“Mas, detrás de tudo isso ainda paira, silencioso, o profundo sentimento religioso do verdadeiro coração negro, o poder mobilizador e desgovernado de potentes almas humanas que perderam a estrela-guia do passado c buscam, na grande noite, um novo ideal religioso. Há de chegar o dia do Despertar, quando o vigor contido de dez milhões de almas jorrará irresistivelmente em direção ao Grande Objetivo, fora do Vale da Sombra da Morte onde tudo o que torna a vida digna de ser vivida – a Liberdade, a Justiça e o Direito – está reservado ‘Só para Brancos’.” (W.E.B. Du Bois, Sobre a fé de nossos pais)
O título deste artigo poderia muito bem ser: Sojourner Truth: por que transformaram uma mística religiosa numa feminista? Mas decidi não apelar. A primeira vez que ouvi falar no nome de Truth foi, muito provavelmente, pesquisando sobre mulheres importantes para o processo de abolição nos Estados Unidos. Junto com a gloriosa Harriet Tubman, Truth foi importantíssima para o contexto abolicionista do século 19; uma mulher cuja fé, de forte carga mística – como a fé de Tubman –, foi o fundamento de toda a sua atuação, inclusive de seu papel na luta pelos direitos das mulheres, o que não pode, simplesmente, ser confundido com feminismo. No entanto, foi o que aconteceu posteriormente, após a apropriação de um de seus mais emblemáticos discursos (falarei dele abaixo) por militantes feministas negras. Truth virou “mulher negra, feminista e abolicionista”. Mas, como veremos, as coisas não são bem assim.
Sojourner Truth nasceu Isabella “Belle” Baumfree, em meados de 1797, filha de James “Bomefree” – apelido que ganhara por sua estatura, já que, em baixo holandês, significa “árvore” – e Betsey (chamada de Mau-Mau Bett), na fazenda de “um certo coronel Ardinburgh, de Hurley, no condado de Ulster, Nova York” – assim Olive Gilbert, sua amiga, inicia a sua biografia, ditada pela própria biografada, que era analfabeta. O coronel morreu quando Belle ainda era criança; então ela, seus pais e seus irmãos foram herdados por Charles Ardinburgh, o filho, um homem que, segundo seus pais, era “o melhor da família”, pelo que se sentiam bem-aventurados.
Após a apropriação de um de seus mais emblemáticos discursos por militantes feministas negras, Sojourner Truth virou “mulher negra, feminista e abolicionista”. Mas as coisas não foram bem assim
Quando Charles morreu, todos foram vendidos em um leilão, e Belle lembra de sua impressão de ter sido vendida com um lote de ovelhas. A seus pais foi permitido ficarem juntos, pois Bomefree era bem mais velho que Mau-Mau e logo precisaria de alguém para cuidar dele. Porém, o fato é que sua mãe morreu antes, e ela teve permissão de seu senhor para visitar o pai algumas vezes, até que ele mesmo morreu, velho e cansado. Diz Gilbert da esperança da jovem escrava por ainda cuidar de seu pai:
“Isabella, cujo coração suspirava por seu pai, e que teria feito qualquer sacrifício para poder estar com ele e cuidar dele, tentou consolá-lo, dizendo que ouvira o povo branco dizer que todos os escravos no estado seriam libertados em dez anos e, então, ela viria e cuidaria dele. ʻEu cuidaria tão bem de você quanto Mau-Mau, se ela estivesse aquiʼ, continuou Isabella. ʻAh, minha filhaʼ, respondeu ele, ʻnão posso viver por tanto tempoʼ. ʻAh, papai, viva, e eu cuidarei muito bem de vocêʼ, foi a tréplica. Ela agora diz: ʻpensei, então, na minha ignorância, que ele poderia viver, se quisesse. Eu achava isso, mais forte do que já achei alguma coisa na minha vida, e eu insisti que ele vivesse. Mas ele só balançou a cabeça e insistiu que não poderiaʼ.”
A coisa mais importante da vida de Belle foram os ensinamentos que sua mãe lhe dera a respeito de Deus, pois, em seus muitos sofrimentos – ela, deliberadamente, os ameniza na biografia –, a única coisa que acalentava o seu coração era a esperança. Diante da tortura que sofreu por um senhor pelo qual passou, por não falar inglês (ela foi educada em baixo holandês, idioma que falavam os Ardinburgh), ela relata à sua amiga que “quando eu ouço falarem de chicotear mulheres na carne nua, isso faz minha pele arrepiar e meus cabelos levantarem na minha cabeça! Ah, meu Deus! [...] que maneira é essa de tratar os seres humanos?”. Gilbert continua:
“Naquela hora extrema, ela não esquecia as instruções de sua mãe de ir a Deus em todas as provações e em todas as aflições; e não apenas lembrava, mas obedecia: indo até Ele ʻe contando-Lhe tudo – e perguntando-Lhe se achava certoʼ e implorando a Ele para protegê-la de seus opressores. Ela sempre rogava, com uma fé inquebrantável, que só lhe fosse dado aquilo que houvesse pedido. ʻE agoraʼ, diz, ʻainda que pareça curioso, não me lembro de ter pedido nada que não fosse o que recebi. E sempre recebia em resposta às minhas orações. Quando era espancada, não sabia com antecedência para orar de antemão, e sempre pensei que se tivesse tido tempo de orar a Deus por ajuda escaparia do espancamentoʼ. Ela não fazia ideia de que Deus podia alcançar seus pensamentos, e acreditava que Ele só a ouviria em suas orações se fossem ditas em voz alta. E, consequentemente, ela não podia orar a menos que tivesse tempo e oportunidade de fazer do jeito dela, num lugar onde pudesse conversar com Deus sem ser ouvida por ninguém”.
O relacionamento com Deus que Belle irá construir será o sustentáculo de sua vida e o combustível de sua intrepidez, e não é possível falar de Sojourner Truth sem evidenciar isso. Ao longo de toda a sua vida, a crença na Providência divina, na direção de Deus em todos os seus caminhos, era uma característica não só de sua militância, mas de toda uma plêiade de pessoas negras que, simbolicamente, fizeram do ideal de libertação de Deus do povo de Israel o mote de sua própria luta contra a escravidão (tratei disso aqui, no primeiro artigo dessa coluna). O extraordinário W.E.B. Du Bois – primeiro negro a receber um título de Ph.D. (Doutor em Filosofia) por Harvard, em 1895 – diz que “assim como bardo, médico, juiz e sacerdote, dentro dos estreitos limites impostos pelo sistema escravista, ergueu-se o pregador negro, e, sob seu comando, surgiu a primeira instituição afro-americana, a igreja negra”. E diante dessa fé, continua ele, “a liberdade tornou-se para ele uma coisa real e não um sonho”. Não será diferente com Isabella, que, após decidir tornar-se uma pregadora itinerante, assume o nome Sojourner Truth e afirma: “o espírito me chama para lá [para o Leste], e eu devo ir”.
Sua libertação veio de uma espécie de fuga. Como morava no Norte (em Nova York), a escravidão lá foi chegando ao fim muito antes dos estados do sul. E um de seus senhores fizera-lhe a promessa de que, “se ela agisse direito, e lhe fosse fiel, daria a ela ʻpapéis de liberdadeʼ, um ano antes de ela ser legalmente emancipada”. Um tempo depois ela machucou a mão trabalhando e pediu que ele a liberasse; no entanto, ele se negou. Pois ela simplesmente foi embora:
“A pergunta em sua mente, e que não era fácil de resolver, agora era: ʻcomo posso fugir?ʼ Assim, como era seu costume, ela ʻdisse a Deus que tinha medo de ir à noite e durante o dia todo mundo a veriaʼ. Por fim, ela pensou que poderia sair um pouco antes do dia amanhecer e sair da vizinhança onde era conhecida antes que as pessoas estivessem acordadas. ʻSimʼ, disse ela fervorosamente, ʻesse é um bom pensamento! Obrigada, Deus, por esse pensamento!ʼ Então, recebendo-o como vindo direto de Deus, ela agiu assim, e em uma bela manhã, um pouco antes do alvorecer, poderia ter sido vista se afastando furtivamente da parte de trás da casa do senhor Dumont, seu bebê em um braço e as roupas em outro; cujos volume e peso provavelmente nunca achou tão conveniente quanto naquela ocasião, uma trouxa de algodão contendo suas roupas e seus mantimentos.”
O relacionamento com Deus que Belle irá construir será o sustentáculo de sua vida e o combustível de sua intrepidez, e não é possível falar de Sojourner Truth sem evidenciar isso
Mais uma vez, a fé foi o motor de sua decisão.
Após vários encontros e desencontros, viagens e eventos preocupantes com seu único filho – que chegou a se envolver com más companhias até embarcar num navio para trabalhar e nunca mais voltar –, Truth teve uma série de visões místicas que a fizeram compreender a figura de Cristo como o Mediador entre Deus e os homens. Em seguida, após longa meditação, teve consciência de seus pecados e sentiu-se amada e perdoada. Diz sua biógrafa:
“Antes desses exercícios mentais, ela ouvira o nome de Jesus ser mencionado na leitura ou em discurso, mas ficou com a impressão de que era apenas outro homem eminente, como Washington ou Lafayette. Mas Ele aparecia no seu êxtase mental de modo tão suave, tão bom e adorável, em todas as maneiras e que tanto a amava! E, que estranho, Ele sempre a amara, e ela nunca soubera disso! E que grande foi a bênção que ele deu ao se colocar de intermediário entre ela e Deus! E Deus então já não era um terror e um medo para ela.”
Sojourner Truth vai se tornando cada vez mais consciente de sua missão. Conhece pregadores itinerantes e fanáticos religiosos; porém, sempre manteve-se prudente em relação às extravagâncias dos encontros avivalistas de que participou – o que é importante observar, pois fica evidente que sua mística não era um desvario. Diz Gilbert: “Basta dizer que, enquanto Isabella era membro da casa de Sing Sing, prestando um serviço bastante laborioso no espírito de desapego religioso, sua visão foi gradualmente sendo purgada e sua mente curada das ilusões, assim ela escapou felizmente da contaminação que a cercava, empenhando-se assiduamente em desembaraçar-se de todos os seus deveres da melhor maneira”. E a descrição de sua decisão definitiva é emocionante:
“Ela agora já estava a bom caminho na sua peregrinação; sua trouxa em uma mão, uma pequena cesta de mantimentos na outra e dois xelins de York em sua bolsa. Seu coração estava forte na fé de que sua verdadeira obra estava diante dela e que o Senhor era seu diretor e ela não duvidava de que a sustentaria e a protegeria, e que seria muito censurável por parte dela carregar mais do que um modesto abastecimento das suas necessidades então presentes. Sua missão não era apenas viajar para o leste, mas ʻprofessarʼ, como ela definia: ʻdar testemunho da esperança que havia em mimʼ, exortando as pessoas a abraçar Jesus e a se abster do pecado, cuja natureza e origem ela lhes explicou de acordo com seus pontos de vista muito curiosos e originais. Ao longo de sua vida e todas as suas mudanças radicais, ela sempre se apegou rapidamente às suas primeiras impressões permanentes sobre assuntos religiosos.”
E foi essa fé e essa determinação que a levaram ao movimento abolicionista. Pregava a conversão a Cristo e a abolição da escravatura. Conheceu William Lloyd Garrison e Frederick Douglass enquanto fazia parte da Associação de Educação e Indústria, em Northampton, Massachusetts. E, a partir desses encontros, se uniu ao movimento pelos direitos das mulheres – pelo qual Douglass também militou. Nesse contexto surgiu seu mais famoso discurso, proferido em 29 de maio de 1851, na Convenção pelos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio. A contundente intervenção teve lugar porque às mulheres quase não se permitia falar e isso a incomodava. Marius Robinson, secretário da convenção, registrou: “Um dos discursos mais originais e interessantes da convenção foi o de Sojourner Truth, uma escrava alforriada. É impossível transferir para o papel ou reproduzir adequadamente a impressão e o efeito causados na plateia. Só podem apreciá-lo os que o viram em sua forma poderosa, sua alma entregue, seus gestos vibrantes, e os que a ouviram em seu tom forte e sincero. Ela se aproximou da plataforma, dirigiu-se à presidente com uma grande simplicidade: ʻposso dizer umas poucas palavrasʼ?” E num discurso curto, mas poderoso, afirma, dentre outras coisas:
“Os pobres dos homens parecem estar confusos, e não sabem o que fazer. Porque isso, meus filhos, se vocês têm os direitos das mulheres, deem a elas e vocês vão se sentir melhor. Vocês têm os seus direitos, e elas não vão causar tantos problemas. Eu não sei ler, mas sei ouvir. Ouvi a Bíblia e aprendi que Eva fez com que o homem pecasse. Bem, se foi a mulher que desarrumou o mundo, deem a ela a chance de consertá-lo de volta. A senhora falou a respeito de Jesus, sobre como Ele nunca tratou com desprezo ou afastou as mulheres, e ela tem razão. Quando Lázaro morreu, Maria e Marta vieram até Ele, com fé e amor, e lhe imploraram para que ressuscitasse seu irmão. E Jesus chorou e Lázaro ergueu-se. E como foi que Jesus veio a esse mundo? Por meio de Deus que o criou e da mulher que o teve. Homens, onde está a sua participação? Mas as mulheres estão chegando, louvado seja Deus, e alguns poucos homens estão chegando com elas. Porém o homem está ficando em um aperto, está entre a cruz e a caldeirinha.”
Ao lermos a biografia de Sojourner Truth e seu discurso original, não vemos, absolutamente, uma feminista – menos ainda uma feminista do século 21, radicalizada, hipersensível e cheia de ressentimento –, mas uma mulher piedosa, mística e poderosa
É um discurso sobre os direitos da mulher? Certamente. Mas é, sobretudo, um discurso cristão. Agora, o pulo do gato da apropriação feminista está na posterior inserção da frase “Não sou eu uma mulher?”, 12 anos depois, pela líder abolicionista branca – e, nesse caso, o “feminista” cabe perfeitamente, pois participou ativamente do movimento liderado por Elizabeth Cady Stanton – Frances Dana Gage, que, ao que tudo indica, não era religiosa como Truth. Dana alterou o discurso original, explicou algumas passagens e inseriu coisas que, possivelmente, Sojourner Truth não disse. Mas, curiosamente, figuras importantes do movimento feminista negro, como Angela Davis e bell hooks, não dizem isso; assumem o discurso alterado como se fosse o original.
No entanto, ao lermos a biografia de Sojourner Truth e seu discurso original, não vemos, absolutamente, uma feminista – menos ainda uma feminista do século 21, radicalizada, hipersensível e cheia de ressentimento –, mas uma mulher piedosa, mística e poderosa, animada por uma fé inabalável, cujo testemunho vivo de Cristo transformou a vida de muitas pessoas.
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