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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Cinema

Spike Lee: Cineasta e(ou) militante(?) (parte 6)

Denzel Washington no papel-título de "Malcolm X", de Spike Lee. (Foto: Divulgação)

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“Se nos tornássemos alunos de Malcolm X, não teríamos jovens negros por aí matando uns aos outros como estão se matando agora. Jovens negros não estariam engravidando jovens negras no ritmo que está acontecendo agora. Não teríamos as drogas que temos agora, nem o alcoolismo.” (Spike Lee)

Retomando minha série sobre o cinema de Spike Lee, eis que dou um passo atrás para falar de sua maior obra-prima, o filme sobre um dos maiores ícones do século 20, um homem notável, intelectual autodidata e arguto, orador impecável e, acima de tudo, um incansável batalhador pela liberdade e pelos direitos civis de seu povo: Malcolm X.

Os primeiros esboços de um roteiro sobre a vida de Malcolm X surgiram ainda na década de 1960 – os mais famosos, feitos pelo renomado escritor e ativista James Baldwin. Todos, de certo modo, fracassaram. O produtor Marvin Worth, detentor dos direitos autorais sobre a Autobiografia de Malcolm X (escrita em parceria com Alex Haley, de Raízes) desde 1967, vinha fazendo esforços para levar para as telas a história do icônico personagem. Em 1990, Worth assinou contrato com o diretor Norman Jewison, com o dramaturgo Charles Fuller e com Denzel Washington. Spike Lee, que também já vinha tentando produzir o filme, protestou – e apelou. Disse, em entrevista ao New York Times: “Tenho um grande problema com Norman Jewison dirigindo [um filme sobre] A Autobiografia de Malcolm X. Isso me perturba profundamente. Está errado com um ‘E’ maiúsculo. Os negros têm de controlar tais filmes. Malcolm X é um dos nossos heróis mais preciosos. Deixar um não afro-americano fazer isso é uma farsa”.

Malcolm X é um dos maiores ícones do século 20, um homem notável, intelectual autodidata e arguto, orador impecável e, acima de tudo, um incansável batalhador pela liberdade e pelos direitos civis de seu povo

O genial dramaturgo August Wilson, autor de Fences (Um limite entre nós) e Ma Rainey’s Black Bottom (A voz suprema do blues), concordou com ele. No entanto, Lee sofreu muitas críticas por essas declarações, com acusações de estar se valendo do race card para conseguir o filme. Entretanto, ele conseguiu, pois todos, no fim das contas, sabiam da imensa dificuldade em retratar uma figura tão controversa e cheia de nuances como Malcolm X. Lee começou, então, a trabalhar num roteiro a partir da famosa Autobiografia e dos escritos de Baldwin e Arnold Pearl, e as disputas a respeito do filme se iniciaram.

No entanto, um grupo chamado United Front to Preserve the Legacy of Malcolm X, liderado pelo poeta e ativista Amir Baraka – que se convertera ao Islã por influência de Malcolm – questionou a capacidade de Lee para fazer o filme, dizendo, numa entrevista: “Fiquei angustiado por ele estar trabalhando [num filme sobre] Malcolm, e temo que Malcolm receba o mesmo tratamento que ele deu ao resto do nacionalismo negro [...]. A vida de Malcolm X não é uma propriedade comercial. Não pode ser reivindicada por um negro pequeno-burguês que tem 40 milhões de dólares”. Lee rebateu: “Vou fazer o tipo de filme que eu quiser. Quem nomeou Baraka presidente do comitê de artes afro-americanas? Ninguém lhe diz quais poemas e peças deve escrever, então por que ele está tentando me dizer que tipo de filme devo fazer? Ele pode escrever o que quiser e eu quero ter a liberdade de fazer meus filmes”.

O orçamento também foi uma luta, pois a produtora responsável, a Warner Bros., rejeitou a proposta de US$ 33 milhões feita por Lee – que incluía viagens ao Egito e à África do Sul. Lee de novo protestou, dizendo que diretores brancos sempre conseguiam o quanto queriam, não importando o valor (a Warner havia liberado US$ 100 milhões para a produção de Batman: O Retorno). Tentaram dissuadi-lo das tomadas em outros países, mas ele insistiu e apelou a grandes figuras negras do entretenimento, pedindo ajuda. Bill Cosby, Oprah Winfrey, Prince, Janet Jackson, Magic Johnson e Michael Jordan doaram o suficiente para Lee fazer o filme exatamente como desejava.

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Mas os problemas não terminaram aí. Ao verem o corte bruto, os executivos da Warner se escandalizaram com a avassaladora sequência de abertura, com uma bandeira americana em chamas formando um “X”, imagens do espancamento de Rodney King, ocorrido em 1991 (a absolvição dos policiais gerou uma série de protestos violentos em Los Angeles), e trechos de discursos inflamados de Malcolm X, lidos por Denzel Washington, denunciando os crimes do homem branco. Mas Lee foi firme na defesa de sua visão: “Qualquer um que vir a cena saberá o que ela está dizendo [...]. Isso não é Walt Disney. Trata-se do estado atual das relações raciais no mundo. Quero mostrar isso... que quase todas as coisas que Malcolm falou na época, 30 anos atrás, ainda estão acontecendo hoje. E que, em grande medida, nada mudou. As injustiças sobre as quais ele falou ainda precisam ser combatidas hoje”.

O esforço de Lee para promover o seu filme tampouco foi livre de controvérsias. Três meses antes da estreia, quando dava uma palestra na Associação Nacional dos Jornalistas Negros, em Detroit, ele disse aos presentes, de acordo com Dennis Abrams no livro Spike Lee: Director, “para faltarem ao trabalho e não mandarem os filhos à escola no dia da estreia. Se os afro-americanos não apoiassem o filme, Hollywood teria uma desculpa para não fazer outro filme de grande orçamento voltado para os negros”. Recebeu críticas por incentivar as crianças a faltarem na escola. Mas, novamente, rebateu, categórico: “[Eles aprenderão sobre uma parte da] história americana que não está na escola. Eles podem ver o filme e fazer um relatório”.

Por fim, em 18 de novembro de 1992, o filme estreou em Nova York; um épico que o crítico Roger Ebert chamou de “uma das maiores cinebiografias já feitas”. Na avaliação de Dennis Abrams:

Malcolm X é uma produção luxuosa, da qual os antigos mestres do épico de Hollywood, como Cecil B. DeMille e David Lean, teriam se orgulhado. Nele, Lee foi capaz de usar plenamente tudo o que aprendeu ao longo de sua carreira, provando ser, como disse Roger Ebert, ʻum dos melhores cineastas da Américaʼ. No entanto, o filme foi mais do que um exercício de grande técnica cinematográfica; foi também uma demonstração de como fazer um filme que divertisse e educasse. Através da direção de Lee e das performances de todo o elenco, o público aprendeu a história de um líder que viveu a pobreza abjeta, o preconceito e o racismo quando jovem, e também a prisão quando jovem. Eles souberam de um líder dos direitos civis que denunciou os brancos, os ʻdiabos de olhos azuisʼ, por sua opressão aos negros, e ameaçou retribuição e vingança por seus crimes; mas que acabou adotando a visão de que os brancos podem ser bons e maus, e que todas as pessoas são iguais aos olhos de Deus. No final, o que Malcolm X revela e celebra é a evolução de um ser humano. Como Lee afirmou: ʻQueríamos mostrar que ele era uma pessoa sempre em busca da verdade, era bem humorado, muito carinhoso e caloroso, e em constante evoluçãoʼ.”

“Os brancos, ao assisti-lo, podem esperar encontrar um Malcolm X que os atacará, mas encontrarão um Malcolm X cujas experiências e motivos o tornam compreensível e finalmente heroico.”

Roger Ebert, crítico de cinema, escrevendo sobre Malcolm X

Ebert completa sua crítica de maneira bastante interessante, dizendo o seguinte: “Eu esperava um filme mais raivoso do que Spike Lee fez. Este filme não é uma agressão, mas uma explicação, e não é excludente; ele deliberadamente abarca todas as raças em seu público. Os brancos, ao assisti-lo, podem esperar encontrar um Malcolm X que os atacará, mas encontrarão um Malcolm X cujas experiências e motivos o tornam compreensível e finalmente heroico”.

E o filme é mesmo, como dito no início, uma obra-prima de Spike Lee, e seguramente seu melhor filme. Retrata a vida de Malcolm X desde sua infância – filho de um pastor que propagava o pan-africanismo de Marcus Garvey e foi morto pela Ku Klux Klan, a insanidade de sua mãe e as várias adoções e traumas –, dando ênfase aos seus anos de juventude como um malandro, no Harlem, em companhia de seu amigo Shorty (vivido por Spike Lee), se divertindo e dançando nos animados bailes ao som das orquestras de jazz, alisando o cabelo, vestindo roupas extravagantes, abandonando o emprego formal para trabalhar no mercado ilegal de apostas comandado pelo chefão West Indian Archie (Delroy Lindo), saindo com mulheres brancas e cometendo delitos, até ser preso, em 1946, por roubo a uma residência.

Na prisão, conheceu a Nação do Islã (Nation of Islam, NOI), seita muçulmana negra liderada, à época, por Elijah Muhammad, e teve sua vida completamente transformada. No filme, sua conversão é atribuída a um homem que conhece na prisão, Irmão Baines, que o apresenta as doutrinas da NOI; mas, na verdade, quem o apresentou à seita foi seu irmão mais velho, Philbert, que lhe disse ter descoberto “a verdadeira religião do homem negro”. Sua irmã Hilda também foi fundamental; foi ela, inclusive, que lhe contou a infame “História de Yacub”, uma espécie de mito teológico da NOI, que dizia que o homem branco era um ser demoníaco criado em laboratório – já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo.

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Malcolm estuda na prisão, lê muitos livros, lê e copia um dicionário inteiro, sentindo o quanto o conhecimento é libertador. Sai da cadeia em 1952 para se tornar o maior líder da NOI, ofuscando não só outras figuras proeminentes – como o atual líder máximo, Louis Farrakhan, que no filme também é amalgamado no Irmão Baines –, mas o próprio Elijah Muhammad. Vale salientar a cena do primeiro encontro de Malcolm com Muhammad: o choro de Denzel é de uma sinceridade e emotividade absurdas!

O destaque meritório obtido por Malcolm, sua língua ferina e as acusações de abuso sexual de Elijah Muhammad por sete de suas jovens secretárias fazem com que Malcolm comece a se afastar da NOI até o rompimento completo, em 1964. O filme é absolutamente pedagógico ao abordar todos esses aspectos da história de Malcolm X.

No mesmo ano viaja à Meca e se surpreende ao ver muçulmanos brancos e negros convivendo e cultuando harmoniosamente; sua vida, novamente, tem um turning point. Adota o Islã de tradição sunita e volta à América decidido a trabalhar pelo progresso da população negra contando com a ajuda não só de pessoas brancas, mas de outros líderes negros, inclusive Martin Luther King Jr. – até então seu rival, a quem chamava de Pai Tomás (o equivalente a “capitão do mato”, no Brasil).

Spike Lee nos abençoa com um verdadeiro clássico, que, apesar da bilheteria abaixo do esperado, é um filme que nunca envelhece; todas as vezes que o revejo, faço-o com o mesmo entusiasmo

Mas isso nunca aconteceu, pois as ameaças de morte que sofreu após deixar a NOI se concretizaram, e em 21 de fevereiro de 1965, quando daria seu mais importante sermão de sua nova fase, Malcolm X foi assassinado por membros da NOI – para uma análise mais precisa, veja a série documental Quem matou Malcolm X?, na Netflix. A cena do assassinato no filme é uma das coisas mais brutais do cinema contemporâneo, e Spike Lee conseguiu traduzir com maestria não só a tensão, mas a violência do momento. Betty Shabazz (Angela Basset), em desespero, segurando o corpo do marido ensanguentado, é de cortar o coração.

As atuações são excepcionais, mas o destaque absoluto vai para Denzel Washington, que verdadeiramente incorporou Malcolm X e entregou uma de suas melhores – se não a melhor – atuações. A trilha sonora de Terence Blanchard – permeada pelo jazz que Lee tanto ama, e com a marcante A change is gonna come, do inigualável Sam Cooke, num dos momentos mais dramáticos do filme –, é maravilhosa. A fotografia de Ernest R. Dickerson, mais uma vez, é soberba. E Spike Lee nos abençoa com um verdadeiro clássico, que, apesar da bilheteria abaixo do esperado, é um filme que nunca envelhece; todas as vezes que o revejo, faço-o com o mesmo entusiasmo.

Os minutos finais são catárticos. Cenas em preto e branco, de Malcolm e de toda a violência sofrida pelos negros na luta pelos direitos civis, vão passando na tela enquanto o lendário ator e ativista Ossie Davis lê o seu discurso laudatório proferido no funeral. O ápice se dá numa escola, na África do Sul, com crianças repetindo “Eu sou Malcolm X!” e Nelson Mandela ressaltando a importância do imenso líder negro americano e o direito à liberdade das populações negras. Em suma: maravilhoso!

Caso o leitor ainda não tenha visto Malcolm X, corra: está disponível no Prime, da Amazon.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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