“Os artifícios retóricos permitem a muitos intelectuais escaparem à responsabilidade por manipularem as informações, cujo intuito é criar realidades virtuais a fim de corroborar sua visão.” (Thomas Sowell, Os intelectuais e a sociedade)
Pensei muito se deveria escrever esse artigo. Isso porque temo que minha crítica seja confundida com desrespeito. Sueli Carneiro, a quem, pelo contrário, muito admiro pela trajetória, é uma heroína brasileira, uma mulher responsável pela formação e conscientização de uma geração inteira de pessoas negras que aprenderam, pela influência direta da célebre instituição que fundou e dirige, o Geledés – Instituto da Mulher Negra, a lutar contra o racismo que, ainda hoje, enfileira prejuízos à sociedade brasileira, sobretudo à população negra, e perpetua um imaginário de subalternização que é a mais poderosa instituição simbólica brasileira.
Sueli tem a intrepidez de quem foi forjada nas batalhas, mas também na retórica, e nesta última tem a potência que Mano Brown, que a entrevistou para o seu podcast, o Mano a Mano – entrevista que me trouxe a este artigo –, chamou de uma metralhadora da Segunda Guerra Mundial. A maneira direta como se exprime, sem rodeios e com uma convicção singular, intimida os desavisados e hipnotiza os suscetíveis, e o efeito é catártico.
Sua entrevista no Mano a Mano foi histórica, com um tom de puxão de orelha no rapper que não passou despercebido por ninguém. Inclusive com comentários nas redes sociais de que Brown teria o “pensamento embranquecido”. E Sueli não mandou recado. Desferiu uma série de golpes em todos os discursos – legítimos ou não, veremos – que servem para contemporizar ou inserir complexidade na experiência do racismo no Brasil. Posicionou-se firmemente contra a ideia de liberdade individual e reiterou que somente a luta e as conquistas coletivas nos emanciparão.
Sueli tem a intrepidez de quem foi forjada nas batalhas, mas também na retórica
Brown, como afirmei anteriormente aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, é um artista embebido na razoabilidade do senso comum e no conhecimento da rua. Mas isso não o faz ingênuo; pelo contrário. Nesse sentido, o seu imaginário funciona num horizonte de referências que não estão necessariamente nos livros, não são referências acadêmicas, mas pertencem a uma tradição. Conhecimento que lhe deu notoriedade, que lhe fez compor seus mais contundentes sucessos, que geraram e geram identificação imediata com o jovem da periferia que ouve as músicas do Racionais. E, curiosamente, o que se passou entre ele e a experiente ativista Sueli Carneiro, cuja tese de doutorado foi um estudo sobre conceitos do arquieuropeu Michel Foucault, foi, num grau mais elevado e em sentido inverso, o mesmo que ocorreu entre ele e a cantora Jojo Todynho – nesse caso, ele fazendo o papel de ideólogo e ela, o de representante do senso comum.
Conforme dito acima, Sueli Carneiro possui uma retórica poderosa, e trato o termo aqui tecnicamente, como a capacidade, segundo Aristóteles na obra homônima, de “observar e descobrir o que é adequado para persuadir”. Sua maneira contundente de se expressar persuade e desarma seu interlocutor caso ele não esteja esperando por tal contundência. Dizer, sem meias palavras, coisas como “eles assinaram uma abolição que dizia: ʻvocês estão livres para morrerem nas sarjetas desse paísʼ. Não tinha um projeto de inclusão social, um projeto de reforma agrária, um projeto de educação” a um ouvinte passivo no tema, que não tem conhecimento de história do Brasil e, mais do que isso, já ouviu isso anteriormente – pois essa é uma narrativa conhecida entre a militância negra –, desestimula o anfitrião a perguntar sobre o movimento abolicionista e os projetos do pós-abolição, sobretudo o projeto de Democracia Rural, de autoria do gênio André Rebouças, que falava em reforma agrária, liberdade individual, espírito de associação e educação. E é óbvio que um movimento imenso como aquele não terminaria com a assinatura da Lei Áurea; mas veio a contestação republicana – que fez Rebouças lamentar, em carta posterior, o primeiro aniversário da abolição – e o subsequente golpe militar.
Entretanto, por diversas vezes Brown tentou alertar sua convidada sobre a desconexão do que ela dizia com a realidade atual. De novo, não porque ele seja ingênuo de não perceber as imensas desvantagens que a população negra tem e todas as violências sofridas, mas que o discurso focado no combate às estruturas de poder – olha o europeu Foucault aí –, de “enfrentamento racial” e “estratégias de luta coletiva” não se conecta com uma geração que está fazendo milhões postando música na internet e lotando shows Brasil afora. A crítica ao sucesso individual, à busca pela prosperidade financeira e à liberdade de se abster do desgaste militante pode até ser legítima, mas não é suficiente para despertar as consciências, se é que é preciso fazê-lo.
A perplexidade de Brown ao falar que cotas são um assunto polêmico na periferia é desbaratada com um simples “porque os pretos são vacilões”, como se a raiz da controvérsia não fosse a autonomia de pensamento de indivíduos, mas a “reprodução da ladainha do dominador”. Nesse tema, surge um argumento triunfante de Sueli Carneiro, evocando um artigo de 2014, do historiador Luiz Carlos “Tau” Golin, reproduzido no site do Geledés, cujo título é “Os cotistas desagradecidos”. No texto, o autor defende que “as políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas”, numa peça ancorada numa falácia de falsa equivalência. Não querendo ser implicante, mas uma doutora em Filosofia não poderia, em hipótese alguma, aceitar algo do tipo. Que os imigrantes europeus tiveram muitas vantagens em sua vinda para o Brasil, inclusive com políticas de Estado em seu favor em detrimento da marginalização da população negra, ninguém tem dúvida. Mas a política de cotas atual não tem relação alguma com isso. Primeiro porque fundamenta-se na ideia de reparação, não de oportunidade. A controvérsia citada por Brown se dá nesse sentido, pois as pessoas julgam que a ideia de reparação histórica não tem legitimidade, passadas tantas décadas da abolição, e os filhos não podem ficar com os dentes embotados pelas uvas verdes comidas por seus pais – para usar uma metáfora milenar. Podemos discutir isso, mas trata-se de uma motivação quase oposta à de possibilitar um aumento de oportunidades. Esta baseia-se na ampliação das ofertas; aquela, na reserva estratégica – e discriminatória.
Que os imigrantes europeus tiveram muitas vantagens em sua vinda para o Brasil, ninguém tem dúvida. Mas a política de cotas atual não tem relação alguma com isso
Depois a conversa desemboca na definição de negro – a soma de pretos e pardos, que Carneiro reputa a uma conquista do movimento negro –, que, de novo, por estratégia do dominador, teria se mantido por muito tempo como uma categoria apartada e minoritária. Ao somar pretos (10%) e pardos (47%), a categoria “negro” se transforma, supostamente, na maior representação étnica do país. Brown pondera, dizendo que o “pardo é um enigma”, mas Carneiro, de novo, retoricamente e apelando à emoção, diz: “vai no IML e vê aqueles pés lá; tem o seu pé […], em maioria, pois os pardos são maioria”, e completa: “a polícia não costuma errar, ela vai do preto ao pardo numa boa”. Agora, isso não explica a autodeclaração ou a falta dela. Brown, de novo, diz que a juventude da periferia está tentando sair do estereótipo “que às vezes a gente reforça”, e que ela não valoriza tanto o marcador identitário. Mas Carneiro diz que, na verdade, há uma “disputa de consciência” pela identidade racial, pois essa seria a “grande força revolucionária” do país. Será?
Há ainda um comentário de Brown sobre a falta de negros no futebol, dizendo que, talvez, esse não seja mais o grande sonho do jovem da periferia. Mas Sueli Carneiro pergunta: “por que não se encontra mais jogador preto aqui?” Brown pondera: “tem duas teorias, uma é essa que eu tô te falando, que talvez esse não seja mais o grande sonho de consumo da molecada negra, o futebol...”, mas ela interrompe: “Como foi que nossos meninos foram sendo expulsos, inclusive? […] Como nossos meninos foram sendo substituídos por meninos de classe média, brancos? Não é possível, você tem que se fazer essa pergunta! Não, eles não deixaram de desejar o futebol; eles têm sido gradativamente excluídos. O campeonato francês é uma profusão de gente preta como você não vê mais aqui no Brasil […]. Agora, como é que eles desapareceram?” Brown tentou mais um pouco: “Não estão migrando para outros...?”, e foi abruptamente interrompido: “Tão coisa nenhuma! Eles estão sendo excluídos! Como é que a França tem uma Seleção com 80% de meninos pretos? […] O negócio é tão exacerbado aqui, o processo de exclusão, que eles estão preferindo não mais conquistar os títulos que nós éramos capazes de conquistar para eles, do que nos incluir. [grifo meu]” A essas alturas, Brown já estava resignado, concordando com sua mentora da juventude.
Agora, atento leitor, preste atenção nessa argumentação. Faz sentido eliminar absolutamente todas as nuances, toda iniciativa individual, todas as complexidades desse tema, para dizer, sem prova alguma, peremptoriamente, que “eles não deixaram de desejar o futebol?” Como eliminar a sedução da música, do funk e do trap, que têm feito garotos de periferia milionários em pouquíssimo tempo?! Como eliminar todas as facilidades da tecnologia, da inclusão digital? Não é só porque africanos são pretos que se pode compará-los aos brasileiros em seu desejo por jogar futebol. O contexto é totalmente outro! E mais, sua retórica tem um desfecho, é forçoso admitir, racista, pois que habilidades especiais inatas teriam os negros para o futebol? Acreditar que só negros são capazes de conquistar títulos no esporte, ignorando Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Robert Lewandowski, Lionel Messi e tantos outros jogadores brancos, é um absurdo descomunal, é inadmissível.
Por fim – pois esse artigo já se alonga – o menosprezo ao empreendedorismo, mediante a defesa de “emprego de qualidade, de carteira assinada”. Após Carneiro dizer que mulheres negras são pioneiras no empreendedorismo – p.e. a “baiana do acarajé” –, diz que “agora que embranqueceu […], se tornou uma coisa sofisticada”. Pondera sobre a criação negra da Caixa Econômica Federal, das Irmandades Negras etc., para dizer, em seguida: “Agora, a gente não pode esquecer que muitos acenos que nos são feitos tem a ver com o fato de que nos está sendo dito o quê? O mercado formal de trabalho não é para vocês! Aquele emprego de qualidade, que tem carteira assinada, férias remunerada, décimo terceiro... aquele emprego que branco tem, moço! Esse não. Quantos pretos você conhece no emprego formal? […] É tudo ʻuberizadoʼ.” E passa a atacar as iniciativas individuais, dizendo que “ninguém quer investir na construção de uma estratégia coletiva de luta, e sem ela a gente não se emancipa.” E emenda: “O neoliberalismo é uma ideologia triunfante entre nós! Ela não pode ser mais perversa sobre ninguém do que sobre nós”. Sim, temos uma defesa entusiasmada da CLT em pleno séc. 21.
Então Brown pergunta: “Explica para mim, o que é um neoliberal?” Ela responde: “Essa ideologia individualista, de que eu sozinho sou o agente da transformação, eu sozinho estou fazendo a diferença, a minha mobilidade social individual...” e Brown completa: “representa a todos.” E os dois entabulam uma discussão sobre a frase “a favela venceu”, notabilizada por MCs de trap e funkeiros. E eu, confesso, já estava enfadado.
Mas, após uma longa peroração de Carneiro sobre desigualdades, Semayat Oliveira, assistente de Brown, relembra a famosa frase da ativista, “entre direita e esquerda, continuo preta”, como se ela representasse a autonomia de Sueli Carneiro em relação às vertentes de pensamento e ação política, “independente da direita ou a esquerda estarem no poder”. Mas a doutora adverte: “Veja bem, não é independente. O que sempre digo é: a direita tem pra gente um projeto que sempre foi claro, ela entende que a gente nasceu pra limpar a privada deles. E se a gente não serve para limpar a privada, tem de ser descartado.” E aqui, caríssimo leitor, não posso mais tergiversar de evocar o gênio Thomas Sowell e sua obra Os intelectuais e a sociedade (citada em epígrafe). Após Sowell repetir a bombástica frase de J.A. Schumpeter, “a primeira coisa que um homem fará por seus ideais é mentir”, emenda:
“Um cientista que manipulasse os fatos a fim de favorecer uma teoria de sua preferência sobre o câncer seria considerado uma aberração e ficaria completamente desacreditado, assim como um engenheiro que fizesse o mesmo ao construir uma ponte. Este poderia ser até processado por negligência criminosa caso a ponte viesse a desabar, matando pessoas. Contudo, aqueles intelectuais cujo trabalho é tido como ʻengenharia socialʼ não precisam enfrentar essas responsabilidades, mas, pelo contrário, a maioria dos casos está isenta de quaisquer responsabilidades, mesmo quando a manipulação dos fatos desemboca em verdadeiros desastres sociais. O fato de tantos intelectuais fazerem uso do discurso sobre uma inalcançável objetividade e imparcialidade pessoal como motivo para justificar a manipulação fraudulenta que fazem dos fatos, tornando seus argumentos plausíveis, mostra, uma vez mais, o quanto a capacidade intelectual deles está a serviço da manipulação retórica e o quanto lhes falta de sabedoria. Em última instância, a questão não é sobre ser ou não ʻjustoʼ , contemplando ʻambos os ladosʼ, mas o que é muito mais importante é ser honesto com o leitor, o qual, afinal de contas, não pagou para aprender sobre o psiquismo ou a ideologia do escritor, mas para adquirir algum conhecimento real sobre o mundo.”
Eu, como intelectual conservador (de direita, portanto) e preto, só posso me sentir ofendido com a declaração de Sueli Carneiro, porque a deslegitimação que ela diz ser tão fácil os brancos fazerem contra nós, ela faz, mesmo que indiretamente, contra mim. A tal direita que ela evoca em sua falácia do espantalho, só existe na mente dos ativistas e intelectuais de esquerda – e o fato é que, entre direita e esquerda, ela continua de esquerda, só que acusa a esquerda de ser menos radical do que deveria para contemplar as questões raciais. Mas confundir a oligarquia que comanda esse país há séculos com o pensamento conservador ou liberal, não é só um desconhecimento dessas tradições, é pura desonestidade intelectual. Não há outro termo que se possa atribuir a uma doutora em Filosofia que usa de tal artifício. E não preciso provar aqui mais esse erro, pois minha coluna quase não faz outra coisa se não divulgar o sólido pensamento conservador e liberal, que vai desde as tradições bantu até Rebouças e João Camilo de Oliveira Torres. Não dá para reduzir tudo a um projeto para “limpar privada”. Definitivamente, não dá. E que me perdoem aqueles que viram nesse episódio do Mano a Mano a verdadeira manifestação da sabedoria preta.
Brown chega a recomendar que Carneiro ouça o rap atual, para perceber que o discurso “a favela venceu” – que é individualista, pois quem venceu, em tese, foi o indivíduo que, rico, criou o refrão – é mais poderoso que a conversa militante de horizonte utópico, estratégias de confronto e coletivismo pueril. Mas a doutora parece incapaz de pensar qualquer solução para os nossos graves problemas fora da retórica de pensadores europeus revolucionários – que, sentados em suas cátedras, fizeram do Ocidente um celeiro para seus experimentos sociais acadêmicos. Pois é, doutora Sueli, o preto é colonizado.
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