Eu também canto a América
Eu sou irmão negro
Eles me mandam comer na cozinha
Quando chegam as visitas
Mas eu rio,
E como bem,
E cresço forte.
[...]
Eu também sou América.
(Langston Hughes, trad. Zilá Bernd)
Minha relação com o cinema de Spike Lee é, no mínimo, conturbada. Não da mesma forma que minha relação com Lars von Trier – sobre quem já escrevi uma série nesta Gazeta do Povo –, por exemplo, que até em seus piores filmes reconheço alguma qualidade. No caso de Lee, alguns filmes são verdadeiramente excepcionais, como Faça a coisa certa – sobre qual já falei aqui, mas voltarei a ele nessa série –; outros beiram o patético, como Infiltrado na Klan. E aqui temos mais um problema, pois o filme, baseado em fatos reais sobre o policial negro infiltrado na famigerada organização racista, é quase unanimidade. Mas falaremos disso em outra oportunidade.
O fato é que não é possível reconhecer em Spike Lee a genialidade estupenda de um Orson Welles, mas ele é um cineasta competente, que tem momentos sublimes e carrega uma característica que considero verdadeiramente louvável em artistas: ele não está preocupado com a minha opinião. Ele faz o que acredita e paga o preço pelo sucesso ou fracasso comercial de seus filmes; e é um cineasta com uma mensagem. Spike Lee é, talvez antes de qualquer coisa, um militante. Como diz o biógrafo Dennis Abrams, autor de Spike Lee – Director, “como acontece com qualquer artista, para entender Spike Lee, você precisa entender seu trabalho. De muitas maneiras, seus filmes são sua vida”. Portanto, “antes que possamos aprender sobre seus filmes, precisamos aprender sobre sua família, sua infância e o caminho que ele percorreu para se tornar um dos cineastas mais importantes da América”.
Spike Lee não está preocupado com a minha opinião. Ele faz o que acredita e paga o preço pelo sucesso ou fracasso comercial de seus filmes; e é um cineasta com uma mensagem
Shelton Jackson Lee nasceu em 20 de março de 1957, filho do renomado contrabaixista de jazz Bill Lee e da professora Jacquelyn Shelton Lee. Mas seu bisavô, Dr. William James Edwards, teve enorme influência na história da família, pois, mesmo tendo nascido com uma doença óssea que o desenganara na infância, o menino sobreviveu, se tornou um adulto aplicado e estudioso, frequentou o Tuskegee Institute, do inigualável Booker T. Washington, graduou-se em 1893 com louvor e se tornou protegido do fundador da prestigiada universidade negra. Posteriormente, vendo a necessidade de uma escola semelhante em sua região natal, no sudeste do Alabama, voltou e abriu o Snow Hill Institute. A escola foi inaugurada em 1893 como Escola Literária e Industrial para Negros, numa cabana de madeira com apenas três alunos. Cresceu até incluir 27 edifícios, uma equipe de 35 pessoas e mais de 500 alunos, antes de fechar, em 1973.
Seu pai, que nasceu em 1928, estudou com Martin Luther King Jr. no Morehouse College, formou-se em baixo acústico e acompanhou nomes como Sarah Vaughan, Carmen McRae, Billie Holiday e Duke Ellington. Eis o seu background, uma família de intelectuais e músicos talentosíssimos. E o talento infundido em Lee pode ser resumido numa citação excelente de seu pai – que se tornou o seu credo: “A música é tão básica que existe uma nota certa ou uma nota errada. Se você tocar duas notas e elas colidirem, machucará seus ouvidos. Um músico aprende [com isso] a distinguir o certo do errado; ele aprende a confiar em sua intuição. [Se você] pegar o ritmo, isso o levará à verdade”.
Lee não quis seguir a carreira do pai, apesar de amar música – parte indissociável de seus filmes –, e graduou-se em Cinema, em 1979, na mesma Morehouse em que se formaram seu pai e seu avô. Sua intenção inicial não era fazer filmes; na verdade, foi um mau aluno na juventude e só conseguiu gostar de língua inglesa por seu contato com a Autobiografia de Malcolm X, que lera com entusiasmo; posteriormente, afirmou que esse foi “o livro mais importante que leu na vida”. E completou: “Mudou a maneira como eu pensava; mudou minha maneira de agir. Isso me deu uma coragem que eu não sabia que tinha dentro de mim. Sou uma das centenas de milhares cuja vida mudou para melhor [após a leitura do livro]”. Seu contato com o racismo ainda na infância também moldou seu caráter e, indiscutivelmente, sua arte.
Após se formar, foi se aperfeiçoar na Universidade de Nova York, considerada fundamental para quem quisesse seguir a carreira de cineasta. Lá trabalhou em alguns projetos universitários sem expressão – todos ajudados financeiramente por sua avó, que acreditava muito em seu talento –, até que causou o primeiro choque de muitos que viriam com sua obra: um curta-metragem chamado The Answer, uma resposta contundente ao famigerado O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith. Conseguiu chamar a atenção, pois o filme, além de provocativo, era bem feito.
Em 1984 escreveu o roteiro para aquele que seria seu primeiro sucesso comercial, numa estreia que o levou a Cannes e lhe deu o Prêmio da Juventude no festival: She’s Gonna Have It – no Brasil, conhecido como Ela Quer Tudo, disponível no Netflix –, de 1986. E não é para menos, pois já esse filme, feito com um orçamento baixíssimo e gravado em duas semanas, nos lança em rosto toda a inventividade e ousadia de um cineasta que irá não só inaugurar um novo e espetacular momento do cinema negro americano – só vivido pelo imenso Oscar Micheaux, nos anos 1920/30 –, mas também levanta, de maneira direta, questões que hoje são discutidas como se fossem uma grande novidade: sexualidade e empoderamento feminino, homossexualidade, relacionamento aberto, brutalidade policial etc., e traz na trilha sonora uma mistura calorosa do jazz composto por seu pai e até de música africana. E o melhor: submetendo a mensagem à arte, e não o contrário.
Com um elenco todo negro, o filme conta com a belíssima Tracy Camilla Johns como Nola Darling, uma jovem artista independente que exibe um cabelo natural, afro, e esbanja sensualidade no controle de três homens com os quais se relaciona – um deles, vivido pelo próprio Spike Lee. Filmado em preto e branco e com um único momento colorido – sacada genial de Lee –, de uma apresentação de dança contemporânea oferecida como presente de aniversário à protagonista, o filme tem um clima cru, que é, digamos, regado pela sensualidade de Nola, que fica revezando sua cama com os três submissos – mas nem tão submissos assim – namorados enquanto questionamentos sobre a situação e tudo o que ela envolve nos vão chegando não só pelas reflexões em off de Nola, como também dos homens, que quebram a quarta parede para se queixarem a nós.
Os negros não eram retratados, digamos, em seu ambiente, ouvindo a sua música, falando sobre seus problemas, havia décadas
O feito de Lee é importantíssimo, pois, como dito, os negros não eram retratados, digamos, em seu ambiente, ouvindo a sua música, falando sobre seus problemas, havia décadas. Desde o fim da primeira fase do cinema negro americano, com Micheaux e outros, os negros passaram a ser retratados como “negros no mundo dos brancos”, até a chegada do Blaxploitation, nos anos 1970. Como diz Abrams:
“Dizer que os americanos negros não se saíram bem nos filmes de Hollywood seria um eufemismo. O título da história clássica de 1973 de Donald Bogle sobre imagens negras no cinema resume a visão tradicional de Hollywood dos negros americanos: [Uncle] Toms, Coons, Bucks, Mammies e Mulattos [papéis estereotipados]. Desde os primórdios do cinema mudo até os últimos tempos, os personagens negros retratados nos filmes tradicionalmente se dividem em cinco tipos básicos. O primeiro ʻtipoʼ é o Tom, arrastando os pés, que alegremente atende aos desejos dos brancos sem reclamar. Há o palhaço sorridente, cantando e dançando (o guaxinim), que nasceu para entreter o homem branco. Há também o fanático por sexo e a dócil empregada doméstica (mammy), sempre ali para dar apoio ao herói ou heroína branca do filme; e, finalmente, o mulato trágico, confuso por ser mestiço e incerto de seu lugar na sociedade.”
E então, num segundo momento, desejando atrair o público negro que dava audiência ao cinema negro independente, “Hollywood também tentou abordar os temas negros por meio de uma fórmula dramática diferente. Os estúdios de Hollywood produziram vários filmes de ʻmensagemʼ entre o fim dos anos 1940 e meados dos anos 1960. Filmes como O que a Carne Herda, de 1949; Acorrentados, de 1958; e Adivinha quem vem para jantar?, de 1967 [os dois últimos, com o lendário Sidney Poitier], exploraram o que era então chamado de ʻproblema racialʼ”. Mas eram filmes dirigidos por diretores brancos e, portanto, apresentavam o problema sob esse prisma. Spike Lee mudou isso com Ela Quer Tudo, e daí em diante tudo foi diferente. E mais: a inversão que Lee faz é espetacular e provocativa a não poder mais em pleno 1986. Abrams diz bem:
“Nola é um desafio direto para uma sociedade que espera que as mulheres sejam submissas e prontas para se estabelecer, enquanto os homens são encorajados a serem sexualmente agressivos. Em Ela Quer Tudo, os papéis se invertem. Nola espera que os homens de sua vida estejam lá para ela quando ela quiser. Ela é quem decide quando Jamie, Greer e Mars podem vê-la, como podem vê-la e por quanto tempo. É isso que torna os três homens tão desconfortáveis; Nola está no controle – não apenas de si mesma, mas deles também. Os papéis tradicionais foram invertidos e nenhum dos homens na vida de Nola está feliz com isso. Qualquer filme com esse enredo provavelmente levantaria sobrancelhas, mas o fato de os personagens principais serem afro-americanos o tornou revolucionário”.
O filme recebeu críticas muito favoráveis e muitos desfavoráveis, como sói acontecer com um enredo tão desafiador para o público da época. Inclusive feministas reclamaram que Nola, na verdade, não era tão livre assim, pois precisava de homens para satisfazê-la. A essas críticas, Lee respondeu: “Olha, não são feitos muitos filmes negros todos os anos e, quando são, todo mundo espera se ver neles, e, quando não veem a imagem que querem ver, ficam tensos. Mas não tenho ódio por mulheres negras ou homens negros, e não vejo isso no filme. Acho que fui justo com todos”.
Com pitadas de humor e sarcasmo, envolvidos numa camada sutil de drama, Ela quer tudo é um excelente filme de estreia de um diretor que segue nos incomodando – às vezes de forma exageradamente pueril –, firme em seu propósito de fazer filmes sobre e para (mas não somente, óbvio) o público negro contemporâneo mundial. É um trabalho de resgate, identificação e crítica importante para as perenes discussões sobre as chamadas relações raciais; e a pedrada que viria em seguida mudaria completamente a maneira como víamos tais problemas. Confira na próxima semana.
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