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“[...] nem a cor branca, nem a cor preta no homem produzem uma diferença de espécie, e entre o homem branco e o homem preto não existe diferença de espécie; e não haveria diferença de espécie mesmo que déssemos um nome diferente a cada um.” (Aristóteles, Metafísica)
Recentemente assisti a Adivinhe quem vem para jantar, de Stanley Kramer, com o saudoso Sidney Poitier. Pois é, caro leitor, um filme de 1967, estrelado pelo maior artista negro do cinema, e eu nem sequer sabia que existia até pouquíssimo tempo. Na verdade, o título não me era estranho, mas nunca me ocorreu assisti-lo até a morte de Poitier, em janeiro desse ano. O filme é extraordinário, conta a história de Joanna Drayton (Katharine Houghton), uma jovem branca e rica que inicia um namoro com um médico negro, Dr. John Wade Prentice, interpretado por Poitier. Os pais de Joanna, apesar de progressistas e terem criado a filha sem qualquer tipo de preconceito, tiveram, digamos, um certo trabalho para assimilar o relacionamento; as interpretações de Spencer Tracy e Katharine Hepburn, como Matt e Christina Drayton, são um espetáculo à parte. A família do Dr. Prentice foi ainda pior. Mas, no fim, tudo se ajeita.
Spike Lee, mais de 20 anos depois, em 1991, voltaria ao tema, entretanto, adicionando um tempero contemporâneo muito menos edulcorado do que o filme de Kramer, que era uma espécie de accomodation movie, em que as chamadas relações raciais são suavizadas e apresentadas não com a intenção de discutir o problema, mas sob um prisma positivo. Mas é óbvio que essa jamais seria a escolha de Spike Lee, que faz um filme tragicômico, um drama romântico cheio de camadas e com momentos de muita tensão. Estou falando de Febre da Selva.
Flipper Purify (Wesley Snipes) é um bem-sucedido arquiteto – tirar o negro da posição de subalterno é um trunfo que Lee herda da tradição de Oscar Micheaux – que mora no Harlem e trabalha numa empresa chefiada por dois homens brancos, que, não obstante admirarem o seu talento, não lhe dão o devido reconhecimento. Casado com Drew (Lonette McKee), com quem compartilha momentos tórridos de intimidade, escutados com curiosidade pela filha Ming (Veronica Timbers, um menininha muito graciosa que infelizmente não seguiu carreira de atriz), tem uma vida relativamente tranquila até a chegada, no escritório, de Angela “Angie” Tucci, uma descendente de italianos contratada como sua secretária temporária. Flipper, que exigiu uma mulher negra em substituição à que se licenciara, protestou, sem sucesso. E sem sucesso também será sua tentativa de ignorar a simpática Angie, pois eles acabam se envolvendo.
Febre da Selva é um filme tragicômico, um drama romântico cheio de camadas e com momentos de muita tensão
Angie mora em Bensonhurst, um bairro de italianos no Brooklyn, em Nova York, e esse fato nos traz a inspiração para a história de Lee. Bensonhurst é o local da morte de Yusuf Hawkins – a quem o filme é dedicado –, um jovem negro de 16 anos que lá fora com uns amigos à procura de um carro que um deles vira num anúncio de jornal. Ao chegarem ao bairro, foram acusados por jovens brancos de estarem namorando meninas do bairro. Foram cercados por rapazes com tacos de basebol, mas, antes que a confusão se generalizasse, Hawkins foi assassinado a tiros por outro jovem, que apareceu de surpresa. O caso gerou grande indignação e protestos foram realizados no bairro, liderados pelo controverso reverendo Al Sharpton. A tragédia logo se transformou em plataforma política, pois as eleições estavam próximas. O advogado David Dinkins se elegeu prefeito, sendo o primeiro negro a ter ocupado o posto.
A questão que Lee levanta é não só da violência de brancos contra negros, mas que essa violência tem sua origem na fetichização da sexualidade dos negros. Ele diz: “Yusuf foi morto porque pensaram que ele era o namorado de uma das meninas do bairro. O que acontece é que os homens brancos têm problemas com a sexualidade dos homens negros. É tão claro e simples assim. Eles acham que temos um controle sobre suas mulheres”.
O argumento de Lee, segundo ele próprio, está baseado nessa sexualização exacerbada do corpo negro. Flipper e Angie teriam iniciado sua relação incentivados pela curiosidade que nutrem um pelo outro enquanto homem negro e mulher branca; inclusive Flipper diz isso, ao final, quando o caso se torna insustentável: “Está comigo, apesar da sua família, é pela curiosidade que tem por negros. E eu estava curioso sobre as brancas”. E, apesar de alguns críticos dizerem que não há elementos sexuais suficientes que caracterizem isso – a relação entre os dois é quase envergonhada –, o fetiche, se há, é amenizado pelos problemas que logo aparecem e não deixam o romance amadurecer. Flipper é posto para fora de casa por uma determinada Drew, e Angie apanha furiosamente de seu pai quando este fica sabendo do caso.
Portanto, Lee apresenta uma história amorosa fracassada desde o início, na reação de Cyrus, amigo de Flipper vivido por Spike Lee, que enxerga o problema como um holocausto nuclear, pois o amigo está acometido pela febre da selva – a atração por uma mulher branca. Ele mesmo, num impulso de solidariedade de raça, conta à sua esposa, que, por sua vez, conta a Drew. Inclusive a abordagem de Lee foi acusada de conservadora pelo crítico Ronald R. Sundstrom, em seu ensaio Fevered Desires and Interracial Intimacies in Jungle Fever, no qual diz, também se remetendo ao filme estrelado por Poitier, que “Lee adotou um tom seguramente conservador, que atende às atitudes ambivalentes da classe média negra a que seu filme dá voz. Lee volta a um romance dessexualizado – à la Adivinhe quem vem para jantar. Assim como Kramer não arriscaria demonstrar a sexualidade apaixonada entre um homem negro e uma mulher branca na tela, Lee também se encolheu em seu filme”.
A discussão a respeito da fetichização do corpo negro é levantada de maneira bastante interessante pelo eminente sociólogo Cornel West, em seu ensaio A sexualidade dos negros: um assunto tabu, presente no livro Questão de Raça. West afirma que existe um medo em relação à sexualidade dos negros, pois mitos sexuais foram associados ao corpo da mulher e do homem negros. Esses mitos, diz ele, “retratam as mulheres e os homens negros como criaturas ameaçadoras, com potencial poder sexual sobre os brancos, ou então como seres inofensivos e assexuados, subalternos da cultura branca”, e usa como exemplos o Pai Tomás, do clássico livro de Harriet Stowe, como negro submisso, e os negros retratados no filme O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, que são vistos como figuras bestiais. Essa imagem, diz West, precisa ser desmistificada, pois “grande parte do desprezo que os negros sentem por si mesmos relaciona-se à recusa de muitos deles a amar seu próprio corpo – especialmente as características negras do nariz, quadril, lábios e cabelos. Assim como numerosos norte-americanos brancos sentem repulsa pela sexualidade dos negros, muitos destes também têm o mesmo sentimento – mas por motivos muito diversos e com resultados muito diferentes”. E arremata:
“O medo que os brancos têm da sexualidade dos negros é um ingrediente básico de seu racismo. E, para os brancos, admitir esse medo profundo ao mesmo tempo em que procuram incutir e conservar o medo nos negros é reconhecer uma fraqueza – uma fraqueza que sai das entranhas. Cientistas sociais há tempos aceitam que o medo do sexo e do casamento inter-racial é a fonte mais observável do temor que os brancos têm dos negros — assim como as repetidas castrações de negros vítimas de linchamento demandam uma séria explicação psicocultural. A sexualidade negra é um assunto tabu nos Estados Unidos principalmente porque ela constitui uma forma de poder dos negros sobre o qual os brancos têm pouco controle — contudo, suas manifestações visíveis evocam nos brancos as mais violentas reações, sejam de obsessão fascinada, sejam de franca repulsa. Por um lado, a sexualidade dos negros entre eles próprios não inclui absolutamente os brancos, nem faz destes um ponto central de referência. Ela se manifesta como se os brancos não existissem, como se eles fossem invisíveis e não tivessem a mínima importância. Essa forma de sexualidade coloca os negros no centro do palco, sem nenhuma presença de brancos. Isso pode ser perturbador para os que estão acostumados a ser os guardiões do poder.”
Podemos concordar ou não com a análise de West, mas quero confessar, caríssimo leitor, que eu mesmo, como homem negro, já senti muito isso em minha própria pele e esse assunto já foi, no passado, muitas vezes, tema de discussões entre amigos e família. Lembro que até brincávamos com o gesto que Flipper e Cyrus fazem com o braço para se referir ao sexo. Esse fetiche é uma via de mão dupla: brancos o temem e negros o assumem, numa idealização que exacerba o conflito – que fica muito evidente no filme. E, nesse aspecto, EUA e Brasil são iguais. E West, que afirma categoricamente que esse assunto deve deixar de ser um tabu para que possa ser solucionado, termina dizendo que, “no longo prazo, não existe para nós outra saída que não agir em nossas vidas psíquicas e sexuais sempre segundo as verdades que proclamamos a respeito da genuína interação humana.”
Mas, voltando ao filme, tal discussão tem nele momentos antológicos, como o “conselho de guerra” feito por Drew e suas amigas. Uma discussão profunda a respeito da liberdade da mulher negra; de sua relação com os homens negros e brancos; sobre traição; o fetiche com mulheres brancas; o preconceito que sofrem as mulheres pretas retintas em relação às mestiças; o fato de homens negros bem-sucedidos rejeitarem mulheres negras etc. As discussões mais proeminentes do famigerado feminismo negro atual já foram antecipadas por Lee, magistralmente, nesse “conselho” de cinco minutos. Isso mostra que, ao fim e ao cabo, como bem analisa Dennis Abrams em seu Spike Lee: Director:
“De fato, às vezes parece, em Febre da Selva, que o romance interracial é realmente um dispositivo para trazer o público para um mundo urbano mais complexo, onde as ideias de preto e branco se apresentam de maneiras diferentes todos os dias. A vida profissional e pessoal de Flipper está em crise. Enfrentando o racismo no trabalho, ele também é forçado a lidar com a raiva legítima de sua esposa. Drew não só se sente profundamente traída por seu marido (ʻVocê tinha que acabar arranjando uma garota branca, não é?ʼ), mas também por uma sociedade negra que a tratou fria e cruelmente porque ela é mestiça (ʻEu disse que me chamavam de amarela alta, moça amarela, Branca de neve, negra branca, branca negra, mulata, mestiça, vira-lata!ʼ)”.
Repetindo a tensão entre negros e italianos de Faça a coisa certa, Lee acrescenta o ódio racial aberto e deliberado, não só da polícia, mas também da intolerância em relação aos relacionamentos interraciais
O filme trata, na verdade, das relações raciais em seus aspectos mais diversos. O romance entre Flipper e Angie é só o pano de fundo para algo muito mais complexo que envolve toda a sociedade americana. A escravidão, o racismo e as leis de segregação jamais permitiram que a América se tornasse realmente a terra da liberdade e das oportunidades. Nesse caso, repetindo a tensão entre negros e italianos de Faça a coisa certa, Lee acrescenta o ódio racial aberto e deliberado, não só da polícia, que, num dos momentos mais tensos do filme, aborda Flipper de maneira absolutamente descabida, mas também da intolerância em relação aos relacionamentos interraciais. O excepcional John Turturro, que no filme anterior faz o filho racista de Sal, em Febre da Selva interpreta Paulie Carbone, o namorado traído de Angie que se apaixona por Orin Goode (Tyra Ferrell), moça negra bonita e culta que todos os dias passa em seu estabelecimento para comprar os jornais e incentivá-lo a fazer inscrição para a universidade.
Os pais de Flipper, vividos pelo lendário casal Ossie Davis e Ruby Dee, tampouco aceita a situação. O pai, reverendo Doctor Purify, um pastor que perdeu sua igreja após ter cometido adultério, não tem pelo filho a compaixão que gostaria que tivessem com ele, e inclusive maltrata cruelmente Angie quando Flipper a leva para jantar na casa dos pais. A mãe tenta conciliar as coisas, mas tem uma preocupação muito maior: Gator Purify, o filho viciado em crack, vivido por Samuel L. Jackson, em outra interpretação sensacional. E esse é outro ponto importantíssimo do filme.
Lee, no passado, havia sido acusado de não tratar do problema das drogas na comunidade negra americana, de desviar do problema. Então decide tratá-la com a devida crueza em Febre da Selva. Gator é um homem incontrolável, que vive pedindo dinheiro e roubando a própria família para se drogar. Em companhia de Vivian (Halle Berry, jovenzinha), passa o filme interpelando o irmão e a mãe em busca de dinheiro. No início, sua figura é engraçada, com aquele jeito nervosamente engraçado dos chamados noias. Mas, à medida que o filme vai passando, Gator vai se tornando um personagem trágico e triste – e perigoso. Após roubar a tevê colorida de seu pai (que, aliás, se recusa a vê-lo) e vender o aparelho para comprar crack, Flipper vai, mediante um pedido desesperado de sua mãe, atrás dele num local conhecido como Taj Mahal, uma “Trump Tower para os viciados”. Então ele entra num prédio absolutamente tomado por viciados, em cena muito parecida com a cracolândia aqui de São Paulo, e, ao som de Living for the City , de Stevie Wonder – que assina a trilha sonora ao lado do genial Terence Blanchard –, Lee e o diretor de fotografia, Ernest R. Dickerson, produzem uma descida aos infernos de Flipper em busca de seu irmão. O encontro e o diálogo entre os dois é inesquecível. Diz Spike Lee: “Queríamos mostrar, literalmente, nossa visão da devastação que o crack teve e das almas que ele domina. Ernest teve essa ideia para o design de som. Toda vez que você ouve os tubos, há esse Whooosh, como se as almas dos viciados fossem sugadas para fora de seus corpos”.
O filme foi um sucesso de crítica e, mais uma vez, tarimbou Spike Lee como um diretor comprometido com sua arte, que, embora engajada, dialoga – pelo menos até esse momento – de maneira equilibrada com os antagonismos da vida como ela é, e não com fabulações ideológicas. Febre da Selva é um dos grandes filmes de Lee, e merece ser visto com atenção por todos aqueles que desejam discutir o racismo de maneira séria.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos