“Acho que a maioria dos músicos se interessa pela verdade. Têm mesmo de se interessar, porque dizer algo musicalmente é uma verdade. Se você faz uma declaração musical e é uma declaração válida, existe uma verdade nisso, sabe? Se você toca algo fingido, bem, dá pra saber que é fingido (risos). Todos os músicos se esforçam para chegar o mais próximo da perfeição, e existe verdade aí, sabe? Por isso, para poder tocar certas coisas, para tocar verdades, você tem de viver a verdade ao máximo possível.” (John Coltrane)
No último artigo dessa série escrevi sobre Febre da selva, de 1991, no qual Lee aborda, dentre outras coisas, o drama das drogas e de um relacionamento interracial (fruto de uma traição, diga-se). Essa semana decidi dar um passo atrás na cronologia que vinha seguindo para falar de um filme que quase deixei passar, pois, como diz o ditado, escolher é excluir. Mas acabei revendo o jazzístico Mais e melhores blues, de 1990, e decidi tecer alguns comentários sobre essa pequena joia.
Conforme dito anteriormente, o pai de Spike Lee, Bill Lee, é um reconhecido músico de jazz que, inclusive, colabora com muitas trilhas dos filmes de seu filho. Spike Lee, portanto, cresceu num ambiente bastante musical pelo qual foi profundamente influenciado. Diz ele, a respeito de seu quarto filme: “Eu sempre soube que faria um filme sobre a música. Quando digo música, estou falando de jazz, a música com a qual cresci. Jazz não é o único tipo de música que escuto, mas é a música da qual me sinto mais próximo”. E ele não poderia ter feito uma homenagem melhor ao jazz – e, em certo sentido, ao seu pai – a não ser com Mais e melhores blues, estrelado por ninguém menos que Denzel Washington.
Os números musicais já valem o filme; não só porque os quatro atores conseguem imitar, com absoluta perfeição, músicos de verdade, quanto pelo repertório, composto e executado pelo Branford Marsalis Quartet e o trompetista, compositor e produtor Terence Blanchard
O filme conta a história de Bleek Gillian, um trompetista virtuoso cujo grupo de jazz se apresenta em casas de shows com relativo sucesso. O grupo é formado por Shadow Henderson (Wesley Snipes), no saxofone; Left Hand Lacey (Giancarlo Esposito), no piano; e Bottom Hammer (Bill Nunn), no baixo. Bleek, cuja infância foi marcada pela imposição, sobretudo da mãe, para que se aperfeiçoasse no instrumento – o que fazia contrariado –, é um músico exigente e indivudualista, e seus companheiros, não menos habilidosos, se ressentem disso. Há uma notória rivalidade entre Bleek e o saxofonista Shadow, que briga por mais espaço na hora dos solos. Os números musicais, inclusive, já valem o filme; não só porque os quatro atores conseguem imitar, com absoluta perfeição, músicos de verdade, quanto pelo repertório, composto e executado pelo Branford Marsalis Quartet e o trompetista, compositor e produtor Terence Blanchard. Bill Lee compôs e produziu algumas faixas, inclusive a belíssima e não creditada música de abertura.
Para completar a trama, temos Giant, amigo de infância de Bleek e empresário do grupo, vivido por Spike Lee, cujo vício em jogo e as dívidas complicarão as coisas; e as belas Indigo (Joie Lee), uma professora, e Clarke (Cynda Williams), uma aspirante a cantora, com quem Bleek mantém um triângulo amoroso conturbado, pois uma sabe da existência da outra, ambas não concordam com a atitude de Bleek, mas não conseguem deixá-lo. Aliás, esse é um aspecto importante que Lee quis levantar em seu filme: Denzel Washington como Bleek é um tipo sedutor incomum para personagens negros à época. O mais comum era termos personagens negros cujo sex appeal era suprimido pela polidez e exemplo moral, como Sidney Poitier. Diz Dennis Abrams, em seu Spike Lee – Director: “A decisão de Lee, de escalar Washington como Bleek, foi um marco para dar ao público um verdadeiro protagonista romântico negro. Lee tinha visto Washington numa peça da Broadway em 1988. ʻNo minuto em que Denzel apareceu no palco, as mulheres na plateia começaram a gritarʼ, lembrou Lee. ʻNão só Denzel era um grande ator, mas também um legítimo ídolo das matinês. Eu queria escrever um papel para ele que as mulheres negras estavam esperando que ele interpretasse. E, antes de escrever uma palavra de Mais e melhores blues, eu sabia que queria que [ele] interpretasse o papel principal’”. Entretanto, não se trata de um personagem simplesmente sedutor:
“Bleek Gilliam é um homem falho, mas Lee mostra por que ele é falho. O nome de Bleek (‘pálido’) o descreve perfeitamente: ele é um cavalheiro sombrio e, por causa de sua criação, investiu toda a sua vida, todo o seu ser em tocar trompete (Nisso, ele não é diferente do retrato habitual de um músico no cinema – mas, pelo menos desta vez, é um músico negro!). […] No entanto, não consegue ver as necessidades ou o talento de ninguém além dos seus. Ele se recusa a tocar música escrita pelos membros que compõem seu grupo, o Bleek Quintet, e está constantemente em desacordo com seu saxofonista, Shadow Henderson, sobre a direção em que o grupo está indo e a quantidade de dinheiro que eles deveriam estar ganhando.”
Como John Coltrane, o gênio onipresente em quadros nas paredes do filme, em álbuns que circulam para lá e para cá, e em toda a ambiência jazzística e espiritual do filme, Bleek era alguém devotado à música, a respirava dia e noite; e percebemos, com isso, que aquela irritação infantil para ter de praticar tanto – a interpretação do garotinho Zakee Howze, como o Bleek criança, é sensacional – tinha dado resultado, apesar de torná-lo um músico autocentrado. O público o amava e delirava com suas apresentações, que eram sempre performáticas e executadas à perfeição. É curiosa a observação do historiador e crítico Nat Hantoff, no livro A Love Supreme – criação do álbum clássico de John Coltrane, sobre essa divinização do músico: “Quando A Love Supreme estourou, Trane tocou tanta gente espiritualmente que as pessoas começaram a achar que ele era sobre-humano. Acho isso injusto. Ele era apenas um ser humano como eu e você – mas tinha o desejo de praticar mais, de fazer tudo o que alguém deve fazer para ser excelente. O verdadeiro valor do que John Coltrane fez e o que ele conseguiu foi como um ser humano”.
Enquanto Bleek tenta administrar o relacionamento com as duas beldades, se esquece de administrar sua carreira – consequentemente, a de seus companheiros de banda. Giant, apesar de uma boa pessoa, é o típico viciado, que vive pedindo dinheiro emprestado, se vitimizando e não dando a devida atenção ao que importa, o seu trabalho como empresário do grupo, que começa a pressionar Bleek por sua substituição. O conflito vai aumentando e o clima de camaradagem fica comprometido. Mas a indisposição mais aguda, como dito, é com Shadow, que, além de um grande músico, com suas próprias aspirações, tem um interesse profissional e pessoal em Clarke, e isso leva os dois a um confronto dramático.
E, para piorar, os problemas provocados por Giant vão se avolumando até respingarem em Bleek e provocarem o turning point trágico do filme. O empresário é violentamente espancado por dois capangas de um homem a quem devia dinheiro – um deles, interpretado por Samuel L. Jackson –, e Bleek se envolve para socorrê-lo. Também é espancado, só que com requintes de crueldade, pois tomam-lhe o trompete das mãos e batem em sua boca, que fica absolutamente destruída, arruinando sua embocadura para tocar o instrumento. Shadow ganha os holofotes (perdão pelo trocadilho bilíngue), com Clarke como sua vocalista, e Bleek quase enlouquece por não poder mais fazer o que mais ama. Encontra guarida definitiva em Indigo, que se casa com ele, reiniciando, com seu filho, o legado musical da família.
Mais e melhores blues é outro filme da melhor safra de Spike Lee, uma verdadeira ode à boa música e à vocação do músico
Um dos aspectos mais controversos do filme, que foi motivo de críticas, é que Lee faz um retrato romântico, digamos, sanitizado do universo do jazz. Apesar de a atmosfera impressa na fotografia do indefectível Ernest Dickerson demonstrar os aspectos sombrios da personalidade de Bleek, o filme subtraiu um componente quase indissociável desse ambiente: as drogas. Mas Lee, como filho de músico de jazz, que conviveu a vida toda com essas pessoas, se defende:
“É tipo: ʻAh, esses músicos de jazz são tão atormentados, eles nunca riem, nunca têm alegria em suas vidas, são todos trágicos, dilacerados e distorcidosʼ. Claro, isso pode ter sido uma pequena parte disso. Mas, ao mesmo tempo, estava pensando nos músicos com quem cresci, da minha geração. Esses caras não eram ricos, mas estavam ganhando um bom dinheiro. E eles jogavam basquete, futebol, adoravam esportes, tinham família, namoradas, divertiam-se saindo, vivendo – eles não estão simplesmente lamentando a miséria de suas vidas.”
E, sobre o acusarem de criar personagens femininas submissas, ele diz: “Acho que meu trabalho, ao contrário do que alguns pensam, mostra que amo as mulheres [...]. Entendo, porém, de onde vem esse tipo de crítica. Os negros têm sido tão perseguidos pela mídia, que nos tornamos apenas – hipersensíveis. Muitas pessoas procuram a Supermulher Negra, moderna e sem defeitos. Que elevam a raça, fortes como Harriet Tubman. Mulheres como ela existem? Sim, mas existem outros tipos também”.
É curioso ler isso de um cineasta que, ao que parece, vem fazendo filmes cada vez mais voltados a essa hipersensibilidade crítica e vazia. Mas sobre isso falaremos posteriormente. Por agora vale recomendar aos que não assistiram, que assistam a Mais e melhores blues, pois é outro filme da melhor safra de Spike Lee, uma verdadeira ode à boa música e à vocação do músico, sintetizada tão extraordinariamente bem no desejo de John Coltrane, com o qual termino este artigo:
“Quero ser uma verdadeira força do bem. Quero descobrir um método pelo qual, se eu quiser que chova, comece a chover imediatamente. Se um de meus amigos estiver doente, quero tocar uma determinada música e ele sare. Quando ele estiver falido, toco outra canção e ele consegue imediatamente todo o dinheiro de que precisa. Mas que músicas são essas e qual o caminho para passar a conhecê-las, isso eu não sei. Os verdadeiros poderes da música ainda são desconhecidos. Ser capaz de ter controle sobre eles deve ser, creio, o objetivo de todo músico.”
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