coloca-se, então, no lugar das Leis para asseverar a Críton em seu nome:
Hoje, porém, tu partes, se partires, condenado injustamente, não por nós, as Leis, mas pelos homens. Mas no caso de fugires por maneira tão vergonhosa, respondendo à injustiça com injustiça e ao mal com mal, e rompendo os pactos e os convênios que havias feito conosco, e causando mal a quem menos deverias causar, a saber, a ti mesmo, a teus amigos, à pátria e a nós outras, não somente nos aborreceremos contigo enquanto viveres, como não te farão no Hades boa acolhida nossas irmãs, sabendo que tentaste destruir-nos quando de ti dependia. Não te deixes persuadir, pois, por Críton, que deseja que assim procedas, mas por nós.
Com isso, convence seu amigo de que melhor é manter os princípios, ainda que, com isso, não só deixemos de receber benefícios materiais, mas também nos prejudiquemos. É isso que fez o gigante Santo Agostinho reconhecer – em continuação à epígrafe deste breve artigo – que “a razão que o levava a julgar ser necessário instar-se na purificação da vida, mediante os bons costumes, para que a alma, aliviada das deprimentes libidos, ascendesse com força natural às coisas eternas e, com pureza de inteligência, contemplasse a natureza da luz incorpórea e incomutável, em que vivem estavelmente as causas de todas as naturezas criadas”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos