Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vem isto de carvalho e de pedra? (Hesíodo, Teogonia)
Não sou um beatlemaníaco. Minha apreciação pelos quatro garotos de Liverpool se deu de forma tardia e específica – que foram seus álbuns a partir de (e particularmente) Rubber Soul, de 1965. Sua fase iê-iê-iê pouco me interessa. Por isso, para mim seria muito difícil analisar, como fã ou mesmo como especialista (que absolutamente não sou), a história e as histórias por detrás da estupenda série documental The Beatles: Get Back, dirigida por ninguém menos que Peter Jackson (O Senhor dos Anéis), que estreou no último fim de semana na Disney+. As 60 horas de vídeo e aproximadamente 150 de áudio, recuperados e trabalhados com maestria impressionante por Jackson, não só reconstroem a história da última e lendária apresentação ao vivo dos Beatles, o Rooftop Concert, realizada em 30 de janeiro de 1969 no terraço da Apple Corps, empresa de mídia do quarteto, e da gravação do álbum e do filme Let it Be, como também passa a limpo, sobretudo, a controvérsia sobre a influência de Yoko Ono no fim da banda, que ocorreu no ano seguinte, bem como uma suposta animosidade, à época, entre John Lennon e Paul McCartney.
O que temos diante de nós, antes de qualquer coisa, são quatro jovens que amavam fazer música e tocar junto
Muito se especulou sobre os motivos que levaram uma das maiores bandas de rock de todos os tempos a encerrar suas atividades, e mesmo os ex-integrantes tinham, ao que parece, cada um a sua versão sobre o ocorrido, recaindo, conforme o tempo foi passando, na jovem artista de vanguarda que conquistara o coração de John Lennon em 1966. No entanto, em entrevistas posteriores, tanto George Harrison quanto Paul McCartney (mais recentemente ele “culpou” Lennon) disseram que Yoko não teve culpa, que o quarteto já estava em processo de separação quando ela surgiu.
Mas o que The Beatles: Get Back nos mostra é algo muito diferente – e surpreendente, sobretudo. Se a banda estava em processo de separação, não é, absolutamente, algo que transparece na edição de quase oito horas que Peter Jackson fez desse espetacular material, o que alterou, inclusive, a visão dos próprios ex-Beatles sobre o fim da banda. O que temos diante de nós, antes de qualquer coisa, são quatro jovens que amavam fazer música e tocar junto; com todos os conflitos que surgem quando pessoas se unem por qualquer propósito, Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison, então com, respectivamente, 27, 29, 29 e 26 anos, eram, de fato, muito jovens. Some-se a isso o imenso talento que cada um tinha individualmente e compreendemos por que os Beatles foram o fenômeno que conhecemos.
A série, que é verdadeiramente estupenda – mas que, pela duração e tema, pode não agradar àqueles que não são fãs dos Beatles –, é uma aula magna de processo criativo, de como quatro músicos geniais trabalharam para criar algumas das mais belas canções da história da música popular. Paul McCartney dedilhando e melodiando, ainda sem letra, a extraordinária The long and winding road, ou, focadíssimo, criando a letra de Get Back enquanto Ringo e Harrison, já cansados e sonolentos, acompanham, é impressionante num nível difícil de colocar em palavras. Se você é artista ou mesmo um amante consciente das artes, dificilmente não se emocionará com o que nos é apresentado, com a história da música sendo escrita na nossa frente. E veja, caro leitor, são oito horas disso: criação, composição, discussões sobre o que ou não fazer, mudanças de planos, estresse criativo e muitos ensaios, muita música. Mas são titãs fazendo isso, o que muda absolutamente tudo.
Enquanto eu assistia, ocorreu-me um paralelo que julgo interessante compartilhar: The Beatles: Get Back é uma espécie de mitologia, mas é como se estivéssemos diante de Homero narrando a Ilíada ou de Hesíodo construindo sua Teogonia. Porque estamos diante de uma história cujo resultado nos chegou, basicamente, pelo disco e pelo filme Let it Be. E o maravilhamento de ver tudo acontecendo de modo embrionário, ver a icônica Don’t Let Me Down sendo composta diante de nossos olhos; a insistência frustrada de George Harrison, lutando para ser ouvido diante da presença marcante da dupla Lennon e McCartney, que parecia preencher todos os espaços; a onipresença de Yoko Ono como uma espécie de sombra de Lennon; e a atitude estoica de Ringo Starr, que, solicitado, tocava sua bateria à perfeição; ou mesmo a chegada de Billy Preston, o organista negro (que por muitos é considerado o quinto beatle), trazendo uma pegada soul e gospel à música do quarteto de tão modo redentora a ponto de Lennon dizer ao produtor George Martin, diante das dificuldades no processo de composição da banda – que precisava criar músicas novas num tempo recorde: “Agora Billy está conosco, ele é o cara!” Tudo isso é de uma preciosidade absoluta, e a série adquire um caráter pedagógico semelhante ao do mito. Explico-me.
Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, nos diz que “o mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gestas constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é, pois, a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo”.
The Beatles: Get Back é uma espécie de mitologia, mas é como se estivéssemos diante de Homero narrando a Ilíada ou de Hesíodo construindo sua Teogonia
Em sentido análogo, Peter Jackson assume o papel de aedo contemporâneo, daquele que nos revela um mistério e educa o nosso imaginário por meio do crepúsculo dos Beatles. A música, as tensões, os sentimentos contraditórios, os desencontros, as ansiedades e, sobretudo, o poder criador, o fundamento daquilo que influenciaria toda uma cultura são expostos de modo que revelam a realidade por detrás do que viríamos a conhecer somente pelo resultado como obra pronta. Por isso estar diante do acontecimento fundador é maravilhoso. É Eliade que, de novo analogamente, melhor traduz o que quero dizer, em Mito e Realidade:
“O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ʻprincípioʼ. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ʻcriaçãoʼ: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos ʻprimórdiosʼ. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a ʻsobrenaturalidadeʼ) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do ʻsobrenaturalʼ) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje”.
A série, que é verdadeiramente estupenda, é uma aula magna de processo criativo, de como quatro músicos geniais trabalharam para criar algumas das mais belas canções da história da música popular
Por isso, para mim, guardadas as devidas proporções, assistir a The Beatles: Get Back foi, mesmo, como ver revelada uma realidade mítica vivida por heróis fundadores. E, nesse sentido, como todo mito, educa de uma maneira muito profunda. Como diz Werner Jaeger, em seu Paideia – A formação do homem grego, “a poesia tem vantagem sobre qualquer ensino intelectual e verdade racional, assim como sobre as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. É mais filosófica que a vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida frase de Aristóteles), mas é, ao mesmo tempo, pela concentração de sua realidade espiritual, mais vital que o conhecimento filosófico”.
Exagero meu? Pode ser, atento leitor. Mas isso é fruto de admiração – no sentido filosófico do termo, da thaumazia, do mirandum –, pois, nas palavras de Aristóteles na Metafísica, porto-me como um philomythos, um amante de mitos, e “aquele que ama o mito é, de certo modo, filósofo: [pois] o mito, com efeito, é constituído de coisas admiráveis”. E The Beatles: Get Back é absolutamente admirável.
Portanto, se ainda não esteve diante dessa minissérie, que é pura experiência poética, assista e admire-se também.
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