“Quem queria libertar a arte, restabelecer sua santidade inviolada, deveria antes ter-se libertado da alma moderna; somente como homem inocente poderia encontrar a inocência da arte [...]. É possível que a redenção da arte, a única que pode trazer a esperança de um raio de luz na época atual, permaneça um acontecimento para umas poucas almas solitárias, ao passo que muitos suportariam ainda ver sua arte no fogo trêmulo e fumegante: pois querem não a luz, mas a cegueira, odeiam a luz – sobre si próprios.” (Nietzsche, Wagner em Bayreuth)
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Imaginem um filme que una a extraordinária Cate Blanchett, a personagem de uma maestrina visceral, e a arrebatadora música de Gustav Mahler – o leitor que me acompanha, sabe o quanto admiro o compositor checo-austríaco, tema do segundo artigo desta coluna, no já longínquo ano de 2018. Some-se a isso a obsessão de um diretor, Todd Field, que disse ter escrito o papel exclusivamente para Blanchett, e que, caso ela não aceitasse, o filme jamais existiria. Para tal, Blanchett retomou as aulas de alemão e piano da infância, e aprendeu – muitíssimo bem – os movimentos, a comunicação e a postura da regência. E temos Tár, um belíssimo e exigente filme a que fui generosamente convidado, pelo meu caro amigo Roberto Sadovski, crítico de cinema do UOL, para assistir à pré-estreia.
Curiosamente, eu não tinha muita ideia do que se tratava o filme, sabia que era sobre uma regente e compositora renomada, e só. Mas a capa do filme impressiona e remeteu-me ao tipo de regentes expressivos que admiro, como Simon Rattle e Gustavo Dudamel. A mim, inclusive, parecia se tratar de uma história baseada em fatos reais, então fui com a expectativa de assistir a uma espécie de cinebiografia. Não perguntei a ninguém sobre o filme e também não pesquisei absolutamente nada. Ou seja, cheguei ao cinema com quase nenhuma informação sobre o que fora assistir, e a surpresa não poderia ter sido melhor. Apesar das pouco mais de 2h30 – um filme longo, portanto –, Tár é um mergulho não só naquela vocação artística da qual falei recentemente, em artigo sobre outro filme excepcional (Andrei Rublev, de Tarkovski), mas na incompreensão que o mundo contemporâneo, saturado de demandas prosaicas e carregadas de ressentimento, tem de arte.
O filme inicia com Lydia Tár, que, na verdade, é uma personagem totalmente ficcional, dando uma entrevista sobre seu trabalho, sobre o fato de ser a primeira mulher a reger uma grande orquestra alemã, e a expectativa para a gravação da única sinfonia de Mahler que faltava em seu ciclo de gravações, a Quinta, conhecida por sua estonteante Marcha Fúnebre do primeiro movimento. E nesse início, na entrevista que dura os primeiros quinze minutos do filme, Cate Blanchett vence o Oscar – perdoem o exercício de adivinhação, mas ela já ganhou, dentre outros prêmios, o Critics Choice e o Globo de Ouro por essa atuação, então... Blanchett esbanja seu talento e nos cativa com uma personagem complexa, visceral e muito convincente. Os medos, as convicções e, sobretudo, o amor à arte de Lydia Tár são apaixonantes.
Momentos à frente, vemos Lydia lecionando Regência, como convidada na prestigiosa Juilliard School, em NY, e confrontando um aluno que se recusa a tocar J.S. Bach porque, segundo ele, o lendário compositor alemão é misógino. Ao ser perguntado se tocou ou regeu Bach alguma vez, ele responde, um pouco exitante por ter de decepcionar a admirada mestra: “Honestamente, como um BIPOC, pessoa pangênero, eu diria que a vida misógina de Bach torna isso meio impossível para mim, levar sua música a sério.” Tár, ao mesmo tempo, repreende e ironiza o alune, usando, inclusive, o fato de ela mesma ser homossexual, para lhe dizer que, diante da arte é necessário “sublimar a si mesmo, seu ego e, sim, sua identidade.” Não há espaço para militância barata na arte, a arte é sublime e infinitamente mais importante que nossas questões pessoais de cunho, muitas vezes, psicológico. A complementa: “Não fique tão ansioso para ser ofendido. O narcisismo das pequenas diferenças leva ao mais enfadonho conformismo.” E diante da irritação do rapaz e de seu abandono da aula, ela diz: “o arquiteto de sua alma parece ser a mídia social.” O problema é que essa aula sobre o valor da arte, sobre a superioridade do talento universal sobre a mesquinhez das questões particulares, selará, adiante, o destino trágico de Lydia Tár.
A personagem de Blanchett lembrou-me, vagamente, a escritora Franz Lebowitz e a filósofa Camille Paglia, que são clara e esteticamente ligadas ao universo transgênero, mas que não se rendem ao discurso fácil da militância identitária atual; elas compreendem que a vida real é muito mais complexa e cheia de nuances que a teorização de seja lá o que for. Mas isso tem um preço no mundo atual, a cultura do cancelamento é um monstro faminto que não distingue o certo do errado, a verdade da mentira, e devora implacavelmente tudo o que tenta impedir o seu avanço “civilizacional”, da busca por um mundo perfeito e sem contradições – nem que, para isso, precise destruir a civilização.
Isso também fica evidente com o surgimento de uma jovem violoncelista russa na orquestra, cujo talento extraordinário chama a atenção de Tár, mas que se mostra uma jovem que, apesar de muito determinada, parece só respeitar o seu próprio mundo e não tem qualquer respeito pelas convenções que mantém a ordem das interações sociais, e ainda tem uma propensão maligna para a desconstrução da imagem impoluta de Tár. A cena do prólogo, de alguém com um celular filmando a regente enquanto ela dorme durante um voo, e escrevendo impropérios a seu respeito, é um sinal do que entenderemos depois.
Mas isso tem um preço no mundo atual, a cultura do cancelamento é um monstro faminto que não distingue o certo do errado, a verdade da mentira, e devora implacavelmente tudo o que tenta impedir o seu avanço “civilizacional”
Há ainda as questões familiares – o relacionamento com a spalla da orquestra, a amável filha adotiva e, claro, o ciúme –, a burocracia dos patrocínios para sua fundação, bem como a terrível tragédia envolvendo uma ex-aluna, que tornam a vida de Tár extenuante, questões que a estão impedindo de produzir sua arte e de exercer o seu ofício com excelência. E Blanchett dá conta de expressar tudo isso com perfeição.
Nietzsche, ao falar sobre Richard Wagner, descreve com sagacidade a situação de um artista como ele – e a própria Lydia Tár: “Percebe-se que o mais sério artista quer impor, com determinação, a seriedade em um meio no qual as instituições modernas são quase construídas tendo a frivolidade como princípio e como exigência, se em parte é vitorioso, no todo volta sempre a fracassar, é tomado de desgosto e quer fugir, mas não encontra um lugar e precisa sempre de novo retornar aos ciganos e excluídos de nossa cultura como um dos seus.” E Michel Kennedy, biógrafo de Gustav Mahler – o espírito do filme –, faz uma descrição perfeita da vocação do grande compositor: “A música não era meramente uma profissão para Mahler – era uma missão sagrada diante da qual tudo e todos ficavam em segundo lugar.” E complementa, com as palavras do próprio gênio que compôs a monumental Sinfonia nº2, chamada de Ressurreição:
“Nada mais somos do que um instrumento em que toda o universo […]. Todos os que convivem comigo tiveram que aprender isso. Nesses momentos não pertenço a mim mesmo. Não posso proceder de outro modo […] O criador […] deve suportar muitas horas de solidão e ausência, durante as quais está perdido em si mesmo e completamente divorciado do mundo à sua volta.”
A saga de Lydia Tár é a saga de todo grande artista, que sendo uma espécie de para-raios dos problemas do mundo, os absorvem e os transformam em beleza, mas, não raro, são consumidos por ela. O filme estreia nos cinemas nessa semana. Vá preparado e sem sono, e garanto uma experiência inesquecível na presença da inigualável Cate Blachett e sua Lydia Tár.
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